domingo, 28 de maio de 2017

JESUS, O FILHO DE DEUS [Apresentações e Sinopse]


Este pequeno livro nasceu do conteúdo de três palestras feitas no Reformed Theological Seminary em Jackson, no estado do Mississippi, nos dias 5 e 6 de março de 2012. Em formato reduzido, tornou-se a Palestra Gaffin sobre Teologia, Cultura e Missões no Westminster Theological Seminary, em 14 de março de 2012, e depois, levemente modificada, transformou-se no conteúdo básico de três palestras em francês, apresentadas durante o Colloque Réformée, realizado em Lion, na França, em abril do mesmo ano. Sou extremamente grato a Michel Lemaire e a Jacob Mathieu pelo trabalho cuidadoso de tradução. É um prazer, e não mera obrigação, expressar meus sinceros agradecimentos aos que organizaram essas palestras e me convidaram para participar. Tenho uma enorme dívida de gratidão por toda a hospitalidade e amabilidade.

Escolhi o tema em 2009. Parte do trabalho que eu havia desenvolvido enquanto lecionava a Carta aos Hebreus, em especial o capítulo 1, no qual se diz que Jesus é superior aos anjos por ser ele o Filho, despertou-me para pensar sobre o assunto de maneira mais global. Além disso, já faz algum tempo que venho pensando sobre o hiato entre a exegese meticulosa e as formulações doutrinárias. É claro que precisamos de ambas, mas se uma formulação doutrinária não for ditada, em última análise, pela exegese e visivelmente controlada por ela ambas se enfraquecerão. O tema do “Filho de Deus” tornou-se um dos vários casos-teste (análises contextuais de termos bíblicos) do meu pensamento. No entanto, desde que o tema foi escolhido, os debates sobre qual seria uma tradução fiel de “Filho de Deus”, sobretudo tendo em vista leitores muçulmanos, têm saído do contexto restri- to dos periódicos lidos por tradutores da Bíblia e alcançado o grande público. Denominações inteiras foram apanhadas nessa polêmica que não dá sinais de arrefecimento. O último dos três capítulos deste livro dedica-se ao exame destes dois pontos: como, num contexto cristão, a exegese leva adequadamente ao confessionalismo cristão e como, num contexto transcultural que visa a preparar tradutores da Bíblia para leitores muçulmanos, podemos ser sabiamente flexíveis nos debates atuais. Mas peço encarecidamente que você leia antes os dois primeiros capítulos. Eles fornecem os detalhes textuais necessários sobre os quais a abordagem das controvérsias precisa estar fundamentada.

Este livro não é principalmente uma contribuição para os debates atuais, por mais importantes que sejam. Ele se desti- na a promover a clareza de pensamento entre os cristãos que desejam saber o que queremos dizer quando nos colocamos ao lado de crentes através dos séculos e confessamos: “Creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor”.

Mais uma vez é um prazer registrar minha dívida de gratidão a Andy Naselli por suas sugestões de valor incalculável. Soli Deo gloria. 


OPINIÕES SOBRE O LIVRO

Não existe um título cristológico tão essencial quanto “Filho de Deus”; nenhum outro é mais importante. Esse estudo prova isso com impressionante clareza, por meio de sólida e cuidadosa exegese e reflexão teológica, em face dos equívocos e das disputas de ontem e de hoje. Mais uma vez, D. A. Carson presta um bom serviço à igreja. Richard B. Gaffin Jr., professor emérito de Teologia Bíblica e Sistemática no Westminster Theological Seminary


Sei o que é rejeitar Jesus como o “Filho de Deus”. Quando eu era mu- çulmano, nada me deixava mais perplexo e, para ser bem honesto, mais irritado do que ouvir os cristãos se referirem a Jesus como “o Filho de Deus”. Eu os considerava blasfemos que mereciam ser condenados. Mas hoje, nada me deixa mais feliz do que saber que Jesus, de fato, é o Filho de Deus e que esse título é muito mais verdadeiro e maravilhoso do que eu jamais poderia imaginar. Assim, é com entusiasmo e alegria que recebo esse livro de D. A. Carson na condição de alguém que um dia negou a verdade de que Jesus é o Filho de Deus. Com seu jeito costumeiramente claro, caloroso, equilibrado e cuidadoso, Carson nos oferece um novo exame de uma verdade preciosa que tantos cristãos subestimam e tantos muçulmanos entendem mal. Se você deseja conhecer melhor Jesus e a Bíblia, certamente não ficará desapontado com esse livro. Thabiti Anyabwile, pastor-titular da Primeira Igreja Batista de Grande Cayman; autor de O que é um membro de igreja saudável? (Fiel)


O que significa confessar que Jesus é o Filho de Deus? D. A. Carson trabalha com essa questão em Jesus, o Filho de Deus. Nesse pequeno livro, ele lança um firme fundamento para ajudar a igreja a entender essa expressão usada com referência a Jesus. Depois de tratar das acepções de “Filho de Deus” nas Escrituras, tanto as gerais quanto as que se aplicam a Jesus, Carson mostra como a teologia sistemática deve se basear numa sólida exegese da Bíblia. Ele se esforça por vincular seu estudo à controvérsia nos círculos missiológicos em torno da apresentação de Jesus como Filho de Deus em contextos cristãos e muçulmanos. De modo crítico e cordial ao mesmo tempo, Carson convida a uma reconsideração das novas traduções que substituíram as referências a Deus Pai e a Jesus como Filho para se tornarem mais aceitáveis aos muçulmanos. Robert A. Peterson, professor de Teologia Sistemática pelo Covenant Seminary


Portanto, não existe um título cristológico tão essencial quanto “Filho de Deus”; nenhum outro é mais importante. Esse estudo prova isso com impressionante clareza, por meio de sólida e cuidadosa exegese e reflexão teológica, em face dos equívocos e das disputas de ontem e de hoje. Mais uma vez, D. A. Carson presta um bom serviço à igreja. O que significa confessar que Jesus é o Filho de Deus? D. A. Carson trabalha com essa questão em Jesus, o Filho de Deus. Nesse pequeno livro, ele lança um firme fundamento para ajudar a igreja a entender essa expressão usada com referência a Jesus. Depois de tratar das acepções de “Filho de Deus” nas Escrituras, tanto as gerais quanto as que se aplicam a Jesus, Carson mostra como a teologia sistemática deve se basear numa sólida exegese da Bíblia. Ele se esforça por vincular seu estudo à controvérsia nos círculos missiológicos em torno da apresentação de Jesus como Filho de Deus em contextos cristãos e muçulmanos. De modo crítico e cordial ao mesmo tempo, Carson convida a uma reconsideração das novas traduções que substituíram as referências a Deus Pai e a Jesus como Filho para se tornarem mais aceitáveis aos muçulmanos. [Apresentações]

__________________________
Jesus, o Filho de Deus: O título cristológico muitas vezes negligenciado, às vezes mal compreendido e atualmente questionado. D. A. Carson – São Paulo: Vida Nova, 2015. 128p.

sábado, 27 de maio de 2017

O CULTO SEGUNDO DEUS: A MENSAGEM PARA A IGREJA DE HOJE [Introdução]


O livro do profeta Malaquias é perfeito para ser usado como base de mensagens sobre sua temática, a qual gira em torno do culto que se deve prestar a Deus conforme ele deseja. A razão principal disso — outras serão examinadas mais à frente — é que a profecia de Malaquias foi proferida e registrada em um contexto muito parecido com o que os evangélicos vivem hoje no Brasil. Em outras palavras, o livro, assim como os dias que hoje vivemos, situa-se em um contexto no qual adorar a Deus parece não fazer diferença visível na vida dos que o buscam constantemente nos locais de culto.

Ao longo da história, nem sempre ficou claro para os cristãos o privilégio que têm de adorar a Deus, ser-lhe leal e fazer sua vontade. Qual é o proveito de servir a Deus, cultuá-lo e dedicar tempo para honrá-lo? Vamos refletir sobre essa questão ao longo do estudo do livro de Malaquias.


1. O contexto histórico

As profecias de Malaquias foram proferidas em um tempo de profundo desânimo para o povo de Deus. Fazia cerca de cem anos que os judeus tinham regressado do cativeiro. Deus havia mandado o povo de Israel para o exílio, por volta de seiscentos ou quinhentos anos antes de Cristo, em razão da reiterada idolatria e falta de arrependimento. Para isso usou os babilônios, que levaram seu povo, a nação de Israel, cativa para a Mesopotâmia. Parte do povo foi para o Egito, outra se dispersou e muitos outros morreram. Durante setenta anos, o povo permaneceu cativo na Babilônia.

Tempos depois Deus o trouxe de volta à terra prometida. Esse período está registrado nos livros de Esdras e Neemias, dois homens levantados por Deus para liderar o retorno da nação à terra prometida. Porém, nem todos regressaram; parte do povo ficou na Babilônia; outra permaneceu no Egito. Mas um grande contingente voltou para a terra de Israel, a terra que fora prometida a Abraão, Isaque e Jacó.

Quando regressaram, os judeus pensavam ter chegado o tempo do cumprimento das grandes promessas que os profetas de Israel haviam feito. Isaías, Ezequiel e Jeremias profetizaram um tempo maravilhoso para o povo de Deus após a restauração, e o povo acreditava que aquele seria o tempo em que essas promessas se cumpririam.

Só que cem anos se passaram desde a volta do cativeiro, e as coisas não estavam acontecendo conforme a expectativa. Promessas tinham sido feitas, mas a realidade não estava de acordo com elas. Deus havia prometido renovar a aliança com seu povo, mas tudo continuava como antes. Por meio dos profetas o Senhor prometera uma grande restauração de seu povo na terra, mas somente parte dele retornara da Babilônia. Os profetas haviam mencionado um período de paz, mas eles ainda estavam cercados por inimigos. O povo continuava tendo problemas com as nações pagãs vizinhas. As promessas de renovação do culto a Deus não se concretizaram, uma vez que as celebrações no templo em Jerusalém eram caracterizadas pelo excesso de formalismo. O culto era vazio, superficial, como veremos no decorrer de nosso estudo. Os profetas tinham apontado para a continuidade da linhagem sacerdotal, mas os sacerdotes haviam se corrompido e estavam totalmente desmotivados.

Ezequiel falara da construção de um templo glorioso; todavia, o templo ora construído era menor que o de Salomão. Aquela nova era de um reino messiânico de paz de que os profetas tanto haviam falado parecia estar muito distante, pois os judeus continuavam sob o domínio dos persas, e a situação econômica era muito difícil. Eles passavam por grandes necessidades, eram oprimidos, pagavam pesados impostos e enfrentavam seca e escassez de coisas básicas. Novamente era tempo de esperar pelo cumprimento das antigas promessas.

Diante de tudo isso, o povo começou a desanimar. O amor pelas coisas de Deus foi pouco a pouco diminuindo, e o povo começou a se dispersar em busca de seus próprios interesses.

Os sacerdotes, que eram os responsáveis pelo culto, começaram a pensar como o mundo ao seu redor, a se tornar indignos, a deixar de fazer seu trabalho da maneira correta, em vez de zelar pela casa de Deus. Começaram a tolerar determinadas práticas no culto que eram contrárias à vontade de Deus, revelada na Lei de Moisés. Os cultos a Deus viraram mero formalismo, rituais mecânicos e sem vida. O coração do povo não estava mais neles. Cada um dava prioridade a seus assuntos pessoais, em vez de se dedicar a terminar a reconstrução do templo e prestar culto a Deus. Cada um investia em seu pedaço de chão, em sua moradia, em seu negócio e só dava a Deus o que sobrava. Era uma época de esfriamento do povo em relação a Deus.


2. O profeta

Nesse contexto surge o profeta Malaquias. Pouca coisa se sabe sobre ele. Há quem especule que ele era um levita, a julgar pelo zelo que demonstra pelo culto no templo. Todavia, não temos como provar essa suposição. Seu nome significa “mensageiro de Yahweh” (1.1). Existe uma discussão entre os estudiosos sobre “Malaquias” ser um título ou um nome próprio. As razões para se pensar que era um título são estas: 1) Nada sabemos sobre um profeta chamado Malaquias; 2) Malaquias pode significar também “meu mensageiro”, expressão que aparece em 3.1 em referência ao mensageiro de Deus que haverá de vir. Todavia, essas razões não são fortes o suficiente para sobrepujar o fato de que todos os livros proféticos foram escritos por profetas cujo nome está claramente identificado no início de seu livro. Malaquias, portanto, é o nome daquele profeta que Deus levantou no período final de Neemias para chamar o povo ao culto verdadeiro.

Não há certeza se ele profetizou durante o período de Esdras e Neemias, sendo, assim, contemporâneo de Ageu e Zacarias. A situação que ele denuncia é muito similar à descrita nos livros de Esdras e Neemias, bem como nos de Ageu e Zacarias — ou seja, uma situação de descaso para com as coisas de Deus, corrupção do clero, casamentos mistos e abusos por parte dos poderosos. No entanto, Malaquias menciona um “governador” (1.8) em sua época que não poderia ter sido Neemias, uma vez que este declara em seu livro que nunca aceitou esse posto (cf. Ne 5.15,18). Além disso, Malaquias pressupõe um templo já construído e terminado, onde os serviços regulares ocorriam semanalmente. Talvez, então, seja mais seguro situar Malaquias no período final de Neemias ou logo depois deste, ou seja, uma data em torno de 450 a 430 a.C.

Uma antiga tradição rabínica, conforme relatada por Jerônimo no século quarto, considera que Malaquias e Esdras são a mesma pessoa, atribuindo a este último a autoria do livro. Todavia, não há nenhum suporte textual para essa afirmação. Todos os manuscritos do livro de Malaquias fazem atribuição à sua autoria, nunca a Esdras. Além disso, nunca Malaquias é chamado de escriba, tampouco Esdras é chamado de profeta. Outras tradições atribuem o livro a Neemias ou a Zorobabel, mas sem fundamentação convincente.

Malaquias é uma voz solitária, que aparece para chamar ao arrependimento o povo da aliança, especialmente os sacerdotes. E por esse motivo que a profecia de Malaquias é tão relevante para nosso entendimento acerca do culto que agrada a Deus, pois sua mensagem é dirigida, em grande parte, aos sacerdotes, àqueles que eram responsáveis por manter o culto devido a Deus da maneira correta.

Nesse pequeno livro, o profeta chama os sacerdotes e o povo ao arrependimento. Sua mensagem afirma que o povo tinha de permanecer fiel a Deus, mesmo em tempos difíceis, e devia cultuá-lo e servi-lo independentemente das circunstâncias em que se encontrava. O povo de Deus deveria permanecer fiel e aguardar o tempo em que ele haveria de cumprir todas as suas promessas.

Mais tarde, o próprio Malaquias, ou alguém ligado a ele, registrou por escrito e organizou essas palavras dirigidas ao povo de Israel e a seus sacerdotes. Tais palavras, inspiradas por Deus, servem para a igreja de todas as épocas como uma orientação a respeito do culto segundo a vontade de Deus.


3. O livro

O livro pode ser dividido em oito partes. Cada uma delas trata do culto, embora enfocando diferentes aspectos relacionados à situação do povo. A maioria dessas oito partes segue a mesma estrutura: Deus faz uma declaração, o povo a questiona, e então Deus responde, refutando o argumento apresentado pelo povo. Esse padrão  — uma declaração de Deus, o questionamento do povo, seguido por uma resposta de Deus — aparece praticamente em todas as partes do livro.

Não há razão para duvidarmos de que essa estrutura reflita a maneira pela qual Malaquias de fato profetizou ao povo de Judá. Ele trazia uma palavra da parte de Deus ao povo. O povo, então, replicava — geralmente com desdém e incredulidade. Malaquias, então, falando em nome de Deus, explicava a razão pela qual ele havia feito tal declaração, respondendo ao questionamento cínico do povo.

Esse estilo dialógico de Malaquias o destaca dentre os demais profetas. Quem está familiarizado com Isaías, Jeremias, Ezequiel e Amós, por exemplo, pode estranhar o estilo de Malaquias. Nesses livros temos os profetas trazendo a palavra de Deus, ensinando o povo e declarando: Assim diz o Senhor”. Mas, em Malaquias, Deus, por meio do profeta, entra em diálogo com o povo. E isso que torna o livro de Malaquias distinto dos demais. Aqui o profeta serve de mediador em um diálogo entre Deus e o povo, no qual este questionava cada afirmação de Javé.

Os questionamentos do povo eram estes:
1. Deus nos ama?
2. Em que estamos profanando o culto a Deus?
3. Por que Deus não aceita nossa oferta?
4. Por que não aceita nossos sacerdotes?
5. Em que estamos desagradando a Deus?
6. Em que estamos roubando a Deus?
7. Em que estamos difamando a Deus?

A julgar por esses questionamentos, o povo de Israel parecia acreditar que não havia motivo para Deus enviar um profeta para questioná-los a respeito da vida que levavam ou a respeito do culto que ofereciam ao Senhor todos os sábados, no templo de Jerusalém. Assim, tem início um diálogo entre Deus e o povo, o que torna o livro de Malaquias, por sua estrutura, diferente dos livros dos demais profetas. O livro termina com a promessa do grande dia do Senhor, quando Deus irá definitivamente sanar toda dúvida e silenciar todo questionamento.

Malaquias é o último mensageiro inspirado por Deus no Antigo Testamento. E ele que anuncia a chegada do primeiro grande mensageiro do Novo Testamento, João Batista (4.5,6). Com João, teria início um novo tempo para o povo de Deus, tempo em que o Senhor será adorado por verdadeiros adoradores, no Espírito e em verdade.

Esta obra tratará dos princípios do culto a Deus, apresentados por Malaquias a um povo que não mais tinha ânimo para adorá-lo e que havia perdido a visão do culto verdadeiro. O objetivo desse estudo é que possamos entender esses princípios e aplicá-los aos nossos dias, pois, assim como nos dias de Malaquias, um reavivamento do culto bíblico hoje também se faz extremamente necessário.

_________________________
O Culto segundo Deus: A mensagem para a Igreja de hoje. Augustus Nicodemus Lopes. São Paulo: Vida Nova, 2012. 156p.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

O SERMÃO DA MONTANHA: EXTRAINDO OS TESOUROS DAS ESCRITURAS [Apresentação]


George Bernard Shaw, certa vez, descreveu o Sermão da Montanha como "uma explosão impraticável de anarquismo e de sentimentalismo". O filósofo alemão Friedrich Nietzsche tratou-o ainda menos benignamente, quando escreveu que "a moralidade cristã é a mais maligna forma de toda a falsidade" (Ecce Homo). Em 1929, o humanista John Herman Randall estava disposto a reconhecer que Jesus era "verdadeiramente um grande gênio moral" mas ao mesmo tempo estranhava como um carpinteiro galileu pudesse ter enunciado a última palavra em ética humana (A Religião no Mundo Moderno). Porém, muitas outras pessoas têm apreciado este sermão com grande reverência, até mesmo quando não o conheceram nem o entenderam muito bem. Pode-se dizer, com segurança, que o Sermão da Montanha é o mais conhecido, menos entendido e menos praticado de todos os ensinamentos de Jesus.

A mente moderna, tanto religiosa como irreligiosa, tem tratado este sermão das maneiras mais variadas. Como antes notado, alguns o rejeitaram como totalmente impraticável ou positivamente mau. Outros o aceitaram, mas com reservas significativas. O humanismo, na sua forma mais benevolente, viu-o como um código moral notável, mas experimental, totalmente separado da cruz ou de um Cristo divino. O liberalismo religioso o vê mais como um projeto para reconstrução social do que para conversão pessoal. Albert Schweitzer o explicava como uma ética especial, para uma época especial, baseada na crença equivocada de Jesus de que o fim de todos os tempos estava para acontecer.

Entre os conservadores religiosos, muitos pré-milenaristas o vêem como mais uma "lei", inconsistente com uma era de graça, e de aplicação impossível num mundo pecaminoso. Eles esperam o seu cumprimento em um "reino milenial". A grande parte do protestantismo evangélico tem separado a vida em duas arenas, uma pessoal, e outra social. Para eles, a ética do Sermão da Montanha é destinada a conduzir somente os relacionamentos pessoais. Eles consideram impossível aplicar os preceitos deste sermão aos negócios e ao governo.

Tudo isto é para dizer que temos operado uma maravilha em nossos tempos ao tomarmos o documento mais revolucionário da História e transformá-lo em algo manso e inconseqüente. A palavra de Deus tem sido severamente embotada. O evangelho tem sido aparado para ajustar-se ao estilo de vida dos homens indisciplinados e indulgentes.

Há um sentido verdadeiro em que temos retornado ao ponto de partida. O Sermão da Montanha foi primeiro dirigido a um mundo no qual os fariseus tinham conseguido drenar a vida e o significado da lei de Moisés. Vivemos num mundo que transformou o evangelho em pouco mais do que civilidade do século vinte. Por esta razão, é da maior urgência que olhemos freqüente e cuidadosamente para o sermão do Filho de Deus que, talvez, mais do que qualquer outro, define a própria essência do reino do céu. Aqui, se ouvirmos humildemente, nossas vidas poderão ser transformadas, nossos espíritos revigorados e nossas almas salvas.

O ponto de vista do Novo Testamento sobre o sermão é melhor entendido na introdução que lhe fez Mateus. O Sermão da Montanha é "o evangelho do reino" (Mateus 4:23). Isto deveria servir para esclarecer duas coisas: Primeiro, que ele não é meramente a exposição da lei e, segundo, que suas bênçãos e princípios éticos não são atingíveis pelos não convertidos. Este é um sermão para os cidadãos do reino. A salvação, e não a reconstrução social, é seu alvo e os homens de sabedoria mundana estão destinados a jamais entendê-lo.

O Sermão da Montanha permanece como uma explanação da verdadeira natureza do reino de Deus. É um sermão proferido na História e serve para responder às questões que, naturalmente, seriam levantadas pelo anúncio em Israel do iminente aparecimento do reino (Mateus 3:1; 4:17). Mais ainda, o caráter totalmente inesperado do pregador e o acirrado conflito entre Jesus e os fariseus estavam para provocar ainda maior preocupação entre aqueles que primeiro ouviram o grito: "Está próximo o reino dos céus!"

O discurso de Jesus na encosta de um monte galileu não é, na realidade, um mero sermão. Ele mais se aproxima de um manifesto do reino de Deus. Há mais ensinamento de Jesus do que este, mas aqui sentimos a verdadeira essência da verdade do reino; e o negligenciaremos com nosso próprio risco. Porque ele trata de atitudes, o sermão permanece na entrada do reino de Deus tanto quanto em seus mais exaltados planos. Ele não é somente carne para os maduros mas um desafio àquele que faz sua primeira aproximação ao domínio e à justiça do céu.

________________
O Sermão da Montanha: Extraindo os Tesouros das Escrituras. Paul Earnhart. São Paulo: Edições, 1997, 112p.

sábado, 20 de maio de 2017

O PAI NOSSO: TEMAS TEOLÓGICOS ANALISADOS A PARTIR DA ORAÇÃO ENSINADA POR JESUS [Introdução]



“A oração é a conversa da alma com Deus (...) Um homem sem oração é necessária e totalmente irreligioso. Não pode haver vida sem atividade. Assim como o corpo está morte quando cessa sua atividade, assim a alma que não se dirige em suas orações a Deus, que vive como se não houvesse Deus, está espiritualmente morte” – Charles Hodge. [1]

A. Dirigida ao Pai (Mt 6.6,9)

A palavra de Deus nos ensina que nossa oração deve ser dirigida ao Pai. Em nosso orações devemos aprender logo de início que estamos falando com o nosso Pai; o nosso Deus é Pai, de quem podemos nos aproximar com confiante amor, certo de que ele está atento ao nosso clamor. “O Pai está sempre a disposição de seu filhos e nunca está preocupado demais que não possa ouvir o que eles têm a dizer. Esta é a base da oração cristã.” [2]

O conhecimento que temos de Deus Pai é nos revelado por Cristo; por sua graça o conhecemos. Jesus declara: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11.27). Falamos com o Pai – não com um estranho -, a Quem conhecemos pela graça.

Aqui há algo extremamente relevante que devemos mencionar. A paternidade de Deus sobre Israel é claramente reconhecida pelo povo do Antigo Testamento (DT 32.6; Sl 103.13,14; Jr 31.9,20); a idéia está sempre presente nas páginas do Antigo Testamento. Apesar de este substantivo ser usado mais de 1.200 vezes ali,[3] só ocorre 14 vezes referindo-se a Deus; todavia, nestes casos, é sempre empregado de forma reveladora.[4] Curiosamente, os sumerianos, cerca de três mil anos antes de Cristo, Já se referiam ao seu deus como um pai.[5]

O povo judeu era caracterizado por uma correta ênfase dada à oração. No Antigo Testamento, encontramos uma riqueza de referências à oração bem como uma demonstração vivida desta prática por parte do povo de Deus. Os ensinamentos rabínicos também traziam orientações diversas sobre a relevância e a necessidade dos homens manterem-se em comunhão com Deus por meio da oração.

Porém, com o passar do tempo – apesar de não haver nenhum ensinamento contrário -, penetraram alguns vícios na prática da oração. “O problema com qualquer sistema, comenta Barclay, não está no sistema em si, senão nos homens que o usam. Qualquer sistema de oração pode converter-se em um instrumento devocional autêntico ou em uma formalidade que deve despachar-se o mais rápido possível, sem pensar demasiado em seu conteúdo.” [6]
A corrupção de uma pratica geralmente está associada à matéria ou a forma; ou seja, em nome de uma suposta liberdade espiritual, podemos destruir toda a forma ensinada, considerando-a irrelevante; o que de fato pode acontecer. Outro modo de corrupção consiste em manter-se a forma estabelecida, tornando-se extremamente detalhista no aspecto visual, no seu aparato mas sem o espírito correto: destrói-se, assim, a essência do preceito. Parece-nos que este equivoco era o mais comum em Israel (1 Sm 15.22; Is 1.10-17; Os 6.6; Am 5.21,22; Mq 6.6-8), ainda que não o único (2 Cr 26.16-20; Ml 1.6-14).

Seguindo Barclay (1907-1978), podemos dizer que a palavra-chave para estes vícios era o formalismo.[7]

Na prática da oração dos judeus, observamos quatro características principais que não eram necessariamente erradas, mas que tendiam a fortalecer um costume apenas formal, destituído do genuíno espírito que deve caracterizar todo o nosso procedimento religioso. Ei-las:

1. Formalismo quanto ao tempo – Os judeus devotos oravam, ainda que não exclusivamente, três vezes ao dia: às três, às seis e às noves horas. Estas horas equivalem às nossas nove, doze e quinze horas. (Veja-se: Dn 6.10; At 3.1)

2. Formalismo quanto ao lugar – o lugar principal de oração era o Templo ou a Sinagoga.

3. Formalismo quanto à forma da oração – Os judeus tinham duas orações principais:

a) Shemá: [8] (“Ouve”), o “credo judeu”,[9] que consistia na leitura de Dt 6.4-9; 11.13-21 e Nm 15.37-41. O “Shemá” era repetido três vezes ao dia.[10]

b) Shemone Esreh: (“Dezoito Bênçãos”). Estas bênçãos consistiam em uma série de louvores a Deus.[11] Também deveriam ser recitadas três vezes durante o dia. Posteriormente, já no período neotestamentário, o número de bênçãos teve acréscimo de uma oração contra os hereges (Bênção nº 11); todavia para que o número 18 não fosse alterado, a bênção de nº 14 foi unida com a de nº 15.

Ambas as orações eram usadas liturgicamente.[12] Mesmo havendo alguns rabinos que se insurgissem contra a prática de se fixar as palavras desta oração, havia uma tendência de estabelecê-la de forma definida.[13]

4. Formalismo quanto à extensividade da oração – Muitos judeus entendiam que a oração para ser ouvida deveria ser longa e repetitiva.

Devemos observar que muitos judeus praticavam estes princípios com sinceridade; outros, entretanto, oravam de forma mecânica, como se estivesse repetindo uma série de sons sem sentido. Os rabinos, por sua vez, procuravam, em seus escritos, corrigir alguns destes desvios, mostrando o espírito correto que deve nortear a oração, contudo, os seus esforços se não foram em vão, não eliminaram tal prática.[14]

No Novo Testamento, Jesus Cristo enfatizou a necessidades de os seus discípulos orarem, sendo ele mesmo um modelo de oração para todos nós. Todavia, deve ser ressaltado que Jesus não exercitava a oração apenas para ser um exemplo para nós, antes “a oração foi, em algum sentido misterioso, uma parte necessária de sua vida ministerial”.[15]

No texto de Mateus 6.5-15, Jesus combate algumas práticas erradas de oração e apresenta princípios que devem nortear a oração cristã. Como a Bíblia – a Palavra de Deus – é o nosso manual de oração, precisamos aprender  com ela como devemos orar, por meio dos ensinamentos de Cristo.[16] A oração do Senhor se constitui num modelo de oração para toda a Igreja em todos os tempos; por meio de seu estudo, podemos, mediante a iluminação do Espírito Santo, aprender uma série de princípios e orientações que devem nos guiar na escola da oração. Estudarmos  a Oração Dominical sob a perspectiva de três temas principais, que se constituirão nos capítulos de nossa exposição. Devemos considerar também que Deus deseja que oremos com intensidade e integridade, não permitindo que as distrações de nossa mente nos afastem deste propósito santo.[17]

Na oração do Senhor – “que é a oração representativa de todas” -, [18] encontramos uma “fórmula”, um “roteiro”, no qual o Senhor Jesus “nos propôs tudo quanto dele é licito buscar, tudo quanto conduz ao nosso benefício, tudo quanto é necessário suplicar”, resume Calvino (1509-1564).[19] Acontece que, na prática, este privilégio só pode ser exercitado após termos aprendido. De forma vivencial, que tudo que é-nos necessário está em Deus.[20]

A Oração do Senhor sempre foi apreciada pela Igreja.[21] Quanto ao seu uso litúrgico, não sabemos a partir de quando ela passou a ser empregada. Todavia, esta prática pode ser atestada como algo corrente em meados do 4º século, conforme evidencia Cirilo de Jerusalém (c. 315-386) na sua 23ª “Catequese Mistagógica” (c. 350).[22]



O Pai Nosso: Temas Teológicos analisados a partir da oração ensinada por Jesus. Herminsten Maia Pereira da Costa. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 13-16.



[1] Charles Hodge, Sistematic Theology, Grand Rapids, Michigan, Erdmans: 1976 (Repinted), Vol III, p. 692.
[2] J. I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo, Mundo Cristã: 1980, p. 194.
[3] E. Jenni, Padre: In: Ernest & C. Westermann, eds. Diccionário Teológico Manuel del Antiguo Testamento, Madrei, Ediciones Cristiandad, 1978, Vol. I, p. 36.
[4] J. Jeremias, A Mensagem Central do Novo Testamento, PP 11,12; 2ª Ed. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 12ss
[5] Vd. J. Jeremias. A Mensagem central do Novo Testamento, PP 11,12; J. Jeremias, O Pai Nosso, pp 33,34. A referência ao seu deus como “Pai” é um fenômeno comum na história das religiões, quer dos povos mais primitivos quer dos mais evoluídos culturalmente. (Cf G. Schrenk, papai: In: G. Kittel & G. Friedrich, Eds. Theology Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Nichigan: Erdmans, 1983 (Reprinted), Vol V, p. 951)
[6] William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado. Buenos Aires: La Aurora, 1973 (Mateo I), vol 1, p. 208.
[7] Cf. W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora/ABAP, 1985, PP 22.32.
[8] É a primeira palavraque aparece em Dt 6.4, derivada do verbo (Shãma), “ouvir”, envolvendo normalmente a idéia de ouvir com afeição. (Vd. Hermann J. Austel, Shâma’: In: R. L. Harris, ET. AL. eds Thelogical Wordbook of the Old Testament,  2ª ed., Chicago, Moody Press, 1981, Vol. II, pp. 938-939).
[9] Conforme expressão de Edersheim (1852-1889). Vd. Alfred Edersheim, La Vida y los Tiempos de Jesus El Messias, Barcelona, CLIE, 1988, Vol. P. 491.
[10] Quanto ao emprego desta oração feita pelos judeus individualmente, Vd. Shemá: Alan Unterman, Dicionário Judaico de lendas e Tradições, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992, p. 242.
[11] A. Edersheim transcreve seis destas bênçãos; Vd.  La Vida y los tiempos de Jesus El Mesias, I, PP. 492-494.
[12] Vd Herminsten M. P. Costa, Teologia do Culto, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1987, p. 19.
[13] Compare as informações  de A. Edersheim, La Vida y los tiempos de Jesus El Messias, I, p. 492 com as de William D. Maxwell, El Culto Cristiano: Su Evolucion e Sus Formas, Buenos Aires, Methopress Editorial y Grafica, 1963, p. 17.
[14] A. W. Pink acredita que em virtude da nossa presunção, hipocrisia, insensibilidade, frieza e falta de fé, “o povo do Senhor, com toda probalidade, peca mais em seus esforços para orar do que em conexão com qualquer outra coisa que costuma fazer”. (A. W. Pink, Enriquecendo-se com a Bíblia,  São Paulo, FIEL, 1979, PP 39,40).
[15] James Hastings, La Doctrina Cristiana de La Oraciona,  Buenos Aires, reproduzida de “La Reforma”, Revista 1920, p. 91.
[16] Vejam-se, J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perguntas 255 e 256. In: Catecismo de La Igresia Reformada, Buenos Aires, La Aurora, 1962; Catecismo Menor de Westminster, pergunta 99.
[17] J. Calvino, As Institutas, III.20.5.
[18] James Hastings, La Doctrina Cristiana de La Oracion, p. 92.
[19] J. Calvino, As Institutas, III.20.34. Do mesmo modo diz Lutero (1483-1546), que nesta oração “estão compreendidas (...) todas as necessidades que incessantemente nos atingem, e cada qual é tão grande que deverá impedir-nos a rogar por causa dela ao longo de toda a nossa vida” (Catecismo Maior, III.34). Vd. Também, Catecismo de Genebra, Perg. 255; Catecismo Maior de Westminster, Perg.186.
[20] Vd. João Calvino. As Institutas, III.20.1.
[21] No Didaquê (c. 150), encontramos a recomendação de que esta oração fosse feita três vezes ao dia (Didaquê, Capítulo 8).
[22] Cirilo de Jerusalém, Cayechetical Lectures,  XXIII, in: P. Schaff&H. Wace, Eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church (Second Series), Grand Rapids, Michigan. Eerdmans, 1978, Vol VII, p. 155-157 (Doravante, citado como NPNF2). Vd. Comentário a respeito em J. Jeremias, O Pai Nosso: A Oração do Senhor, São Paulo, Paulinas, 1976, PP. 5,6.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

MATEUS, O EVANGELHO DO GRANDE REI [Introdução]


Está próximo o reino dos céus

Em Apocalipse 4.7, na descrição dos quatros querubins, ou seres viventes, o primeiro era semelhante ao leão (o rei dos animais); o segundo, o novilho (ou boi, que serve aos homens com grande paciência); o terceiro tinha o rosto como de homem; e o quarto era semelhante a águia quando voa. Os crentes primitivos comparavam com razão, esses símbolos aos quatros Evangelhos. O livro de Mateus é o Evangelho do Rei. O livro de Marcos é o Evangelho do grande Servo de Deus. O livro de Lucas é o Evangelho do Filho de Homem. O livro de João é o Evangelho do Filho de Deus.

No livro de Mateus, o Evangelho do Rei, vê-se nos primeiros capítulos o Rei dos Judeus e por fim o Rei soberano nos céus e na terra, enviando Seus embaixadores as nações para exigir sua sujeição e homenagem.

No livro de Marcos, o Evangelho do grande servo de Deus, enfatizam-se os atos de Cristo, não as Suas palavras. Enquanto Mateus relata os grandes discursos de Cristo, Marcos conta da lida incansável do Servo de Jeová.

No livro de Lucas, o Evangelho do Filho do Homem, mostra-se o coração de Jesus em uma série de manifestações de Sua compaixão, ternura e amor. Primeiro revela-o como criança de colo e, por fim, no passeio a Emaús, mostra que Seu coração humano mão se mudara na morte e nem na ressurreição; Ele continua Filho do Homem.

No livro de João, o Evangelho do Filho de Deus, vê-se como Jesus assemelha-se à natureza da águia que voa e nos leva às alturas da Sua divindade eterna. É o livro que nos revela o mistério de Ele ser um com o Pai. Nenhum dos quatro evangelistas, contudo, pretende dar uma biografia completa de Jesus Cristo. Ao contrário, vede, por exemplo, João 21.25.

Qual foi então o propósito de Mateus ao escrever seu Evangelho? Isso Ele não declarou expressamente. Mas no que escreveu descobre-se que o seu alvo era o de demonstrar, incontestavelmente, que Jesus de Nazaré é o grande Messias, o verdadeiro Rei, prometido de Deus e esperado durante longo tempo por seus patrícios, os judeus. Para esse fim, Mateus cita cerca de quarenta passagens do Antigo Testamento. O único lugar na Bíblia onde aparece o termo “reino dos céus” é no livro de Mateus; aí aparecem trinta e seis vezes! No primeiro capitulo da sua obra, Mateus prova que Jesus nascera da linhagem real. No terceiro capítulo descreve o precursor do Rei, proclamando que o Reino está próximo. O sermão do monte é realmente o manifesto desse Rei. Seus milagres são suas credenciais (cap. 8-9); Suas parábolas são intituladas “os mistérios do Reino”. Até fora do país Ele chamado “o Filho de Davi”; declarou-se livre da obrigação de pagar tributo, sendo Filho do Rei. Entrou, por fim, em Jerusalém como Rei; na sombra da cruz predisse a Sua volta em glória para reinar sobre tudo. Na ocasião da Sua morte, fenderam-se as rochas, a terra tremeu e mortos saíram dos túmulos. A sua ressurreição foi com poder majestoso, acentuado por terremoto e grande terror entre os guardas. Nas suas últimas palavras proclamou Seu direito de Rei e deu a Sua ordem real: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto...”


O autor do primeiro Evangelho

O autor do livro é logo o Espírito Santo. Mas a pena que Ele usou estava na mão de Mateus, também chamado Levi (Lc 5.27-29), um judeu da Galileia.

Um dos atos mais humilhantes, e igualmente sublimes, foi o da Divindade Santíssima comer com publicanos. O Rei dos reis, nesse gesto de imenso amor, ganhou um dos mais desprezados pecadores do mundo, “Mateus o publicano”, Mt 10.3. Seu nome está incluído em todas as listas dos nomes dos doze apóstolos, Mt 10.3; Mc 3.18; Lc 6.15; At 1.13. A graça do Mestre, em comer com publicanos, ganhou não apenas esse apóstolo, mas, também, por intermédio dele, ganhou-nos a obra que encabeça o Novo Testamento, o Evangelho segundo Mateus.

O escritor do primeiro Evangelho era, por nascimento, um judeu. De ofício, foi publicano, até o dia em que Cristo o chamou para segui-lo. Desde então passou a acompanhar o Senhor Jesus durante todo o tempo em que Ele andou entre eles, começando no batismo de João, até o dia em que foi elevado às alturas, Atos 1.21-22. Era, portanto, uma testemunha inteiramente fidedigna, escrevendo do que ele mesmo ouvira, do que vira com os próprios olhos, e do que apalpara com as suas mãos, I Jo 1.1.


A data do livro de Mateus

O Evangelho segundo Mateus não somente ocupa o primeiro lugar de todos os vinte e sete livros do Novo Testamento, mas os eruditos, geralmente, concordam que foi escrito antes de qualquer outro dos quatro Evangelhos. Conforme a tradição, o Evangelho Segundo Mateus foi escrito no ano 37 A.D. Pelo que consta do cap. 24.15, é claro que foi escrito antes do ano 70 A.D., quando Jerusalém foi destruída.


As divisões do livro

A matéria do livro de Mateus, na maior parte, não foi escrita em ordem cronológica. Note-se como quase todos os relatos dos milagres estão agrupados nos caps. 8 e 9, enquanto uma grande parte das lições de Cristo estão ajuntadas como nos caps. 5 a 7. Contudo pode-se dividir o livro em três grandes partes:
1) A genealogia, o nascimento e a meninice do Senhor, caps. 1 e 2.
2) O ministério de Jesus na Galileia, caps. 3 a 18.
3) O seu ministério na Judeia, seguido por sua paixão, morte e ressurreição, caps. 119 a 28.


O valor prático do primeiro Evangelho

Para os crentes em geral, Cristo Jesus é apenas Salvador. É fato transcendente que Ele nos salva. Mas Mateus foi inspirado divinamente para levar os crentes a viverem esperando a inauguração do reinado do Rei universal. Ao contemplar, hoje em dia, a efervescência dos povos da terra, a selvageria da guerra, a crescente ameaça do mal de derribar todo o governo – ao contemplar tudo isso, o nosso coração anela o reinado daquele cuja sabedoria nunca falha, cujo amor é infinito e cujo poder é supremo.

Cremos que uma das coisas mais práticas no propósito do Evangelho Segundo Mateus é induzir os crentes a aceitarem a Cristo, não somente como Salvador, mas também como Rei pronto a reinar sobre todo o mundo. O anelo da nossa vida cotidiana é o que determina praticamente a nossa vida. É pergunta penetrante: A aspiração da nossa vida é realmente a mesma da última suplica da Bíblia: “Vem Senhor Jesus?”


BOYER, Orlando. Mateus, O Evangelho do Rei. Rio de Janeiro: CPAD, 1951, 292p.

LENDO E COMPARTILHANDO Nº 002


PAULO E SUA TEOLOGIA TRINITÁRIA

A notável benção 2 Coríntios 13.13 oferece-nos todos os tipos de chaves teológicas para entendermos o pensamento paulino sobre a salvação e sobre o próprio Deus. O fato de a benção ser composta e designada para uma ocasião, em vez de ser uma formula amplamente aplicável, torna mais importante ainda ouvir Paulo. Portanto, o que Ele diz aqui em oração é totalmente pressuposto – não se trata de algo que dependa de sua argumentação, mas de uma realidade da vida cristã admitida e experimentada.

Primeiro, ela resume os elementos centrais da paixão única de Paulo: o evangelho, com seu foco na salvação em Cristo, acessível pela fé ao gentio e ao judeu sem distinção. O fato de “o amor de Deus” ser fundamento da visão de Paulo sobre a salvação é afirmado com entusiasmo e clareza em passagens como Rm 5.1-11, 8.31-39 e Ef 1.3-14. A “graça de nosso Senhor Jesus Cristo” foi o que deu expressão concreta àquele amor; por meio do sofrimento e da morte de Cristo em favor de seus amados, Deus lhes garantiu a salvação num único momento da história humana.

A “participação no Espírito santo” torna continuamente reais o amor e a graça na vida do crente e da comunidade cristã. A koinonia (comunhão/participação)  “do Espírito Santo” (perceba que Ele usa o nome completo!) é o meio pelo qual o Deus vivo não apenas coloca o povo num relacionamento intimo e permanente com ele próprio como Deus de toda a graça, mas também é como os leva participar de todos os benefícios da graça e da salvação – ou seja, habitando neles hoje com sua presença e garantindo-lhes a glória escatológica final.

Isso indica que Paulo era verdadeiramente trinitário em todos os sentidos e termos – que o único Deus é Pai, Filho e Espírito, e que relacionar-se com Cristo e o Espírito é relacionar-se com Deus da mesma forma que seria relacionar-se com o Pai. Assim, essa benção, fazendo uma distinção fundamental entre Deus, Cristo e Espírito, também expressa de forma abreviada o que se encontra em todas as suas cartas, a saber, que a “salvação em Cristo” é uma obra de cooperação entre  Deus, Cristo e o Espírito.

FEE, Gordon D. Paulo, o Espírito e o povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 66-67.

A MANIFESTAÇÃO DO ESPÍRITO: A CONTEMPORANEIDADE DOS DONS À LUZ DE 1 CORINTIOS 12 - 14 [Introdução]


Em todo o campo da teologia cristã contemporânea e da experiência pessoal, poucos assuntos em voga são mais importantes do que os que estão associados com o que tem sido chamado comumente de “movimento carismático”. Tal designação, como veremos adiante, relaciona-se com o termo bíblico χάρισμα (charisma), que é empregado de forma equivocada; no entanto, por ser esse o termo usual, continuarei a empregá-lo. Em todo caso, o que torna o assunto difícil não é tanto a designação usada, mas sim seu conteúdo. O movimento abrange não somente as denominações “pentecostais” tradicionais, mas também minorias consideráveis em muitas das denominações da cristandade; e, em algumas partes do mundo — América do Sul, por exemplo —, o movimento é a principal voz do protestantismo, ao mesmo tempo que é um invasor bem-sucedido na Igreja Católica Romana. Sejam quais forem seus compromissos teológicos, jovens clérigos lutarão com questões levantadas pelo movimento carismático de forma tão freqüente e, em algumas ocasiões, tão dolorosa quanto qualquer outra questão que surgir em seu caminho.

À medida que o movimento carismático tem crescido, também tem se tornado mais diversificado, fazendo, portanto, que muitas generalizações a seu respeito sejam notavelmente reducionistas. Contudo, é justo dizer que os dois grupos, carismáticos e não carismáticos (continuo usando os termos de forma não bíblica), se alegram em usar ótimos estereótipos a respeito dos que pertencem ao partido oposto. Na opinião dos carismáticos, os não carismáticos tendem a ser teimosamente tradicionalistas que não creem na Bíblia e que não têm verdadeira fome pelo Senhor. São pessoas que têm medo de experiências espirituais profundas, são muito orgulhosas para se entregarem completamente a Deus, estão mais preocupadas com o ritual do que com a realidade e são mais apaixonadas pela verdade proposicional do que pela verdade encarnada. Eles são melhores na escrita de tratados teológicos do que no evangelismo; são beligerantes na argumentação, defensivos na postura, entediantes na adoração e desprovidos do poder do Espírito em sua experiência pessoal. Os não carismáticos, por sua vez, tendem obviamente a ver as coisas de forma um pouco diferente. Na opinião deles, os carismáticos sucumbiram ao amor atual pela “experiência”, mesmo que às custas da verdade. São vistos como pessoas profundamente não bíblicas, especialmente quando elevam suas experiências com o falar em línguas ao patamar de um xibolete teológico e espiritual pelo qual todo o restante é julgado. Se eles têm crescido, grande parte de sua força se deve ao seu triunfalismo destemido, seu elitismo populista e suas promessas de atalhos para santidade e poder. São melhores em dividir igrejas e roubar ovelhas do que são em evangelismo, mais conquistados pela exaltação espiritual de um único líder diante dos outros crentes do que pelo serviço humilde e fiel. São imperialistas na argumentação (somente eles têm o “evangelho todo”), abrasivos na postura, descontrolados na adoração e destituídos de qualquer entendimento real da Bíblia que vá além da mera citação de versículos.

Obviamente os dois grupos admitem exceções notáveis às caricaturas que apresentei; todavia, a profunda suspeita mútua faz com que o diálogo genuíno seja extremamente difícil. Isso é especialmente doloroso, até vergonhoso, diante do compromisso assumido pela maioria dos crentes de cada grupo em relação à autoridade da Bíblia. As posições estereotipadas dos dois lados são tão antagônicas, ainda que ambas se digam bíblicas, que devemos concluir uma destas três possibilidades: um dos grupos está correto em sua interpretação da Escritura sobre essas questões, e o outro está correspondentemente errado; ambos, até certo ponto, estão errados, e é necessário encontrar uma forma melhor de entender a Escritura; ou a Bíblia simplesmente não fala com clareza e coerência sobre esses assuntos, e os dois grupos em disputa extrapolaram os ensinos da Bíblia a fim de entrincheirarem-se em posições que não são defensáveis pela Escritura.

Seja qual for o caso, devemos voltar para a Escritura. Esse é o fundamento das exposições que serão realizadas neste livro. Não tenho a ilusão de que o que escrevo é particularmente inovador ou de que se provará perfeitamente convincente para todos os que têm pensado sobre essas questões; e a limitação do material a ser estudado — somente três capítulos do Novo Testamento — necessariamente restringe minhas conclusões. Ainda assim, espero que o capítulo conclusivo integre suficientemente outras porções do material bíblico, especialmente do livro de Atos, e que as conclusões não pareçam distorcidas. Além disso, por mais que grande parte de minha atenção esteja no texto de 1 Coríntios 12—14, minha preocupação em tornar este estudo uma exposição teológica (como apresenta o subtítulo) me forçará a interagir um pouco com outras doutrinas cristãs, bem como com conclusões de lingüistas, antropólogos sociais e historiadores e também com crenças práticas e populares da igreja contemporânea, mesmo quando tais considerações extrapolarem o domínio do estudante do Novo Testamento; isso porque estou convencido de que, se a igreja deseja encontrar paz quanto a esses assuntos, precisamos considerar, imparcialmente, todas as evidências relevantes, ainda que insistamos que a autoridade da Escritura deva prevalecer. Essa autoridade, obviamente, não deve ser transferida a mim, como intérprete da Escritura; por isso, em alguns momentos, indicarei o nível de certeza com o qual faço julgamentos interpretativos, a fim de que, mesmo não concordando em todos os detalhes, talvez a maioria de nós possa chegar à concordância na maior parte das questões centrais.


A Manifestação do Espírito: A contemporaneidade dos dons à luz de 1 Coríntios 12 – 14. D. A. Carson. São Paulo: Vida Nova, 2013. 232 p.