terça-feira, 5 de maio de 2020

NOITES DO SERTÃO [Resenha 073/20]


O menos conhecido dos três volumes de Corpo de Baile é Noites do Sertão, uma das mais requintadas representações literárias das relações erótico-amorosas que o responsável por este ig conhece. O autor se dá ao luxo, inclusive, de recriar a linguagem dos Cânticos de Salomão num dos momentos mais belos de Lão-Dalalão (ou Dão-Lalalão ou ainda O Devente), uma das duas “estórias” do livro, as quais são a coisa mais próxima de narrativas tradicionais que Rosa chegou a escrever pós-Sagarana.

O protagonista de Lão-Dalalão é Soropita e ele está voltando para casa, “em meio-sonhada ruminação”. Ex-matador famoso, acabara casando com uma prostituta de Montes Claros, Doralda, e tornando-se fazendeiro, “dono de seus alqueires”: “todos o respeitavam, seu nome era uma garantia falável”. Só que, no caminho, esbarra com Dalberto, antigo companheiro dos tempos de vaqueiro e, como é de praxe, é obrigado a acolhê-lo como hóspede, embora tencione até matá-lo. Por quê? Devido à possibilidade de Dalberto ter conhecido Doralda na sua época de quenga, o que destruiria seu bom nome na região, mas também por ciúme. Soropita pertence à galeria dos grandes ciumentos retrospectivos (obcecados com o passado amoroso da amada) cujo grande representante na nossa ficção é o Bentinho de D. Casmurro. Além de Dalberto, Soropita também fica tomado pela cisma de que Doralda pudesse ser conhecida (em todos os sentidos, inclusive o bíblico) pelo “preto Iládio”, em razão de um violento ódio racial, materializado em violentas imagens sexuais.

Aliás, o que faz com que Lão-Dalalão seja uma das obras-primas de Guimarães Rosa é a maneira como ele insinua no texto a voltagem erótica (e psicologicamente intrincada) das fantasias sexuais de Soropita, que chega a imaginar Doralda na cama com Dalberto no momento mesmo em que este lhe confidencia a paixão por outra prostituta e a sua vontade de casar com ela.

Também complicada, contudo não tão perfeita como realização artística, é a ciranda amorosa de Buriti, a narrativa mais longa escrita pelo genial autor mineiro, tirando Grande Sertão. Nela reaparece o Miguilim de Campo Geral, agora médico e adulto, “estrangeiro” de sua terra natal. Ele chega à fazenda do Buriti-Bom (na região há um colossal buriti, um símbolo fálico gritante), uma espécie de pórtico para os Gerais. Ela pertence a iô Liodoro, patriarca-garanhão, o qual todas as noites sai para se satisfazer com suas várias mulheres. Na casa, há três moças: Lalinha, nora de iô Liodoro, que foi buscá-la na cidade grande quando o filho a abandonou e a trouxe para viver com a família num estado de espera pela volta do marido, alimentado por rezadeiras e mandingas; Glorinha, assim como a feiosa Maria Behú, é filha de iô Liodoro (e todos são parentes da inesquecível dona Rosalina, de Estória de Lélio e Lina, outro texto de Corpo de Baile) e será a amada do titubeante, hesitoso e angustiado dr. Miguel.

Buriti demora a engrenar. Começa sob o ponto-de-vista de Miguel (alternando dois tempos diferentes e um deslizar suave entre a 1a. e a 3a. pessoas) e oscila entre momentos geniais e cansativos. A arte de Guimarães Rosa às vezes beira a monotonia de tanto reiterar os mesmos pontos e o leitor tem a impressão de que ele não soube encontrar o “ponto” do bolo. Em compensação, quando o ponto-de-vista passa a ser o da Lalinha, o texto cresce em intensidade, precisão e sofisticação ao nos fazer compartilhar das noites em que sogro e nora (iô Liodoro e Lalinha) se comprazem num jogo de sedução peculiaríssimo, mostrando que as noites do sertão nada ficam a dever a D.H. Lawrence ou a qualquer outro mapeador da presença do desejo em nossas existências.
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ROSA, João Guimarães. Noites do Sertão: Corpo de baile. Rio de Janeiro, RJ: Frente Editora, 2008.

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