sábado, 26 de agosto de 2017

LENDO OS SALMOS DEVOCIONALMENTE [Devocionais]


Os Salmos formam o maior conjunto de um dos gêneros mais únicos do cânon bíblico, a saber, o gênero de música e poesia. Cristãos evangélicos tendem a negligenciar esse gênero por diversas razões. Em nosso modo de pensar ocidental pós-Reforma, pós-iluminismo, a maioria pensa que as partes mais didáticas da Escritura são mais importantes porque são cheias de afirmações lógicas e proposicionais. Alguns pensam que poesia e música são, de alguma forma, menos masculinas. Isso é uma visão completamente não ortodoxa de música, adoração e masculinidade. A maioria dos homens não gostariam de encontrar com o rei Davi em um beco escuro; ainda assim, o melhor poeta e compositor que esse mundo já viu! Biblicamente falando, enxergamos um forte laço entre canto, poesia e masculinidade. Ainda há aqueles que não percebem as qualidades únicas da poesia e música hebraica. Por exemplo: a poesia hebraica tende a “rimar” pensamentos e temas, ao invés  de rimar o sons das palavras, embora também faça isso. É por essas e outras razões que muitas vezes sentimos dificuldades, quando se trata de ler qualquer poesia ou canção na Bíblia – sem falar de um livro com 150 delas!

Ao mesmo tempo, e de uma forma única e culturalmente esquizofrênica, somos obcecados com devocionais e literaturas especializadas. Queremos canja de galinha para nossa alma, o manual de estudo para a mulher e o guia devocional do homem para evangelismo no golfe. Um bufê de comida chinesa tem menos opções do que uma livraria cristã tem de material devocional extra-bíblico.

Somos uma cultura obcecada com devocionais com um pé atrás com a poesia canônica. Você está começando a ver o problema? Duas mudanças na igreja cristã contribuíram substancialmente para a forma com que os cristãos negligenciam os Salmos como material devocional.

Primeiro, cristãos agora tem acesso à Bíblia de formas que nunca tiveram antes. Da impressora ao aplicativo no celular, cristão tem aumentado cada vez mais o acesso à Palavra de Deus. Devemos notar que isso é um maravilhoso dom de nosso Deus gracioso. Mas também devemos considerar o quanto isso mudou a forma com que a comunidade cristã aborda a Bíblia. Até a Bíblia se tornar presente em todas as casas e todos os celulares, o acesso predominante à palavra inerrante de Deus para o cristão comum se dava por meio dos componentes litúrgicos, especialmente as partes cantadas, da adoração cristã. E até pouco Séculos atrás, essa era uma dieta composta quase unicamente de Salmos.

Em segundo lugar, os cristãos dos últimos dois milênios de existência da igreja da nova aliança estão cantando cada vez menos os salmos. Eu não sou contra cantarmos músicas fora do saltério, de forma alguma. Creio que devemos incluí-los como parte do repertório. Mas também é inegável que cantar salmos está em declínio na adoração cristã, não no auge.

Então temos uma série de coisas agindo em conjunto. Temos cristãos obcecados com devocionais e avessos a poesia interagindo cada vez menos com os salmos na adoração. Pode ser que esses aspectos da minha avaliação caricata do evangelicalismo tenham ressoado em você, e você gostaria de integrar os salmos na sua vida devocional. Como é que se faz isso?


6 dicas pra ler os Salmos devocionalmente

1) Encontre um plano de leitura dos salmos. Seu primeiro passo é encontra um plano de leitura dos salmos. Uma rápida busca na internet pode ser tudo o que você precisa para encontrar um que te agrade. O bom de ler os salmos sucessivamente em, digamos, um mês, é que eles não são consecutivos, logo, se você não puder fazer uma ou outra leitura, você pode começar de onde parou sem precisar pular algumas partes. Você pode até mesmo ler apenas um salmo por dia e, assim, ler todos os salmos duas vezes por ano.

2) Utilize recursos que mostram Jesus nos salmos. Tão importante quanto encontra rum plano de leitura e segui-lo é encontrar recursos que mostram como os salmos apontam para a pessoa e a obra de Jesus. As razões por que isso é tão importante é porque os autores do Novo Testamento enxergavam os salmos como material crucial para o entendimento de quem Jesus era e o que ele veio fazer. Há, aproximadamente, 147 referências diretas aos salmos no Novo Testamento. Há quase tantas citações de salmos no Novo Testamento quanto há salmos no saltério! Os salmos são fundamentalmente messiânicos.

3) Marque sua cópia dos salmos. Se há um livro da Bíblia que merece uma boa dose de marcação ou sublinhados, é o livro dos Salmos. Por que não conectar a sugestão anterior com essa e marcar todas as 147 referências do Novo Testamento a eles?

4) Ore os salmos. Isso é chave. Os salmos são, fundamentalmente, orações cantadas. Você pode não ser um cantor de salmos (veja o próximo ponto), mas você, definitivamente, deveria ser um orador de salmos. Conforme você lê os salmos, leia-os em voz alta, parafraseando como sendo suas próprias orações. Fazer isso, com o tempo, te ajudará a desenvolver uma vida de oração saudável que utiliza temas e vocabulário da própria Bíblia.

5) Cante os Salmos. Isso é um pouco mais difícil se a sua igreja não faz isso ou você não é muito musical. Mas também é possível encontrar alguns bons recursos na internet para te ajudar a fazê-lo.

6) Leia os Salmos com outros. Por último, ler os salmos com outras pessoas te dá uma perspectiva mais profunda, conforme vocês discutem o que estão aprendendo. Se você encontrou um bom plano de leitura, por que não convidar um amigo para fazê-lo junto com você? Saber que outros estão lendo os mesmos salmos ao mesmo tempo ou nos mesmos dias pode ser uma prática única e edificante.

Artigo originalmente publicado em
Reformai21.org.


terça-feira, 15 de agosto de 2017

MAIS QUE VENCEDORES [Propósito, Tema e Autoria do Apocalipse]


Em forma, simbolismo, propósito e significado, o livro do Apocalipse é de uma beleza que as palavras não podem descrever. Onde, em toda a literatura, encontraríamos qualquer coisa que possa superar a majestosa descrição do Filho do homem andando no meio dos sete candeeiros (Ap 1.12-20), ou do vívido retrato de Cristo, Fiel e Verdadeiro, avançando até a vitória, montado num cavalo branco, com uma vestimenta respingada de sangue, seguido dos exércitos celestiais (19.11-16)? Onde, além do mais, encontraríamos contraste mais marcante do que este entre o juízo da Babilônia, de um lado, e o regozijo da Jerusalém de Ouro, de outro (18.19; 21.22)? E onde mais o trono celeste e a bênção da vida celestial são retratados de maneira mais serenamente simples e, ainda assim, mais bela em sua simplicidade (4.2-5.14; 7.13-17)? Que riqueza de consolação; que visão e entendimento do futuro; sobretudo, que revelação do amor de Deus estão contidos nas palavras da profecia desse livro!


I. O Propósito do Livro 

No geral, o propósito do livro do Apocalipse é confortar a Igreja militante nas lutas contra as forças do mal. E cheio de auxílio e de consolação para os cristãos sofredores perseguidos. A esses é dada a segurança de que Deus vê suas lágrimas (7.17; 21.4); suas orações são influentes nos negócios do mundo (8.3, 4) e sua morte é preciosa aos olhos do Senhor. A vitória final lhes é assegurada (15.2); seu sangue será vingado (19.2); seu Cristo vive e reina para sempre e sempre. Ele governa o mundo e os interesses da sua Igreja (5.7, 8). Ele está voltando de novo para tomar seu povo para si mesmo na "festa das bodas do Cordeiro" e para viver para sempre com ele num universo rejuvenescido (21.22). Quando pensamos na esperança gloriosa da segunda vinda, nosso coração se enche de alegria; nossa alma se consome com tal impaciência que nos tira o fôlego; nossos olhos tentam penetrar as negras nuvens que velam o futuro, esperando que a descida gloriosa do Filho do homem irrompa à nossa vista. É um anseio profundo que explode em palavras: "o Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve diga: Vem!" (22.17). Quando, porém, consideramos essas verdades, descobrimos que eleja está conosco - conosco no Espírito, andando no meio dos sete candeeiros (1.12-20). "...Porém, ele pôs sobre mim a mão direita, dizendo: Não temas; eu sou o primeiro e o último, e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e do inferno". Somos, verdadeiramente, mais do que vencedores por meio daquele que nos amou.


II. O Tema do Livro 

O tema é a vitória de Cristo e de sua Igreja sobre o dragão (Satanás) e seus seguidores. O Apocalipse tem o objetivo de nos mostrar que as coisas não são como parecem ser. A besta que sobe do abismo parece ser vitoriosa. Ele "pelejará contra elas e as vencerá e as matará, e o seu cadáver ficará estirado na praça da grande cidade que, espiritualmente, se chama Sodoma e Egito, onde também o seu Senhor foi crucificado. Então, muitos dentre os povos, tribos, línguas e nações contemplam os cadáveres das duas testemunhas, por três dias e meio, e não permitem que esses cadáveres sejam sepultados. Os que habitam sobre a terra se alegram por causa deles, realizarão festas e enviarão presentes uns aos outros, porquanto esses dois profetas atormentaram os que habitam sobre a terra". (11.7-10). Esse regozijo, porém, é prematuro. Na realidade, o crente é quem triunfa. "Mas, depois dos três dias e meio, um espírito de vida, vindo da parte de Deus, neles penetrou, e eles se ergueram sobre os pés, e àqueles que os viram sobreveio grande medo... O sétimo anjo tocou a trombeta, e houve no céu grandes vozes, dizendo: o reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo" (11.11, 15). 

Em todas as profecias desse livro maravilhoso, Cristo é retratado como o Vitorioso, o Conquistador (1.18; 2.8; 5.9ss.; 6.2; 11.15; 12.9ss.; 14.1, 14; 15.2ss.; 19.16; 20.4; 22.3). Ele conquista a morte, o Hades, o dragão, a besta, o falso profeta e os homens que adoram a besta. Ele é vitorioso; como resultado, nós também o somos, mesmo quando parecemos tão desesperadamente vencidos.

Olhemos, por exemplo, a grande companhia de crentes descritos no capítulo 7. Suas vestes estavam imundas, mas foram lavadas no sangue do Cordeiro e tornadas brancas. 

Estavam em "grande tribulação", mas saíram dela (7.14). Foram mortos, mas ergueram-se nos seus pés (11.11). Foram perseguidos pelo dragão, pela besta e pelo falso profeta, mas, no final, os vemos postados vitoriosos no Monte Sião. Vemos o Cordeiro, e com ele os cento e quarenta e quatro mil que têm o seu nome e o nome de seu Pai escrito na fronte (14.1). Eles triunfam sobre a besta (15.2). 

Parece-nos que suas orações não foram ouvidas (6.10)? Os juízos lançados contra a terra são respostas de Deus aos seus pedidos (8.3-5). Essas mesmas orações são a chave que solverá os mistérios da filosofia da História. 

Parece que os crentes foram vencidos? Na verdade, eles reinam! Sim, eles reinam sobre a terra (5.10), no céu, com Cristo, por mil anos (20.4), e no novo céu e nova terra para todo o sempre (22.5). 

O que, então, acontece àqueles que parecem ter vencido, o dragão (12.3), a besta (13.1), o falso profeta (13.11) e a Babilônia (14.8)? Eles são vencidos - e exatamente na ordem reversa. A Babilônia cai em 18.2, a besta e o falso profeta são horrivelmente punidos em 19.20, e o dragão é confinado a um tormento sem-fim em 20.10. 

Resumindo, o tema desse livro é colocado mais gloriosa e completamente nestas palavras: "Pelejarão eles contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão também os chamados, eleitos e fiéis que se acham com ele" (17.14).


III. As Pessoas às Quais o Livro é Endereçado

Sobre a minha escrivaninha repousa um comentário sobre o Apocalipse recentemente publicado. É um livro muito "interessante". Vê o Apocalipse como um tipo de História escrita de antemão. Descobre nesse último livro da Bíblia copiosas e detalhadas referências a Napoleão, guerras nos Bálcãs, a grande Guerra Européia de 1914-1918, o ex-imperador alemão Wilhelm, Hitler e Mussolini e daí por diante. Esses tipos de explicações, porém, e outros como esses, devem ser postos totalmente de lado.[1] Pois que benefício os cristãos sofredores e severamente perseguidos dos dias de João poderiam derivar de predições específicas e detalhadas em relação às condições européias que prevaleceriam perto de dois mil anos depois? 

Uma interpretação sadia do Apocalipse deve ter seu ponto de partida colocado na posição de que o livro foi escrito para os crentes que viviam nos dias e época de João. O livro deve sua origem, ao menos em parte, às condições contemporâneas. É a resposta de Deus às orações e lágrimas dos cristãos severamente perseguidos e espalhados pelas cidades da Ásia Menor.[2]

Não obstante, embora seja verdadeiro que devemos partir da posição de que o livro do Apocalipse foi escrito para os crentes dos dias e época em que João viveu, e que devemos até mesmo enfatizar o fato de que as condições que realmente prevaleceram durante as últimas décadas do século 1º A.D. forneceram a ocasião imediata para essa profecia, deveríamos, igualmente, dar a mesma proeminência ao fato de que esse livro foi escrito não só para os crentes que primeiro o leram, mas para todos os crentes através desta dispensação toda.

Oferecemos os seguintes argumentos em defesa desta posição. 

Primeiro, a aflição a que a Igreja estava sujeita nos dias do apóstolo João é típica da perseguição que os verdadeiros crentes têm de suportar através de toda a presente dispensação (1 Tm 3.12), e especialmente logo antes da segunda vinda de Cristo (Mt 24.29, 30). 

Segundo, muitas das predições abundantes no livro (por exemplo, "selos", "trombetas" e "taças") dizem respeito a princípios e acontecimentos tão largos em seu escopo que não podem ser confinados a um ano específico ou a um período de anos, mas que atravessam os séculos, alcançando a grande consumação. 

Terceiro, as cartas nos capítulos 2 e 3 são endereçadas às sete igrejas. Sete é o número que simboliza algo acabado e perfeito. Seu uso aqui indica que a Igreja como um todo está na mente do autor e que as admoestações e consolações do livro foram dirigidas aos cristãos crentes ao longo dos séculos.

Finalmente, todos aqueles que leem e estudam esse livro, em qualquer época, são abençoados (1.3). Tanto no início como na conclusão do livro, o autor se dirige não somente a um grupo de homens que vivem numa década, mas a "todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro" (22.18).


IV. O Autor do Livro 

O autor nos diz que seu nome é João (1.1, 4, 9; 22.8). A questão, porém, é: que João? Alguns negam que João, o discípulo amado, tenha escrito o Apocalipse. Isso é, em parte, devido ao fato de que enquanto o autor do Quarto Evangelho e das três Epístolas do amor jamais menciona neles o seu nome, o autor do Apocalipse diz que o seu nome é João. 

Novamente, é dito que há uma grande diferença entre o estilo e tom geral do Evangelho e das Epístolas, por um lado, e do Apocalipse, de outro. Mas leia o Evangelho de João e, depois, leia o Apocalipse. E possível notar a diferença? No primeiro, as idéias fluem correntemente; no último, elas são apresentadas de modo abrupto - nunca se sabe o que o autor dirá a seguir. O primeiro enfatiza o amor de Deus; o último - assim se diz -enfatiza sua severa justiça. O primeiro descreve a condição interior do coração; o último se posta no curso externo dos eventos. O primeiro é escrito em grego belo e idiomático; o último é escrito no assim chamado "grego rude, hebraísta e bárbaro".[3]

E dito também que há uma diferença marcante entre a doutrina do Evangelho e a do Apocalipse. O primeiro é de mente aberta, universalista; prega o evangelho "para todos" e a doutrina da salvação pela graça. O último, diz-se, é de mente fechada, particularista; é judaico em sua doutrina da salvação e enfatiza a necessidade de boas obras.[4]

Finalmente, é observado que, logo no século 32 A.D., Dionísio de Alexandria atribuiu o livro do Apocalipse a "outro João", uma visão que foi adotada por Eusébio, o historiador eclesiástico. 

Alguns estão convencidos por esses argumentos que algum outro João, que não o discípulo amado, foi o escritor do Apocalipse.[5] Crêem ainda que João, o apóstolo tenha sido o responsável pelo Quarto Evangelho, Outros aceitam a autoria joanina do Apocalipse, mas propõem alguma outra pessoa - talvez outro João, ou nem mesmo um João - para a autoria do Evangelho.[6] E, é claro, há aqueles radicais que negam que o apóstolo João tenha escrito quer o Evangelho quer o Apocalipse.[7]

Examinemos, porém, por alguns instantes, os argumentos. O primeiro impressiona pela sua fraqueza. Certamente o próprio fato de que o autor do Apocalipse simplesmente se chama de João, indica que ele era bastante conhecido, não só numa localidade em particular, mas por todas as igrejas da Ásia. Quando ele simplesmente se chama de João, sem qualquer designação adicional, todos sabiam exatamente de quem se tratava. Não parece certo que essa pessoa bastante conhecida tenha sido o apóstolo João? Suponha que o autor deste livro que você está lendo se apresente simplesmente como William; poder-se-ia pensar por um minuto que todos, imediatamente, tivessem idéia de quem o escreveu? Estamos plenamente convencidos não somente de que havia um só João que não precisa acrescentar "o apóstolo" ao seu nome, pela simples razão de que era suficientemente conhecido como o apóstolo! Além disso, o autor não se chama de apóstolo porque ele escreveu o livro na posição do observador a quem as visões foram reveladas (cf. Jo 15.27; At 1.22, 23; I Co 9.1). ]

A diferença na gramática, no estilo e no tom geral tem de ser admitida. Mas isso significa que João, o apóstolo, não possa ter escrito o Apocalipse? Em nossa opinião, não. Como, então, explicaremos a diferença? Alguns defendem a idéia de que, quando João escreveu o Evangelho, teve assistentes, talvez os presbíteros de Éfeso; e que a ausência desses assistentes quando estava em Patmos seja responsável pela gramática e pelo estilo peculiares do Apocalipse.[8]

Outros elementos podem entrar nessa explicação. Primeiro, não deveríamos exagerar as diferenças em estilo e linguagem. Entre o Evangelho e o Apocalipse há também um corpo forte de semelhanças - um fato que, muito tarde, alguns estão começando a enfatizar. As semelhanças são marcantes. São encontradas até em construções gramaticais peculiares e em expressões características {cf. Jo 3.36 com Ap 22.17; Jo 10.18 com Ap 2.27; Jo 20.12 com Ap 3.4; Jo 1.1 com Ap 19.13; e Jo 1.29 com Ap 5.6).[9]

De novo, com referência ao estilo, deveríamos nós esperar que encontraríamos o mesmo estilo numa série de eventos históricos (o Evangelho), numa carta pessoal (as Epístolas) e numa revelação (o Apocalipse)? Nessa correlação, não nos esqueçamos que, quando João escreveu o último livro da Bíblia, sua alma estava em tal condição de profunda emoção interior, surpresa e êxtase (pois ele estava "no Espírito") que sua formação judaica deve ter exercido maior pressão, podendo até ter influenciado seu estilo e linguagem. 

Temos por certo que a natureza transcendente do objeto em questão, do profundo estado emocional do autor quando recebeu e registrou essas visões, e seu abundante uso do Antigo Testamento - hebraico e grego[10] - são, em grande parte, responsáveis pelas diferenças em estilo que permanecem depois das marcantes semelhanças já levantadas. 

Devemos não nos demorar tanto na assim chamada diferença de ênfase doutrinária. O fato é, simplesmente, que o Quarto Evangelho e o Apocalipse não se chocam em um único ponto. Na verdade, a concordância na doutrina é extraordinária.[11] O Evangelho chama Jesus de Cordeiro de Deus (amnos) em João 1.29; o mesmo faz o Apocalipse (arnion), 29 vezes. As Epístolas e o Evangelho usam o título "o Verbo" em relação ao Senhor (Jo l.lss.; 1 Jo 1.1); o mesmo faz o Apocalipse (19.13). O Evangelho representa Cristo como ser pré-temporal e eterno (l.lss.); o mesmo faz o Apocalipse (22.13; cf. 5.12, 13). O Evangelho de João atribui a salvação do homem à soberana graça de Deus e ao sangue de Jesus Cristo (1.29; 3.3; 5.24; 10.10,11); o mesmo faz o Apocalipse (7.14; 12.11; 21.6; 22.17) - muito enfaticamente. E a doutrina do "todo aquele que" é encontrada em ambos os livros (Jo 3.36; Ap 7.9; 22.17). 

Não há diferenças doutrinárias! 

Finalmente, em relação à opinião de Dionísio, já citado, deveria estar claro que sua visão se baseia sobre um mal entendimento da leitura de uma cuidadosa declaração de Papias,[12] e foi influenciada, provavelmente, pela oposição ao quiliasmo,[13] que buscava justificar-se apelando ao livro do Apocalipse.[14]

A Igreja primitiva é quase unânime em atribuir o livro do Apocalipse ao apóstolo João. Essa era a opinião de Justino Mártir (c. 140 A.D.), de Irineu (c. 180 A.D.), que foi um discípulo de um discípulo de João, do Cânon Muratório (c. 200 A.D.), de Clemente de Alexandria (c. 200 A.D.), de Tertuliano de Cartago (c. de 220 A.D.), de Orígenes de Alexandria (c. 223 A.D.) e de Hipólito (c. 240 A.D.).[15]

Quando somamos a isso tudo que, segundo uma tradição muito forte, o apóstolo João foi banido para a ilha de Patmos (cf. 1.9), e que ele passou os últimos anos de sua vida em Efeso, a quem a primeira das cartas do Apocalipse foi dirigida (2.1), a conclusão de que o último livro da Bíblia foi escrito pelo "discípulo a quem Jesus amava" é inevitável. 


V A Data do Livro 

Levanta-se agora a questão: Quando João escreveu o Apocalipse? No ano 69 (ou antes), ou devemos inverter os números e considerar 96 (ou 95)? Ninguém pode encontrar um único argumento realmente coerente para apoiar uma data mais antiga. Todos os argumentos apresentados baseiam-se em testemunhos distantes e não-confiáveis, sobre a idéia totalmente imaginária de que João não tivesse ainda aprendido seu grego quando escreveu o Apocalipse, e sobre uma questionável interpretação literal de certas passagens que, muito certamente, têm significado simbólico. Assim, por exemplo, é-nos dito que o Templo de Jerusalém estava ainda em pé quando o Apocalipse foi escrito, pois em 11.1 está escrito: "Dispõe-te e mede o santuário de Deus". 

A data mais recente tem grande apoio. Irineu diz: "Pois que (a visão apocalíptica) era vista não muito tempo antes, mas quase nos nossos próprios dias, mais próximo do fim do reinado de Domiciano." E além disso ele diz: "...a Igreja em Efeso, fundada por Paulo, e residência de João até o tempo de Trajano (98-117 A.D.), é verdadeiro testemunho da tradição dos apóstolos".[16]

Quando, em conexão com essas fortes e definitivas evidências, nos lembramos de que o Apocalipse reflete uma época em que Efeso já havia realmente perdido o seu primeiro amor; em que Sardes já estava "morta"; em que Laodicéia - que foi destruída por um terremoto durante o reinado de Nero - já havia sido reconstruída e se vangloriava de sua riqueza espiritual (3.17); em que João já havia sido "banido" - uma forma muito comum de perseguição durante o reinado de Domiciano; em que a Igreja já havia suportado perseguições no passado (20.4); e em que o Império Romano, como tal, já havia se tornado o grande opositor da Igreja (17.9); quando nos lembramos de todos esses fatos, somos forçados a concluir que uma data mais recente (A.D. 95 ou 96) é a correta.[17] O Apocalipse foi escrito próximo do final do reinado de Domiciano, pelo apóstolo João. 

Ainda assim, o verdadeiro autor não é João, mas o próprio Todo-poderoso, Deus. "Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer, e que ele... notificou ao seu servo João..." (1.1). Certamente João, o apóstolo, escreveu o livro do Apocalipse. Mas Deus, por meio de Cristo, foi o verdadeiro Autor. Portanto, o que esse livro prediz não é produto de gênio humano, tendente ao erro, mas a revelação da mente e do propósito de Deus com respeito à História da Igreja. 

Em Copenhague, entre as muitas nobres esculturas de Thorwaldsen, há uma do apóstolo João. Seu semblante irradia uma serenidade celestial. Ele está olhando para o céu. Seu bloco de papel está diante dele. Na sua mão há uma pena de escrever. Mas a pena não toca o papel. Ele não se aventurará a escrever uma só palavra até que do céu ela lhe seja concedida.[18]

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HENDRIKSEN, William. Mais que Vencedores: Os mistérios do Apocalipse desvendados com profundidade e fidelidade. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p.14-24

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[1] Para uma nota descritiva sobre as diversas teorias de interpretação, ver M. C. Tenney, New Testament Survey (I.V.F.), pp. 387SS.; e L. Morris, art. "Book of Revelation" em The New Bible Dictionary (I.V.F.).
[2] Ver o Capítulo Seis, pp. 67s., para mais discussão sobre esse ponto.
[3] Guscbius, Ecclesiastical History, vil 25.
[4] W. Bcyschlag, New Testament Theology, II, p. 362.
[5] Ver, por exemplo, os escritos de F. Bleek e J. N
[6] Essa visão é mantida pela escola de Tübingen.
[7] Bousset, Harnack, Holtzmann, e Moffatt, estão entre esses.
[8] Uma explicação interessante é dada por A. Pieters, The Lamb, the Woman, and lhe Dragon, pp. 18ss. Ver também A. T. Robertson, Word Pictures, VI, p. 274.
[9] Para mais semelhanças entre o Evangelho e o Apocalipse, ver J. P. Lange, The Revelation of John (Commentary cf the Holy Scriptures, The New Testament, X), pp. 56ss.
[10] Ver A. T. Robertson, The Minister and His Greek New Testament, p. 113.
[11] Para uma pesquisa sobre o assunto todo, ver H. Gebhardt, The Doctrine of the Apocalypse, especialmente pp. 304ss.; e G. B. Stevens, The Theology of the New Testament, pp. 536ss. e 547.
[12] Ver a discussão em R. C. H. Lenski, Interpretation of St. John's Revelation, pp. 8ss.
[13] Do grego chilioi, "1000", um termo usado para descrever o ponto de vista escatológico que enfatiza fortemente o caráter do milenarismo.
[14] N. B. Stonehouse, The Apocalypse in the Ancient Church, p. 151.
[15] Anfe-Nicene Fathers, I-III. Ver também N. B. Stonehouse, op. cit., pp. 153ss
[16] Ante-Nicene Fathers, I, pp. 416, 559.
[17] Para uma data mais recente, ver H. Cowles, The Revelation ofSt. John, pp. 17ss. Entre os que defendem data mais antiga estão Alford, Godet, Moffatt, Ramsay, Swete, Warfield e L. Berkhof em seu New Testament Introduction, pp. 347ss
[18] Ver A. Plummer, The Book of Revelation (Pulpit Commentary), p. 150.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

O FOCO EVANGÉLICO DE CHARLES SPURGEON


Saudado como o maior pregador da Inglaterra do Século XIX, podemos defender que Charles Haddon Spurgeon foi o pregador mais proeminente de qualquer século. Considerado o expositor mais bem sucedido dos tempos modernos, Spurgeon lidera virtualmente toda lista de pregadores de renome. Se João Calvino foi o maior teólogo da igreja, Jonathan Edwards o maior filósofo, e George Whitefield o maior evangelista, certamente Spurgeon lidera como seu maior pregador. Jamais um homem se postou atrás de um púlpito, semana apos semana, ano após ano, por quase quatro décadas, pregando o evangelho com maior sucesso mundial e impacto duradouro do que Spurgeon. Ate hoje, ele permanece sendo o"Príncipe dos Pregadores.

Através dos séculos, expositores como Martinho Lutero, Ulrich Zuínglio, João Calvino e inúmeros outros, tiveram compromisso de pregar expondo livros inteiros da Bíblia versículo por versículo. Contudo, não era essa a abordagem de Spurgeon.  Embora fosse "pregador expositivo por excelência, Spurgeon extraía suas mensagens de um livro da Bíblia diferente a cada semana. Esse estilo livre o destacou de outros grandes pregadores, colocando-o primeiro e mais notavelmente, como expositor evangelístico.

Por todo seu prolífico ministério, Spurgeon era consumido por zelo pelo evangelho. Sua prática era isolar um ou alguns versículos como trampolim para a proclamação do evangelho. Ele afirmava: “Tomo o meu texto e sigo em linha direta até a cruz.” Cada vez que Spurgeon subia ao púlpito, ele visava intensamente a salvação dos pecadores mediante a proclamação da mensagem salvadora de Jesus Cristo. Como disse Hughes Oliphant Old, Spurgeon foi enviado "em um tempo determinado, a um lugar específico, para pregar o evangelho da salvação eterna das almas para a glória eterna de Deus”. Talvez ninguém possa ser comparado a Spurgeon como pastor evangelista.

Embora ele amasse profundamente a teologia, Spurgeon declarou: "Prefiro levar um pecador a Cristo que desvencilhar todos os mistérios da Palavra divina". Ele tinha verdadeiro prazer na busca da salvação dos perdidos. Eis como Spurgeon descreveu a importância central do evangelismo em seu ministério:

“Prefiro ser o meio para a salvação de uma alma da morte que ser o maior orador sobre a terra. Prefiro conduzir a mulher mais pobre do mundo aos pés de Jesus que ser o Arcebispo da Cantuária. Prefiro arrancar uma única brasa do fogo que explicar todos os mistérios. Ganhar uma alma, evitar que ela vá à cova, é um feito mais glorioso do que ser coroado na arena da controvérsia teológica... desvendar fielmente a glória de Deus na face de Cristo será, no julgamento final, considerado serviço mais digno que desvencilhar os problemas da Esfinge religiosa ou cortar o nó gordíano das dificuldades apocalípticas. Um de meus mais felizes pensamentos é que, quando eu morrer, será meu privilégio estar junto ao peito de Cristo, e sei que não gozarei do céu sozinho. Milhares já entraram ali, atraídos a Cristo no meu ministério. Ah! Que gozo será voar para o céu e encontrar uma multidão de convertidos antes e depois de mim.”

Entender esse foco evangelístico de Spurgeon é sentir o pulso do seu próprio coração. Compreender esse seu zelo evangelístico é tocar o nervo vivo de sua alma. Em termos simples, Spurgeon era compelido a pregar o evangelho e ajuntar os perdidos. Como expositor, Spurgeon possuía verdadeiro coração de um ganhador de almas.

Vamos iniciar nossa avaliação do ministério evangélico de Spurgeon considerando sua vida e legado extraordinários.


NASCIDO E NASCIDO DE NOVO

Descendente de huguenotes franceses e reformados holandeses, Charles Haddon Spurgeon nasceu em 19 de junho de 1834, em uma pequena casa em Kelvedon, Essex, Inglaterra. Muitos de seus antepassados protestantes tinham sido expulsos de suas terras natais pela perseguição, e se refugiaram na Inglaterra. Spurgeon costumava dizer: “Muito prefiro ser descendente de alguém que sofreu pela fé do que ter correndo em minhas veias o sangue de todos os imperadores”. Seu pai, John, e seu avô James, eram, ambos, ministros independentes que pastoreavam fielmente suas congregações. Charles foi o mais velho de dezessete filhos. Seu irmão mais novo, James, mais tarde serviria como seu co-pastor no Tabernáculo Metropolitano de Londres. Os filhos gêmeos de Charles também o seguiriam no ministério.

Quando sua mãe estava prestes a dar à luz ao segundo filho, o pequeno Charles, de dois anos de idade, foi mandado para Stambourne, cidade próxima, para morar com seu avô, onde permaneceria até os seis anos de idade. Durante esse período e em visitas subseqüentes ao avô, Charles foi exposto a muitas obras puritanas, incluindo O Peregrino de John Bunyan, o Chamado aos Não Convertidos, de Richard Baxter, e Alarme aos não convertidos, de Joseph Alleine. Apesar da influência espiritual de sua família e de ter sido exposto a tais livros, Spurgeon permanecia não convertido. Ele relembra: “Desde minha mocidade eu ouvira o plano da salvação pelo sacrifício de Jesus, mas não sabia mais em minha alma interior do que se eu tivesse nascido e sido criado como hotentote. Lá estava a luz, mas eu era cego”.

No domingo pela manhã, em 6 de janeiro de 1850, aos quinze anos. Charles caminhava para a igreja no vilarejo de Colchester, quando uma tempestade de neve o impeliu a se abrigar em uma pequena igreja metodista primitiva. Só havia uma dúzia de pessoas assistindo, e mesmo o pastor não conseguiu chegar. Um pastor leigo relutante foi à frente para explicar o texto de Isaías 45.22: “Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra; porque eu sou Deus, e não há outro". Essa figura humilde exortava a pequena congregação a olhar pela fé somente para Jesus Cristo. Fitando os olhos no jovem Spurgeon, ele instou:

- Jovem, olhe para Jesus. Olhe, olhe! Olhe! Você nada mais tem a fazer do que olhar para Jesus e viver!

Como uma seta mandada pelo arco do céu, o evangelho atingiu o alvo que intencionou. Escreveu Spurgeon: "Imediatamente eu vi o caminho da salvação. Foi como quando a serpente de bronze foi levantada, as pessoas olharam e foram curadas - assim aconteceu comigo". Olhando pela fé para Cristo, foi convertido de forma dramática. Consumido pela alegria, mal podia se conter, "mesmo por cinco minutos, sem tentar fazer alguma coisa por Cristo". Essa energia sem limites marcaria sua vida daquele momento em diante. Em 4 de abril, 1850, foi admitido à comunhão da Igreja Batista St. Andrews, sendo logo depois batizado e participando pela primeira vez da Ceia do Senhor.

Com zelo crescente, Spurgeon, aos dezesseis anos, pregou seu primeiro sermão em uma pequena casa em Teversham, perto de Cambridge. Seu dom para a pregação foi imediatamente reconhecido. Com apenas dezessete anos, Spurgeon foi feito pastor de uma igreja Batista rural no minúsculo vilarejo de Waterbeach. Na Capela Batista de Waterbeach, Spurgeon pregou o evangelho com poder extraordinário e resultados marcantes. Apesar de estar em uma vila conhecida por seus hábitos devassos, essa humilde capela batista cresceu nos dois anos seguintes, de quarenta para mais de cem membros.


CAPELA DE NEW PARK STREET

Relatos a respeito desse prodígio da pregação logo chegaram a Londres. Em 18 de dezembro de 1853, Spurgeon foi convidado a pregar na maior e mais famosa igreja Batista calvinista de Londres, a nova capela da Park Street. Essa igreja histórica, ferrenhamente calvinista, tinha sido pastoreada por homens ilustres tais como Benjamin Keach (1640-1704), John Gill (1697-1771), e John Rippon (1750-1836), mas tinha caído em sério declínio. Apenas umas duzentas pessoas estavam se reunindo em um prédio que havia sido construído para abrigar mil e duzentas. Após pregar ali por três meses, Spurgeon, aos dezenove anos, foi chamado para pastorear ali. Ele pastoreou fielmente o rebanho de New Park Street até a sua morte trinta e oito anos mais tarde.

Com a pregação de Spurgeon, a Capela de New Park Street cresceria instantaneamente. Dentro de poucos meses, a congregação estaria com quinhentos membros assistindo com regularidade. Depois do primeiro ano, o prédio não podia conter as multidões que vinham ouvir sua pregação. A capela foi aumentada para caber mil e quinhentas pessoas, e depois, mais quinhentas em pé. Assim mesmo, as pessoas estavam abarrotadas contra as paredes e pelos corredores, apertadas nos peitorais das janelas. Logo a igreja começou a distribuir ingressos para as pessoas assistirem até mesmo o culto do meio da semana. As ruas ficaram impedidas pelo trânsito no bairro em volta da capela. Londres não havia testemunhado surgimento tão meteórico desde os dias da pregação empolgante de George Whitefield.

Em meio a esse imenso crescimento. Charles conheceu Susannah Thompson, membro de sua congregação. Da amizade logo nasceu a atração, e os dois se casaram em 8 de janeiro de 1856, na Capela de New Park Street, que transbordava de convidados. O afeto que tinham um pelo outro jamais diminuiu. Infelizmente, após o nascimento dos filhos gêmeos no fim de 1856, Susannah ficou semi-inválida. Confinada a sua casa durante longos períodos em toda sua vida adulta, Susannah não podia ouvir Charles pregar. Apesar dessa aflição, permaneceu como fonte de forte encorajamento para ele, supervisionando um ministério profícuo que oferecia os livros de seu marido para o uso de pastores e missionários.

Logo as multidões forçaram a mudança da igreja para Exeter Hall, um enorme prédio público onde cabiam quatro mil assentados, e lugar para mais mil pessoas de pé. Porém, mesmo essa grande estrutura foi insuficiente para conter as multidões crescentes. Centenas de pessoas eram mandadas embora a cada semana, e ficou claro que teriam de construir um prédio maior para a congregação que crescia tão rapidamente. Foram feitos planos para o que se tornaria o famoso Tabernáculo Metropolitano, a maior casa de culto protestante de todo o mundo.

Enquanto isso, Spurgeon mudou sua congregação crescente para um lugar ainda maior, o Salão Musical dos Jardins Reais de Surrey. Este imenso edifício, com três  grandes sacadas, tinha lugar para doze mil pessoas sentadas. No primeiro culto, em 19 de outubro de 1856, a gigantesca estrutura ficou cheia desde o chão até o teto, e milhares foram mandados embora. Mas sucedeu a catástrofe: alguém na galeria gritou: Fogo! Seguiu-se o pânico e, enquanto as pessoas corriam para fugir, muitas foram pisoteadas e várias morreram - uma tragédia que deixou desolado o jovem Spurgeon.

Faltando apenas um domingo, Spurgeon voltou a pregar às imensas multidões. Com descrentes incontáveis assistindo, cada culto era ocasião de evangelismo. Spurgeon e outros conversavam com os convertidos às terças-feiras à tarde. Tantas almas perdidas foram salvas que Spurgeon disse que nunca havia pregado sermão no Salão de Música sem que Deus não salvasse alguém. Numa época quando Londres era a metrópole mais famosa do mundo, seu povo abraçou Spurgeon como ninguém jamais aceitara outro pregador.


PRIMEIRAS PROVAÇÕES E TRIUNFOS

Contudo, nem tudo corria bem. Com a popularidade instantânea de Spurgeon, veio também forte oposição a ele. A imprensa londrina difamava-o como sendo religioso grosseiro com motivações egoístas. Repetidamente, foi objeto de zombaria, chamado de "demagogo de Exeter Hall", "bufão do púlpito", e "maravilha de nove dias".  Além disso, defensores da teologia arminiana o atacavam com o que julgavam ser o pior de todos os insultos, chamando-o de "pavoroso calvinista". Por sua vez, os hiper-calvinistas o criticavam por ser aberto demais em oferecer o evangelho de graça a todos. Spurgeon admitia: "Meu nome é chutado pelas ruas como uma bola de futebol".

Providencialmente, essa perseguição atraiu mais aliados ao seu lado, especialmente pregadores jovens. Embora Spurgeon não tivesse grau universitário e não tivesse freqüentado o seminário, fundou a Faculdade de Pastores (Pastor's College) quando contava apenas vinte e dois anos de idade. Enfocando o treinamento de pregadores, não de acadêmicos, ele admitia somente aqueles que já estavam ocupando algum púlpito. Durante os primeiros quinze anos, Spurgeon assumia pessoalmente todas as despesas do curso com a venda de seus sermões semanais. Além disso, ele fazia palestras aos alunos às tardes de sexta-feira, destacando algum aspecto específico da pregação do evangelho. Essas palestras tomaram-se o texto de seu amado livro, Lectures to my students (Lições aos meus alunos). Durante sua vida, Spurgeon viu quase mil homens treinados ao ministério em sua faculdade.

Em 1857, a Inglaterra sofreu uma trágica derrota na índia, e foi proclamado um Dia de Humilhação Nacional. Em 7de outubro, quando tinha apenas vinte e três anos, Spurgeon pregou no gigantesco Palácio de Cristal a um auditório de 23.654 pessoas – o maior ajuntamento de pessoas em um recinto fechado de seus dias. Os trens corriam por Londres levando as pessoas a ouvir a mensagem extraída de Miqueias 6.9: "Ouvi, ó tribos, aquele que a cita". Esse discurso nacional era forte declaração sobre a soberania de Deus sobre a Inglaterra. A derrota, disse Spurgeon, provinha de Deus com o intuito de humilhar a nação orgulhosa.

Por meio de seus sermões impressos, a influência de Spurgeon se espalhou por toda a Inglaterra e pelo mundo. Na segunda-feira de manhã, o sermão escrito de Spurgeon era entregue para ser editado, e na quinta-feira, era publicado. Estes sermões eram então vendidos por um penny cada, e assim, as mensagens eram chamadas "The Penny Pulpit" (O púlpito de um centavo). Mais de vinte e cinco mil cópias eram vendidas a cada semana. Esses sermões eram ainda telegrafados pelo Atlântico para os Estados Unidos, onde eram impressos pelos grandes jornais. Eventualmente, foram traduzidos para quarenta línguas e distribuídos por todo o globo. Os sermões eram vendidos por distribuidores de folhetos, lidos nos hospitais, levados às prisões, pregados por leigos, guardados com carinho por marinheiros elevados adiante por missionários. Pela palavra impressa, estima-se que a congregação de Spurgeon chegava a não menos que um milhão de pessoas.


UMA ONDA CRESCENTE DE REAVIVAMENTO

O ano de 1859 foi o mais extraordinário do ministério de Spurgeon. Foi o último ano em que sua igreja se reuniu no Salão de Música de Surrey. Um tempo de fervoroso reavivamento foi experimentado sob os sermões mais calvinistas, e no entanto mais evangelísticos, de seu ministério. Essas mensagens de poder do Espírito incluíram: "Predestinação e chamado" (Rm 8.30), "A necessidade da Palavra do Espírito" (Ez 36.27), "A história dos poderosos feitos de Deus" (SI 44.1), e "O sangue da eterna aliança" (Hb 13.20).

No entanto, essa surpreendente estação nos jardins de Surrey terminou abruptamente. Spurgeon ficou sabendo que a igreja de New Park Street teria de compartilhar o local com programas de diversão aos domingos, que ele considerava uma quebra da guarda do dia de descanso. Spurgeon disse que mudaria os cultos, caso tais entretenimentos fossem permitidos. Mas os proprietários do Music Hall recusaram ceder. Por sua vez, o jovem pregador declarou: "Se eu cedesse, meu nome deixaria de ser Spurgeon. Não posso ceder naquilo que sei ser o certo, e não o farei. Na defesa do santo sábado do Senhor, o grito deste dia é; “Levantemo-nos e saiamos daqui!”. Para não fazer concessões, Spurgeon mudou sua congregação de volta ao Exeter Hall com espaço bem menor, demonstrando ser homem de
princípios e não pragmatismo.

Em 11 de dezembro de 1859, em seu último sermão no Music Hall, Spurgeon pregou sobre "O adeus do ministro”, fazendo uma exposição de Atos 20.26-27, em que anunciou ter declarado, nesse lugar, "todo o conselho de Deus". Uma pessoa que assistiu escreveu suas impressões sobre a pregação de Spurgeon naquele dia:

Como ele se deleitou em sua pregação naquela manhã! Fazia muito calor, e ele limpava a transpiração de sua testa; porém seu desconforto não afetou o seu discurso. Suas palavras fluíam como uma torrente de sagrada eloqüência... O Sr. Spurgeon pregou sincero sermão sobre haver declarado todo o conselho de Deus. Sempre há algo de triste em falar das últimas coisas, e eu saí de lá sentindo que das experiências mais felizes de minha mocidade pertencia ao passado. Assim também - na minha opinião - pertencia ao passado o período mais romântico ate mesmo na vida maravilhosa do Sr. Spurgeon.


O TABERNÁCULO METROPOLITANO

Naquele mesmo ano, iniciou-se a construção do Tabernáculo Metropolitano. Em 15 de agosto foi firmada a pedra fundamental. Durante a cerimônia, Spurgeon declarou sua fidelidade inabalável às doutrinas da graça soberana de Deus: "Cremos nos grandes Cinco Pontos conhecidos como calvinismo. Olhamos para estes como cinco grandes lâmpadas que auxiliam em irradiar a cruz”. Enquanto estava sendo construído o imenso prédio, Spurgeon viajou ao Continente europeu em junho e julho de 1860. Ao chegar em Genebra, na Suíça, foi recebido como um segundo Calvino. Insistiram que ele pregasse no púlpito do grande reformador e deram-lhe a oportunidade de vestir sua toga, rara honra que ele não podia recusar.

Em 18 de março de 1861, o Tabernáculo Metropolitano foi oficialmente inaugurado. Nesta grandiosa ocasião, Spurgeon pregou sobre uma visão geral das doutrinas da graça, para então convidar cinco outros pregadores a pregar especificamente sobre cada um dos cinco pontos do calvinismo. Tal ação revelou a firme fé de Spurgeon de que essas verdades exaltam a Deus e formam o coração do evangelho. Spurgeon cria que as doutrinas da graça soberana, longe de impedir o evangelismo, são grandes ganhadoras de almas. As verdades sobre o amor do Deus que elege e redime, infundiram na sua pregação poder para ganhar almas e trouxeram muitas almas para a fé em Cristo.

De tamanho sem paralelos, o Tabernáculo Metropolitano foi o maior santuário na história da igreja protestante. Com lugar para seis mil pessoas sentadas, acomodava um dos maiores rebanhos da igreja desde o tempo dos apóstolos. Até a sua morte, trinta e um anos mais tarde, o Tabernáculo esteve cheio de manhã e de noite a cada domingo. Spurgeon pediu que cada membro deixasse de freqüentar um culto a cada trimestre para dar mais espaço para os não-convertidos se assentarem. Sua congregação era composta principalmente de pessoas comuns, de todas os tipos de vida, mas atraía também as elites, inclusive o primeiro ministro William Gladstone, membros da família real, dignitários do Parlamento, e pessoas notáveis tais como John Ruskin, Florence Nightingale e General James Garfield, que mais tarde foi presidente dos Estados Unidos.

Durante a semana, Spurgeon pregava até dez vezes em lugares diferentes de Londres e vizinhanças, incluindo áreas longínquas como a Escócia e Irlanda. A presença de Spurgeon em qualquer púlpito dava ousadia aos pastores locais e encorajava seus rebanhos. Com sua fama crescente, Spurgeon foi convidado repetidas vezes para pregar na América. No entanto, recusava esses convites transatlânticos, preferindo manter o Tabernáculo como centro de seu ministério. As pessoas o advertiam de que ele se quebraria física e emocionalmente, sob o estresse de tão expansiva pregação, ao que Spurgeon respondeu: "Se eu fizer isso, estarei feliz e repetiria novamente o mesmo. Se eu tivesse cinqüenta constituições [corpos], eu me alegraria em vê-las todas quebradas no serviço do Senhor Jesus Cristo". Acrescentou ainda: "Encontramo-nos capazes de pregar dez, doze vezes por semana, e descobrimos estar mais fortes devido a isso... 'Ah', disse um dos membros, 'nosso pastor vai morrer disso.' [...] Mas esta é a espécie de trabalho que não mata ninguém. O que mata bons ministros é pregar a congregações sonolentas". Spurgeon encontrava força na pregação.


ADVERSIDADES E AVANÇOS

Logo maiores controvérsias envolveram Spurgeon. Em 1864, entrou no que veio a ser chamado Controvérsia da Regeneração Batismal, um confronto com a igreja anglicana, a qual afirmava ser o batismo necessário para a remissão dos pecados. Spurgeon via tal ensino como uma corrupção do evangelho, e assim, se pronunciou contra ela. Mas ao fazer isto, foi condenado por intrusão sobre a consciência dos membros da Igreja Anglicana. Spurgeon foi forçado a retirar-se da Aliança Evangélica, da qual era uma figura de destaque. No meio deste conflito, Spurgeon lançou uma revista mensal, The Sword and the Trowel (A Espada e Colher de Pedreiro), visando refutar os erros teológicos da época e defendendo a pureza do evangelho.

Spurgeon também estava ocupado com a propagação do evangelho. Em 1866, fundou a Associação Metropolitana de Colportores para a distribuição de literatura evangélica. De 24 de março até 21 de abril de 1867, o edifício do Tabernáculo estava sendo reformado, e os cultos de domingo passaram a ser realizados no Agrícultural Hall de Islington. Mais de vinte mil pessoas assistiram cada um desses cinco cultos memoráveis, entre as maiores de todas as congregações a que Spurgeon se dirigiu. Naquele mesmo ano, inaugurou o Orfanato Stockwell para meninos. Em 1868, fundou albergues para os pobres. Em 1879, Spurgeon deu início ao orfanato para meninas. Ao todo, sob a liderança de Spurgeon, cerca de mil membros enérgicos estavam proclamando o evangelho de forma ativa pela cidade de Londres, em diversos ministérios. Além disso, 127 pregadores leigos estavam servindo em vinte e três centros missionários espalhados por toda a cidade de Londres. Em seu aniversário de cinqüenta anos, foi lida uma lista de sessenta e seis organizações que Spurgeon fundara com o propósito de difundir a mensagem do evangelho.

Vários anos mais tarde, em 1887, Spurgeon entrou em mais um conflito, desta vez o maior de todo seu ministério, chamado de Controvérsia do Declínio (Downgrade Controversy). Ele falou em defesa do evangelho, confrontando o declínio doutrinário que prevalecia em muitos púlpitos. Comparou a Igreja Batista com um trem que havia alcançado o cume de uma alta passagem montanhosa e estava descendo vertiginosamente pela íngreme estrada, aumentando a velocidade enquanto mergulhava para baixo. Quanto mais ela descia a montanha escorregadia, maior seria sua destruição, contendia ele. Advertiu fortemente contra a diminuição da autoridade da Escritura, que resultava em divertimentos mundanos, técnicas de teatro de variedades, e, em muitas igrejas de seus dias, uma atmosfera parecida com a de circos.

Mas as palavras severas de Spurgeon caíram sobre ouvidos surdos. Em movimento ousado, ele se retirou da União Batista em 26 de outubro de 1887. Alguns diziam que ele deveria começar nova denominação, mas ele recusou. Na reunião anual da União Batista de 1888, foi acatada uma proposta de censura a Spurgeon. Em triste guinada da historia, ela foi apoiada por seu irmão James, seu co-pastor no Tabernáculo, que acreditava, erradamente, que a proposta pedia a reconciliação. Essa controvérsia o entristeceu de tal modo que contribuiu para sua morte prematura apenas quatro anos mais tarde.


OS DIAS FINAIS

Em seus últimos anos, Spurgeon sofreu de diversos males físicos, incluindo doença dos rins e gota. Com o declínio de sua saúde, Spurgeon pregou o que seria seu ultimo sermão no Tabernáculo em 7de junho de 1891. Em grande sofrimento, afastou-se para descansar na cidade de Mentone, na Riviera francesa. Ali morreu em 31 de janeiro de 1892. O "Príncipe dos Pregadores" contava apenas cinqüenta e sete anos de idade.

Foi feito um culto fúnebre primeiro na França. Então, o corpo de Spurgeon foi levado de volta a Londres, onde na quarta-feira, 10 de fevereiro, foram oficiados quatro cultos fúnebres – um para os membros do Tabernáculo, um para pastores e alunos, outro para obreiros cristãos, e outro ainda para o público em geral. Um sexto culto (e final) foi realizado no dia seguinte. Ao todo, cerca de sessenta mil enlutados prestaram homenagens a essa figura colossal. Um cortejo fúnebre de mais de duas milhas (3,2 km) seguiu o carro funerário do Tabernáculo até o cemitério em Norwood, com cem mil pessoas em pé ao longo do caminho. As bandeiras estavam a meio-mastro. Lojas e pubs permaneceram fechados. Era como se tivesse morrido um membro da família real.

Em cima de seu caixão, foi colocado uma Bíblia, aberta em Isaias 45.22 – o texto que o levara à fé salvadora em Cristo quando ele era adolescente. Até na sua morte, mediante isto, Spurgeon apontava as pessoas para Cristo. Com seu passamento, ele havia combatido o bom combate, acabado a carreira, e guardado a fé.

Durante os trinta e oito anos de seu ministério em Londres, Spurgeon testemunhou o crescimento de sua congregação de duzentos para quase seis mil membros. Durante esse tempo, ele recebeu 14,692 novos membros em sua igreja, quase onze mil mediante o batismo. No total, estima-se que Spurgeon tenha pregado pessoalmente a quase dez milhões de pessoas. Eventualmente, um de seus filhos gêmeos, Thomas, o sucedeu como pastor do Tabernáculo em 1894. O outro filho. Charles Jr. tornou-se diretor do orfanato que ele fundou.

Até 1863, os sermões de Spurgeon venderam mais de oito milhões de cópias. Na época de sua morte em 1892, cinqüenta milhões de cópias tinham sido vendidas. Até o fim do Século Dezenove, mais de cem milhões de sermões haviam sido vendidos em vinte e três línguas, cifra inigualável por qualquer outro pregador, antes ou depois dele. Hoje em dia, este número é bem mais do que trezentos milhões de cópias. Um século após sua morte, havia mais obras de Spurgeon impressas do que de qualquer outro autor da língua inglesa. Spurgeon é o pregador mais amplamente lido em toda a história.

Até os dias atuais, Spurgeon continua a exercer enorme influência no mundo cristão evangélico. Foi autor de 135 livros, editor de mais vinte e oito, e escreveu inúmeros panfletos, folhetos e artigos. Este corpo de trabalho não tem precedentes como projeto de publicação por parte de um único autor na história do cristianismo. Com mais de três mil e oitocentas mensagens impressas, seus sermões compõem a maior coleção encadernada de escritos por um homem na língua inglesa. São coligidos em sessenta e três volumes, contendo cerca de vinte e cinco milhões de palavras.

Dado o impacto monumental que Spurgeon teve sobre a Inglaterra e por todo o mundo, certas perguntas surgem: O que fez que sua pregação fosse tão atraente? O que o inflamava a proclamar o evangelho da maneira que fez? O que deu a seu ministério evangelístico tanto poder de conversão? As respostas se encontram naquilo que é o tema central deste livro: o foco evangélico de Charles Spurgeon.
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O Foco Evangélico de Charles Spurgeon. Steven Lawson. São José dos Campos: Editora Fiel, 2012. 139p

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

A NATUREZA HUMANA DE CRISTO [Aula 02]


1. A NATUREZA HUMANA REAL DE CRISTO [1]

Uma verdade muito preciosa com respeito ao nosso Senhor é que ele é como nós em todas as coisas, exceto no pecado (Hb. 4:15). Que ele é como nós significa que ele teve nossa natureza humana em adição à sua natureza divina. Ele é tanto Deus como homem numa pessoa.

Quando falamos da natureza humana de Cristo, existem várias verdades importantes enfatizadas, especialmente cinco. Ele tinha uma natureza humana real, completa, sem pecado e fraca, e uma natureza humana central procedente da linha do pacto.

Cada uma dessas verdades é da maior importância possível para a nossa salvação.

Que Cristo tinha uma natureza humana real precisa ser enfatizado contra o ensino – de alguns na igreja primitiva e algumas seitas hoje – que Cristo somente apareceu na forma de um homem, mas não tinha de fato um corpo humano real, de carne e sangue, e nem uma alma humana real como nós temos. Sua humanidade, é dito, era somente uma aparência – algo como um anjo aparecendo na forma de um homem.

Mas se Cristo não tinha uma natureza humana real, nossa salvação não é real também. Se sua natureza humana era somente uma aparência, assim também o seu sofrimento e morte, e a nossa salvação. A realidade da nossa salvação depende da realidade de sua natureza humana. Hebreus 2:14, 15 diz: “E, visto como os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que, pela morte, aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo, e livrasse todos os que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à servidão”.

A Bíblia ensina a realidade da natureza humana de Cristo não somente enfatizando o fato que ele era como nós em tudo, mesmo em ser tentado (Hb 4:15), mas em muitas outras formas também. A realidade de sua natureza humana é ensinada em todas aquelas passagens que falam de Jesus nascendo, crescendo, aprendendo, obedecendo, comendo, bebendo, ficando cansado, chorando, sofrendo e morrendo. Todas elas nos falam que ele era realmente um homem, como nós em todas as coisas. Duvidar da realidade de sua agonia no Getsêmani, sua dor na negação de Pedro e traição de Judas, e sua agonia ao ser abandonado na cruz, é duvidar não somente de sua honestidade, mas também da nossa salvação por meio desses sofrimentos.

Cristo é, portanto, osso dos nossos ossos e carne da nossa carne (Ef. 5:30), capaz de nos representar diante de Deus, e dar sua vida como um sacrifício pelos nossos pecados. Ele, sendo homem, pôde pagar pelo pecado do homem e nos levar a Deus.


2. A NATUREZA HUMANA COMPLETA DE CRISTO

Apontamos que existem cinco verdades que precisam ser cridas sobre a natureza humana de Cristo: que ela era real, completa, sem pecado, fraca e centralmente procedente da linha do pacto.

Olhemos agora para a verdade maravilhosa que Cristo tinha uma natureza humana completa, significando que quando Cristo nasceu em nossa carne, não nasceu simplesmente com um corpo humano. Ele tinha também uma alma ou espírito humano (Lucas 23:46; João 12:27), uma mente humana (Fp. 2:5), uma vontade (João 6:38), um coração (Mt. 11:29) e tudo o mais que pertence à nossa natureza humana.

Ele não era metade homem e metade Deus, mas plenamente homem e plenamente Deus; todavia, ele é um Cristo somente. Essa é a maravilha, o mistério e a glória de sua encarnação.

Essa verdade tem sido negada na história da igreja. Alguns tentaram explicar a encarnação dizendo que Cristo tinha somente um corpo humano, e que sua natureza divina tomou o lugar da mente ou alma humana. Por analogia, portanto, ele seria como uma criatura que tinha uma mente humana num corpo de um animal. Nesse caso, Cristo não teria uma natureza humana completa, mas somente parte dela.

Contudo, é de extrema importância crermos que Cristo tinha uma natureza humana completa. Nossa salvação depende disso!

Cristo tinha que tomar cada parte da nossa natureza humana, pois cada parte precisava ser redimida. A verdade bíblica da depravação total diz que somos corrompidos e depravados em cada parte.

Nosso corpo é vil (Fp. 3:21), nossa arma é perdida (Mt. 16:26), nossa vontade está em cativeiro (Rm. 6:16), nossa mente é carnal, cheia de inimizade contra Deus, que forma que não pode ser sujeita à lei de Deus (Rm. 8:7,8), e nosso coração é enganoso acima de todas as coisas e desesperadamente corrupto (Jr. 17:9). Não existe nenhuma parte da nossa natureza humana que seja boa.

Portanto, Cristo tomou sobre si nossa natureza humana completa, para que pudesse sofrer nela, fazendo expiação pelo pecado em cada parte. Dessa forma, ele nos redimiu – coração, mente, alma e força – do domínio e poder do pecado e nos fez, com tudo o que somos, servos e filhos do Deus vivo.

Cristo é um Salvador completo. Graças a Deus por ele. Certamente não existe outro além dele.


3. A NATUREZA HUMANA SEM PECADO DE CRISTO

Já apresentamos as duas primeiras verdades que precisam ser cridas sobre a natureza humana de Cristo. Olhamos para os ensinos maravilhosos que ele tinha uma natureza humana real e completa. Agora nos voltaremos para a importante verdade que Cristo tinha uma natureza humana sem pecado.

Que ele não tinha pecado é ensinado mui claramente em Hebreus 4:15. Isso é ensinado também em Isaías 53:9, Lucas 1:35 e 2 Coríntios 5:21. Contudo, Hebreus 4:15 levanta a questão se Cristo era capaz de pecar, visto que foi tentado como nós em todas as coisas. Em outras palavras, a impecabilidade de Cristo significa apenas que ele não pecou, ou que ele não poderia pecar?

Alguns têm dito que as tentações de Cristo poderiam ser reais somente se fosse possível para ele pecar em sua natureza humana. Que ele não pecou é devido apenas ao fato dele ser Deus também. Em face de tal ensino, devemos enfatizar a verdade que não era possível que ele pecasse. Devemos lembrar que não é uma natureza que peca, mas uma pessoa, e Cristo é uma pessoa somente, o Filho de Deus. Como uma pessoa divina, ele não poderia pecar. Dizer que era possível que ele pecasse em sua natureza humana é dizer que Deus poderia pecar, pois pessoalmente, mesmo em nossa natureza humana, ele é o Filho eterno de Deus. Essa, cremos, é uma das verdades ensinadas em 2 Coríntios 5:21, que diz que ele não conheceu pecado, e em Hebreus 7:26, que diz que ele era “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores”.

Que Cristo não tinha pecado significa que ele não tinha o pecado original, o pecado que temos de Adão (Rm. 5:12). Nesse respeito, também, ele era imaculado. O nascimento virginal de Jesus e o fato que Deus era seu Pai, também o Pai de sua natureza humana, garantiu que dentre todos os descendentes de Adão, Cristo somente nasceu puro e santo.

Ele não somente não tinha o pecado original; ele também não tinha nenhum pecado real. Durante toda a sua vida, desde o tempo quando nasceu, Cristo nunca quebrou os mandamentos de Deus, nunca errou (nem infinitesimamente), e nunca falou uma palavra frívola que não glorificasse a Deus. Ele era perfeito!

Em suma, portanto, sua impecabilidade significa que ele não tinha o pecado original, nem qualquer pecado real e não tinha a possibilidade de pecar. Isso, como Hebreus nos diz, é a razão dele poder ser nosso Salvador.

Como alguém sem pecado, ele não precisava oferecer sacrifício primeiro pelos seus próprios pecados, mas foi capaz de oferecer em nosso favor um sacrifício perfeito (Hb. 7:27). Portanto, ele pôde se fazer pecado em nosso lugar, para que pudéssemos ser feitos a justiça de Deus nele (2 Co. 5:21).

A impecabilidade de Cristo, então, é a garantia que sua justiça é perfeita, e que ela é nossa. Tudo o que ele mereceu por sua morte ele não precisava para si mesmo; ele adquiriu para nós, que estávamos em tão grande necessidade.


4. A NATUREZA HUMANA FRACA DE CRISTO

Olhemos agora para a quarta grande verdade sobre a natureza humana de Cristo: que aquele que agora tem uma natureza humana glorificada, teve uma natureza humana fraca enquanto na terra. Sua natureza humana, além de real, completa e sem pecado, era fraca.

Porque Cristo tinha uma natureza humana fraca, durante seu tempo de vida terreno ele esteve sujeito a todos os males resultantes do pecado, embora não ao próprio pecado. Ele esteve sujeito à doença, fome, sofrimento, dor, fraqueza e até mesmo à morte, assim como nós. Ele foi “tocado com o sentimento das nossas fraquezas” (Hb. 4:15, KJV).

Romanos 8:3, que diz que Cristo veio em semelhança da carne do pecado, também ensina essa verdade. Visto que o versículo não pode significar que ele mesmo era pecador, o mesmo pode se referir apenas ao fato que ele estava sujeito a todos os males que o pecado trouxe sobre nós, a saber, às fraquezas da nossa carne do pecado.

Cristo, então, não veio em semelhança da carne sem pecado. Ele não era como Adão, que após ser criado desfrutou de toda a glória e esplendor do seu primeiro estado. Ele foi feito como nós, que perdemos aquele estado e recebemos não somente a depravação e culpa, mas também a maldição de Deus.

Essa é uma verdade importante. Enfermidade, sofrimento, dor e morte são resultados do nosso pecado e da maldição de Deus sobre nós. Cristo ter suportado as nossas fraquezas é parte dele ter sido feito maldição para nós. Ele tomou todas as nossas fraquezas sobre si, tomando nossa maldição e afastando-a de nós. Que conforto para nós, portanto, são todas as suas fraquezas!

Isaías disse tudo isso quando profetizou de Cristo e o chamou de “homem de dores e que sabe o que é padecer” (Is. 53:3, RA). Seus sofrimentos, disse Isaías, deveriam ser explicados assim: “Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si… ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades”. Por seu sofrimento, dor e tristeza “o castigo que nos traz a paz estava sobre ele” (vv. 4,5).

Não foi apenas a morte de Cristo que teve poder expiatório, mas também o sofrimento que ele suportou durante toda a sua vida sobre a terra. Ele confessou isso quando disse: “Porque a minha vida está gasta de tristeza, e os meus anos, de suspiros; a minha força descai por causa da minha iniqüidade, e os meus ossos se consomem” (Sl. 31:10).

Existe conforto adicional para nós nas aflições e sofrimentos de Cristo; elas significam que ele conhece nossas provações e sofrimentos por experiência própria. Ele passou por elas, e não podemos dizer que ninguém pode entender verdadeiramente nossas provações. Cristo entende!

Dessa forma, também, as fraquezas, dores, tristezas e sofrimentos do nosso Salvador são parte da nossa salvação. Que não apenas contemplemos e vejamos que não existe nenhuma dor como a sua (Lm. 1:2), mas creiamos nisso!


[1] Doctrine according to Godliness, Ronald Hanko, Reformed Free Publishing Association, p. 129-133. Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto. Originalmente publico no Monergismo - https://goo.gl/vSCLgc