segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

SUPER OCUPADO [Resenha 011/21]


Escrito por Kevin DeYoung e publicado recentemente pela Editora Fiel, Super Ocupado é um livro que considera o seu público alvo. Ele é curto e está dividido em dez capítulos pequenos, cuja leitura não leva, em média, mais do que quinze minutos. Além disso, foi sido publicado paralelamente em papel e ebook. Ou seja, é um livro para quem está ocupado.

Depois de um capítulo introdutório, que procura justificar as razões para o livro mostrando a abrangência do problema da superocupação, o capítulo dois estabelece o pano de fundo da discussão, mostrando o risco de confusão entre ocupação e fidelidade. Seu objetivo é mostrar que estar “ocupado demais não significa que você seja um cristão fiel ou frutífero. Só quer dizer que você está ocupado, como todo mundo. E como todo mundo, a sua alegria, o seu coração, a sua alma estão em perigo” (p. 35). Este é certamente um alerta atual, já que a nossa época costuma atribuir valor às pessoas pelo critério da produtividade.

Estabeleço a divisão do livro da seguinte forma: (1) Três perigos a evitar, ou seja, três perigos graves que a ocupação pode causar: estar ocupado de mais pode estragar a nossa alegria, roubar nosso coração e encobrir a podridão de nossa alma. (2) O coração do livro constitui-se de sete capítulos curtos, que oferecem sete diagnósticos para a nossa ocupação. Kevin DeYoung mostra como o orgulho pode nos tornar e manter ocupados, e como o orgulho pode se manifestar no desejo de agradar pessoas e em um desejo desmedido de possuir mais. (3) No último capítulo, Kevin fala da única coisa que precisamos, e temos que fazer. Temos que ter uma vida devocional. Orar e ler a Bíblia diariamente. A coisa mais importante da nossa vida é, segundo Jesus, que "nem só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do Senhor" (Mt 4:4). Precisamos desesperadamente correr para Jesus, pois num mundo onde todos vivem ocupados, cansados e fatigados, Ele é o único que pode nos dar descanso (Mt 11:28).

Super Ocupado não é um livro para quem procura um tratado de antropologia teológica, ou uma análise acadêmica do Zeitgeist contemporâneo. É um bom livro devocional, que conjuga boa percepção da vida atual com uma teologia consistente habilmente aplicada. Ele foi escrito por um pastor ocupado e, por consequência, trabalha, na maioria das vezes, com exemplos da lide pastoral diária. Contudo, porque apresenta o problema numa perspectiva centrada no evangelho, e também porque a função pastoral envolve uma multiplicidade de aspectos (relacionamento, docência, gestão) – o que permite que os exemplos sejam facilmente transpostos para as mais diferentes ocupações – o livro pode ser útil para todo cristão que esteja lidando com a superocupação.
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DEYOUNG, K. Super Ocupado. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2014, 144p.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

HAMLET [Resenha 010/21]


Esta é uma edição inédita, distribuída com os assinantes do Clube de Literatura Clássica, a tradução consagrada de Carlos Alberto Nunes, contendo o texto, em original no inglês, para consulta (e que está repleto de notas explicativas e de vocabulário). Além deste livro com capa dura, recebemos: Um marcador de páginas dedicado ao clássico; Retrato do autor; e a obra “Rei Amleth”, de Saxo Gramatticus, editada pela primeira vez em território brasileiro e em língua portuguesa.

William Shakespeare é considerado por muitos o maior dramaturgo britânico. Apesar de soar pretensioso, principalmente para alguém que consegue atingir as massas, o título não é à toa. Shakespeare conseguiu como poucos autores, penetrar na alma humana e trazer à tona o que de mais puro, nobre, mesquinho e atroz existe. Nesta peça o britânico nos leva por uma trama de traição, morte e vingança que até hoje nos encanta e fascina.

Hamlet. Escrita naquilo que os especialistas chamam de segunda fase das obras de Shakespeare, que tem como principais temas, tragédias grandiloquentes e comédias amargas, essa fase do autor é tida por muitos como o tempo em que o mesmo usou de forma mais grandiosa seu talento. São desta fase, as peças Hamlet, Júlio César, Otelo, Macbeth, Antônio e Cleópatra.

Apesar de que muitas das coisas apresentadas por Shakespeare só serem totalmente compreendidas tendo em vista o contexto histórico na qual foram escritas, não precisa ser um perito em história para notar a sutileza de suas. Em Hamlet, dentre tantos sentimentos vividos pela psique humana, um se sobressai: vingança.

Hamlet, narra a história do personagem que dá titulo a peça em sua trajetória para vingar a morte do pai, o Rei da Dinamarca. Algum tempo após a morte do rei, o tio de Hamlet, Cláudio, casa-se com a mãe do príncipe, Gertrudes. Hamlet que não gostara da rapidez na qual as coisas ocorreram, fica mais transtornado ainda quando descobre que o pai fora envenenado pelo irmão Claudio. Hamlet fica sabendo disso através do espectro do rei morto que voltou para lhe avisar do ocorrido e suplicar que o filho o vingue.

Sempre que se pensa em Shakespeare, principalmente na peça Hamlet, uma imagem que vem automaticamente a cabeça é a de um homem segurando um crânio proferindo a célebre frase: "to be or not to be, that is the question". Apesar de bacana esta imagem, as coisas não ocorrem bem assim. O crânio sendo segurado e a célebre frase ocorreram em momentos distintos. Mesmo assim, é impossível não se maravilhar com as tantas frases que o autor consegue conceber e que, em poucas palavras, conseguem traduzir um turbilhão de sentimentos. Isso se deve, além de o autor ter um conhecimento amplo da alma humana, pelo fato dele dominar de forma magistral a língua inglesa. Seu conhecimento do idioma faz com que ele consiga explicitar as nuances da personalidade humana através de poucas palavras.

Outra característica de Shakespeare bem marcante, é a forma como seus personagens vão mudando ao longo da história.

Após descobrir a real ocasião da morte do pai, Hamlet acaba entrando num estado de confusão mental que o deixa no limiar da loucura. As atitudes que o personagem vai tomando no decorrer da história, mesmo justificáveis e compreensíveis, acabam por ter desdobramentos trágicos para muitos a sua volta.

Em sua saga por vingança, Hamlet acaba tendo participação na morte de Ofélia – filha de Polônio, conselheiro do rei Claudio. Após determinados acontecimentos, que implicam na morte de Polônio, no qual Hamlet está diretamente envolvido, Ofélia, que até então nutria um sentimento especial por Hamlet e que era recíproco, não suporta a perca do pai e acaba por dar cabo a própria existência; sua mãe também foi uma que sofreu com esta saga de vingança. Apesar de Gertrudes falecer ante as maquinações do atual marido, isso foi consequência direta da vingança do príncipe.

Outros temas também são debatidos pelo autor na obra. Medo, incesto, maquinações, inveja, traição... Shakespeare conseguiu transpor para os palcos, toda a complexidade da natureza humana através de seus personagens: medo e coragem; amor e ódio; homem e mulher; medo do além e um afã de ter com ele; tudo recheado com a triste ideia de que a injustiça e a incerteza da vida não poupam nem plebeu, nem rei.

O final apoteótico da peça consegue fechar com magnitude todo o escopo traçado pelo autor. O duelo traçado por Hamlet e o irmão de Ofélia, Laertes, é de encher de nervosismo o espectador, principalmente por saber que ambos, Hamlet e Laertes, são peões nas mãos do jogador Claudio.

Após ler Hamlet, você perceberá porque o autor é tido por muitos como o maior dramaturgo da língua inglesa. Leia e não deixe de se maravilhar com esta obra prima.
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SHAKESPEARE, William. Hamlet. Novo Hamburgo, RS: Clube de Literatura Clássica, 2020. 448p.

40 DIAS COM A LIGA DA JUSTIÇA [Resenha 009/21]


A Liga da Justiça é o primeiro grande grupo de super-heróis a se popularizar, ainda na década de 60 nos quadrinhos. A sua formação mais conhecida reúne os mais incríveis e poderosos seres jamais criados, como o Superman, Mulher Maravilha, Batman, Aquaman, Lanterna Verde e Flash. Mas também já fizeram parte da equipe infinitos heróis menos conhecidos, e tão igualmente fascinantes. A Liga da Justiça conseguiu se estabelecer no imaginário popular por meio do cinema, desenhos animados e muitas outras mídias. Para coroar a trilogia da série “40 Dias”, anteriormente com diferentes enfoques, primeiro com os Vingadores (Vida cristã), e posteriormente com Star Wars (Jesus), este novo livro traz inéditas reflexões a respeito do nosso propósito e missão de vida em 40 Devocionais exclusivas. Embarque nessa leitura e descubra que existe um grande herói em cada um de nós!

Assim como 40 Dias com os Vingadores e 40 Dias com Star Wars, que compõem uma trilogia por serem do mesmo perfil e dinâmica, a nova obra propõe uma mensagem aprofundada para as devocionais diárias, com duas páginas cada. Vale ressaltar que devocional é um tempo que o leitor separa para estar com Deus, realizando uma breve reflexão. O devocional diário faz parte da tradição cristã, como um exercício regular da vida com Deus.

Além destas reflexões diárias, o leitor encontrará um inédito dossiê a respeito da história dos quadrinhos e sobre como eles influenciaram a cultura ao longo das décadas. Esses períodos dos quadrinhos são reconhecidos como “Eras” e este dossiê aborda cada uma delas. A cultura pop está enraizada na sociedade contemporânea e os filmes e personagens desta cultura tem a capacidade singular de ensinar princípios de uma maneira indireta, quando o público busca somente um bom entretenimento.

“De maneira inconsciente, tentamos nos tornar mais parecidos com o protagonista bem-sucedido, por exemplo. Neste sentido, utilizar uma ferramenta de massificação da cultura para discutir e disseminar princípios cristãos não é apenas possível, mas necessário. Precisamos ser influenciadores de nossa geração e estarmos envolvidos com os movimentos que a sociedade se apropria, mas oferecendo uma leitura a partir da cosmovisão cristã”, resume o autor, Eduardo Medeiros, que ressalta que a missão da obra é justamente falar de falar de Jesus Cristo de uma maneira contemporânea.

O pastor Eduardo Medeiros, Doutor em história medieval, teólogo e pastor de jovens, tem dedicado parte dos seus estudos às relações entre a cultura pop e o cristianismo. É autor dos best-sellers “Devocional Pop”, da série "40 Dias" e do encarte da "Bíblia Arte". Idealizador do projeto “Parábolas Geek”, que extrai ensinamentos cristãos do cotidiano jovem e de ícones da cultura de massa como cinema, televisão, quadrinhos, games e internet, também chamado de universo geek ou nerd.
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MEDEIROS, Eduardo. 40 dias com a Liga da Justiça. Osasco, SP: Editora 100% cristão, 2019.

O GUIA DEFENITIVO DO MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS [Resenha 008/21]


O Guia do Mochileiro das Galáxias do autor Douglas Adams é um clássico do mundo geek. Com mais de 15 milhões de exemplares vendidos, a saga do britânico esquisitão Arthur Dent pela Galáxia conquistou leitores do mundo inteiro. O humor ácido e as tramas surreais se tornaram ícones de uma geração e seguem fascinando – e divertindo – leitores de todas as idades. Este volume traz os cinco livros da cultuada série: (1) O Guia do Mochileiro das Galáxias, (2) O Restaurante no Fim do Universo, (3) A Vida, O Universo e Tudo Mais, (4) Até Mais, e Obrigado pelos Peixes e (5) Praticamente Inofensiva. Lembrando que o autor, Douglas Adams infelizmente faleceu em 2001 enquanto escrevia o sexto livro da “trilogia” O Salmão da Dúvida.

As obras originalmente foram escritas para se tornarem um programa na rádio e sua estreia ocorreu em abril de 1978, apresentado por Geoffrey Perkins na BBC. No melhor estilo podcast, o apresentador falava com bom humor sobre coisas que até hoje não são tão bem explicadas a nós humanos, criando um universo próprio para o enredo da obra, com planetas diferentes, com teorias incríveis sobre fatos inimagináveis.

Os cinco livros, presentes nesta edição, mostra a odisséia de Ford Prefect, um alienígena de um planeta bem distante e colaborador do Guia do Mochileiro das Galáxias, um livro essencial para pessoas e criaturas que desejam se aventurar pelo espaço sem gastar muito dinheiro. É quando o alien, que queria passar uma semana na Terra para atualizar o capítulo sobre o planeta acaba ficando por aqui por quinze anos, que a história começa a ficar melhor. O enredo é bem cativante, e você lê o livro sem nem perceber o tempo passar. O autor, que apesar do toque de surrealidade, consegue passar sua crítica à realidade e ao planeta, consegue nos prender do início ao fim de cada um dos volumes.

A narrativa, que acontece em terceira pessoa, é intercalada entre as situações vividas por Arthur em suas viagens intergaláticas, outros personagens — que a principio podem não nos ser interessantes — e trechos do Guia. Acredito que, nesse caso, a composição em terceira pessoa ajudou no bom dinamismo do livro — principalmente por abranger melhor todas as excessivas informações e aventuras. Acredito que, no tocante a narração, Adams soube ser muito misto e você percebe com certa facilidade como ele soube conduzi-la de modo que a trama não se tornasse sempre a mesma coisa, usando sempre de cenas instigantes e um humor inteligente.

Dotado de uma cativante narrativa e personagens memoráveis, O Guia Definitivo do Mochileiro das Galáxias facilmente se garante como uma das melhores ficções científicas da literatura mundial. Infelizmente, por se perder em exageros de enredo e pontas soltas, deixa de se tornar algo muito maior e quase sem precedentes. Isso, no entanto, não tira de si o grande mérito de, até os dias de hoje, inspirar grande parte da cultura pop e nerd com suas aventuras extraordinárias.

Lembrando que existe o filme, lançado em 2005. Uma fiel adaptação, com o máximo de personagens daquela história em páginas. Recomendo a leitura a todos que procuram uma válvula de escape, um humor inteligente e ao mesmo tempo reflexivo.
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ADAMS, Douglas. O Guia Definitivo do Mochileiro das Galáxias. São Paulo, SP: Editora Arqueio, 2020. 783p.

ELE DIZ, ELA DIZ [Resenha 007/21]


Não tem como negar que todos os casais passam por crises, mas o segredo é descobrir como superá-las para construir uma relação que seja duradora. Para isso, é preciso que marido e mulher entendam seus próprios traços de personalidade, somem pontos de vista, talentos e esforços, para que o casamento dê certo.

Curiosamente, é justamente nessa dinâmica interpessoal que muitos casais sucumbem, abrindo espaço para discussões de todo tipo, crises intermináveis e, infelizmente, ao divórcio. Para ajudar os casais a prevenir ou superar tal situação, Larry e Devi Titus, escritores best-sellers e conferencistas casados há mais de 50 anos, apresentam um livro único sobre casamento: 'Ele diz, Ela diz: Como um casal de líderes consegue superar as diferenças e construir um casamento de sucesso'.

Lançado em edição revisada e ampliada pela Editora Mundo Cristão, a obra não se trata apenas de um manual para lidar com as questões corriqueiras do matrimônio. O livro é um verdadeiro relato a duas mãos, escrito por um casal reconhecido internacionalmente não apenas por suas aplaudidas conferências, mas por um testemunho de vida cristalino e inspirador.

“Este livro é sobre casamento, mas um casamento de tipo diferente. Não tentamos escrever um livro padrão sobre relacionamento conjugal, abordando os problemas costumeiros. Há uma grande diversidade de bons livros sobre casamento, que parecem dar resposta a quase qualquer problema que possa surgir em seu matrimônio. Mas percebemos que existe uma escassez de livros sobre o significado de ser cabeça e como duas pessoas de personalidade forte podem trabalhar juntas em união”, Larry Titus, 'Ele diz, Ela diz', pág. 08.

O livro têm dois prefácios – um escrito por Larry e outro escrito por Devi – uma introdução e formado por 12 capítulos. Todos os capítulos e assuntos tratados em 'Ele diz, Ela diz' foram pensados cuidadosamente, a fim de ajudar o leitor e a leitora a entender e aplicar os conceitos com facilidade. Com abordagem teológica e prática e escrito com profundo senso pastoral, os temas de cada capítulo são: liderança, diversidade, liberdade, submissão, satisfação, criticas e unidade.

Ideal para os cônjuges que desejam ir além e construir um espaço de acolhimento, respeito e amor à individualidade de cada um, o livro certamente inspirará marido e mulher a manter o romance, nutrir a alegria e a tornar a vida a dois uma experiência marcada por uma frutífera cooperação que inevitavelmente culminará em felicidade e paz.
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TITUS, Larry. Ele diz, ela diz: como um casal de líderes consegue superar as diferenças e construir um casamento de sucesso. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2020.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

A ARTE DE LER [Resenha 006/21]


Se a literatura é uma forma de manifestação artística, o ato de ler também pode ser visto como uma “arte”. Este é o mote de um livrinho saboroso, intitulado A Arte de Ler, do ensaísta e crítico francês Émile Faguet (1847-1916), que foi muito influente no seu país e nos circuito literário europeu nas últimas décadas do século XIX e início do século XX. Para os padrões dos modernos estudos literários, algumas ideias de Faguet – que era colaborador do célebre Journal des Débats – podem parecer um tanto ultrapassadas e vários dos autores citados por ele, como Corneille e Racine, há tempos já não despertam muito interesse junto aos leitores contemporâneos. Porém, essa pequena obra escrita com elegância deve ser encarada mais como um testemunho de um amante da leitura que se propõe a compartilhar sua paixão com os outros que propriamente um manual de crítica.

Também deve ser levado em conta que a “arte de ler” a qual Faguet se refere no título do livro deve ser entendida como uma habilidade que, se bem aprimorada, nos torna uma espécie de virtuoses da leitura, como um pianista que executa magistralmente uma peça musical. Nesse sentido, essa “arte de ler” não deve, portanto, ser compreendida de um ponto de vista utilitário, visando objetivos exteriores à própria leitura. Como amante da leitura, para Faguet o ato de ler é um fim em si mesmo e, por isso, a sua aspiração é experimentar o máximo de prazer estético na companhia do amado, os livros.

Ora, prazer não combina com pressa – mesmo que nos seja servido o mais elaborado dos manjares, se o devoramos com sofreguidão, mal conseguimos sentir o seu gosto. Pois bem, eis a lição inicial de Faguet, já nas primeiras páginas do livro: o bom leitor é aquele que lê devagar, que mantém a mente sempre atenta, desconfiado do primeiro sentido que imediatamente lhe salta aos olhos.

Todavia, há livros que não suportam uma leitura lenta, contrapõe o autor, para em seguida emendar: “mas esses são livros que não é preciso ler em absoluto”. Assim, conforme Faguet, já teríamos o primeiro benefício desse esforço de ler com vagar: tal método faz a separação, desde o início, “entre o livro que se deve ler e o livro que só foi feito para não ser lido”.

Mas ler devagar, embora seja uma regra geral, não é o suficiente para desfrutar tudo o que podemos da leitura, tendo em vista que os diversos gêneros de obras requerem uma técnica especial e mesmo uma disposição de espírito diferente para cada um deles. E isso, convenhamos, é óbvio: não lemos um ensaio filosófico da mesma forma que percorremos as páginas de um romance de aventura. Para o primeiro, categoria que Faguet nomeia de “livros de ideias”, a leitura deve ser uma “arte de aproximação e comparação”. Traduzindo: para compreender um filósofo, devemos compará-lo continuamente com ele próprio, identificar suas contradições (“As contradições são os acidentes geográficos de um grande pensador. Ficaríamos desconsolados se estes não ocorressem em absoluto e se a paisagem fosse por demais bem elaborada”, diz ele). Enfim, manter uma discussão constante com o autor.

O prazer resultante é a alegria intelectual que o exercício do pensamento nos proporciona – o deleite da reflexão.

Uma segunda categoria de livros denominada por Faguet, os “livros de sentimentos”, compreendidos como as narrativas ficcionais cujo objetivo é retratar as emoções humanas, requerem outro tipo de atitude. Para melhor fruí-las, o ideal é se abandonar a elas, como se experimentássemos uma espécie de embriaguez. No entanto, poderíamos, usando o próprio método do autor, apresentar-lhe o seguinte questionamento: estar embriagado não é exatamente o contrário da postura reflexiva e alerta que o autor recomenda como essencial para extrair o máximo da leitura?

A resposta é que não devemos perder de vista que uma obra desse gênero visa sobretudo nos emocionar e, se não o faz, é porque fracassou. Pois não somos tocados por uma história se verdadeiramente não mergulhamos nela. Além do mais, esse “mergulho” não impede a reflexão – esta fica para um segundo momento quando, interrompida a leitura e de volta à superfície, passamos a pensar sobre o conteúdo do que lemos.

Esse poder inebriante que uma narrativa envolvente tem sobre nós, observa Faguet, guarda ainda um efeito suplementar. Ao mesmo tempo em que ele provoca uma espécie de fuga do eu – visto que, enredados pela trama, deixamos de ser nós mesmos para viver outros personagens, padecendo suas dores e deleitando-se com seus êxitos –, também proporciona um “alargamento” de nossa personalidade. Essa transformação ocorre, explica o crítico, por uma razão simples: quando, com os olhos grudados nas páginas de um livro que nos apaixona, experimentamos uma vida de empréstimo, fantasiosa e normalmente bem mais rica do que o nossa rotina entediante, ainda assim somos nós mesmos.

E o eu que retorna dessa viagem literária, ao fechar o exemplar que tem em mãos, volta sempre mais rico e engrandecido após essa experiência.

Também a realidade que nos cerca pode ganhar outros contornos, mais vivos e interessantes, em virtude de outra consequência benéfica da leitura de um bom romance: ele nos auxilia a captar a nossa própria vida que nos fugia, que escapava a nossas convicções irrefletidas. Por fim, à medida que nos aperfeiçoamos nessa arte da leitura, que nos tornamos também bons leitores, aprendemos ainda a decifrar melhor aquele que, segundo Faguet, costuma ser o manuscrito mais difícil e, acrescentemos, por vezes impenetrável: o nosso próprio eu.

O autor levanta ainda uma questão pertinente: os livros ruins merecem ser lidos? Sim, diz ele, mas apenas e na medida em que eles despertem em nós a necessidade de voltar às obras de verdadeiro valor. “É preciso fazer reconhecimentos na terra dos medíocres para voltar aos grandes com renovada capacidade de admiração”, sentencia.

Faguet encerra a obra comentando o ato de reler – que costuma surgir na velhice e cujas reações que provoca também são reveladoras daquilo que nos tornamos, porque nos leva a comparar com aquilo que fomos um dia. Um exercício que, por vezes, pode nos fazer chegar a conclusões desalentadoras.

Será que o fato de acharmos aborrecido um romance que lemos com entusiasmo há 20 anos – provoca o crítico – não é antes um sinal de que nós próprios é que nos tornamos uma pessoa tediosa e maçante?

O ato de ler, em resumo, é sempre uma aventura intensa – e desafiadora.
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Foto autoral
Texto de Rosângela Chaves  [Jornalista e professora]
Originalmente Publicado em 23 de setembro de 2020

sábado, 6 de fevereiro de 2021

HISTORIA DA LITERATURA CRISTÃ ANTIGA [Resenha 005/21]


“Adentremos então neste vasto campo da antiga literatura cristã, não só com espírito de pesquisa, mas também com gratidão e respeito para com esta grande nuvem de testemunhas que nos rodeia.”

É interessante notar que, ao mesmo tempo em que o povo cristão é bem conhecedor dos livros do Novo Testamento, outra literatura cristã, boa parte dela escrita ao mesmo tempo que os livros do Novo Testamento, é praticamente desconhecida. Entretanto, esta mesma literatura, a qual a maioria dos crentes desconhece, nos ajuda a entender o ambiente no qual se formou o Novo Testamento.

O autor escreve: “Neste livro, não trataremos dos escritos sobre o Novo Testamento, pois sobre eles já há recursos abundantes em nosso idioma, e, em todo caso, o Novo Testamento já é tão conhecido por nós que pouco se poderia dizer de novo em umas poucas páginas. Nosso estudo, portanto, começará com os escritos cristãos mais antigos que temos à parte do Novo Testamento”.

O livro possui 33 capítulos que trata da história dos escritos dos cristãos dos primeiros séculos, desde a Didaquê até João de Damasco, passando pelos pais apostólicos, pelos apologistas Irineu, Tertuliano, Orígenes, Santo Agostinho, Gregório, o Grande e muitos mais. Os capítulos estão divididos em 6 parte: Parte I – A Primeira Literatura Cristã Fora do Novo Testamento; Parte II - A Literatura Cristã no Final do Século 2º; Parte III - A Literatura Cristã no Século 3º; Parte IV - De Niceia a Constantinopla; Parte V - O Século 5º e Parte VI - O Ocaso.

Por que este livro é importante? Escutemos o que o próprio autor diz: “De igual modo, esta literatura deixada pelos nossos antepassados na fé deixa testemunho não somente de sua passagem por este mundo, mas também de sua fé, daquilo que o Senhor fez por eles, de suas dúvidas, lutas e esperanças. Ao ler seus escritos, não o fazemos somente por interesse antiquário, mas também, e sobretudo, porque estes autores são nossos irmãos e irmãs na fé. Seu testemunho segue sendo válido até nossos dias e assim será por todas as eras”.
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GONZALEZ, Justo L. História da Literatura Cristã Antiga: os escritos mais antigos à parte do Novo Testamento e seus autores. Rio de Janeiro, RJ: Editora CPAD, 2020. 496p.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

DEUS NO BANCO DOS RÉUS [Resenha 004/21]


“O homem de antigamente aproximava-se de Deus (ou dos deuses) tal qual um acusado se aproxima do juiz. Para o homem moderno, os papéis são invertidos. Ele é o juiz; Deus está no banco dos réus.” Esta idéia da relação do homem moderno com Deus é uma espécie de “fio condutor” dos 45 textos que compõem a coletânea Deus no banco dos réus. É uma publicação póstuma, de 1970, sete anos após a morte de Lewis. Os textos foram reunidos pelo editor Walter Hooper para, segundo ele, fornecer um “antídoto” contra “obras controversas – e, muitas vezes, apóstatas – de religiosos que ‘problematizam’ cada ensaio da fé que são pagos para defender”.

Os textos cobrem um período de 24 anos e incluem de tudo: palestras, cartas, artigos para jornais, artigos para publicações mais especializadas, prefácios para outros livros, entrevistas. São tipos muito diferentes de texto, dirigidos, por vezes, a públicos também muito diferentes. Ao longo do livro, Lewis faz ou uma defesa explícita da fé cristã e da sua razoabilidade, ou uma exposição de um ponto de vista cristão (atenção: um ponto de vista cristão, não necessariamente o ponto de vista cristão) a respeito de certos temas em debate na sociedade.

Os 45 textos deste livro estão divididos em quatro partes. A Parte I – com 23 ensaios - claramente teológicos, cujo assunto principal é milagres. Lewis afirmava que a fé despojada de seus elementos sobrenaturais não pode, de modo algum, ser chamada de cristianismo. Parte II - contém 16 ensaios semiteológicos. Parte III – contém 9 ensaios - cujo tema básico é ética. Parte IV, é composta por todas cartas de Lewis sobre teologia e ética que apareceram em jornais e revistas, organizadas na ordem cronológica em que foram publicadas.

O Lewis que aparece em Deus no banco dos réus é alguém que apoia a ciência e a busca pelo conhecimento, mas que desconfia profundamente daquilo que os homens podem fazer com ela. Seja usá-la para a defesa do materialismo ou do ateísmo, extrapolando as implicações de teorias ou descobertas científicas, seja para estabelecer uma tecnocracia – um dos temas, aliás, que permeiam o último volume de sua Trilogia Cósmica. Essa desconfiança não tem nada a ver com alguma característica da ciência, mas com o fato de sermos criaturas decaídas, afetadas pelo pecado. “Poderemos nos tornar ora mais beneficentes, ora mais malignos. Meu palpite é que seguiremos por ambos os caminhos; consertaremos uma coisa e estragaremos outra, eliminaremos sofrimentos antigos e produziremos sofrimentos novos, proteger-nos-emos aqui e nos arriscaremos ali” (p. 383).
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LEWIS, C. S. Deus no banco dos réus. Rio de Janeiro, RJ. Thomas Nelson Brasil, 2018. 416p.