quinta-feira, 29 de novembro de 2018

TEOLOGIA SISTEMÁTICA DE GRUDEN [Resenha]


Grudem, Wayne. Teologia Sistemática. Vida Nova: São Paulo, 2000[1]


Pretende-se na presente resenha observar virtudes e deficiências encontradas na primeira parte do livro de Teologia Sistemática de Wayne Grudem. O conteúdo que a caracteriza está relacionado à Bibliologia, Teologia Própria, Antropologia, Angelologia, Cristologia e Pneumatologia. O livro tem como características uma linguagem moderna e simples, e também, uma visão atual acerca do que é proposto pela teologia, tanto ortodoxa, quanto àquela que sai dos limites desta.

O autor do livro declara desde o início de sua obra seu entendimento ortodoxo ao descrever sua visão acerca das Escrituras e da Pessoa de Deus, e destes dois pressupostos inicia sua exposição das doutrinas que aborda. Tendo em vista a suficiência destes dados introdutórios, dar-se-á início à avaliação crítica da obra de Grudem.

É elogiável a perspectiva do autor, quando escreve sobre a importância da Teologia Sistemática, pois mostra de maneira convincente a razão básica de se fazê-la e sua importância para a vida do cristão, dando uma ampla base bíblica para isto. Argumenta de maneira inteligente e coerente a favor do estudo sistematizado da Bíblia e sua relevância para o estudo bíblico moderno. De modo completo explica a maneira de se fazer teologia sistemática e é coerente com sua visão ortodoxa.

A abordagem da autoridade bíblica é muito convincente. O argumento da auto corroboração das palavras das Escrituras deve ser destacado como uma observação inteligente ao indicar que como fonte última de autoridade, devemos recorrer a ela para estarmos certos de sua autoridade. Além disso, assegura também a própria inerrância e infalibilidade das Escrituras quando aponta para o fato de que elas são o padrão definitivo de verdade, tendo como base João 17.17.

Quanto à inerrância bíblica, os argumentos em prol desta, são amplos e fortes. Apenas, na parte em que se destaca o combate a afirmação de que a Bíblia contém erros, carece um pouco mais de base escristurística, demonstrando a solução de alguns dos possíveis erros que mais são ressaltados. Ao abordar a necessidade da Bíblia, o autor expõe corretamente a realidade da revelação geral e o que ela manifesta com respeito à existência de Deus e de Seu caráter conforme a exposição de Romanos 1 e 2 e Salmo 19.

Grudem é feliz ao ressaltar a suficiência da Palavra de Deus, algo que não se enfatiza tanto na sistemática e que é visto de maneira acertada por ele, quando a encaixa com o propósito salvífico e de tornar o homem de Deus apto para a boa obra, e que nada mais se torna necessário, no que diz respeito à irrepreensibilidade do homem perante Deus. No entanto, quando trata das aplicações práticas da suficiência, é deficiente em seu embasamento bíblico.

A Teologia Própria é tratada de modo muito completo no livro. Quando fala da existência de Deus traz muito convenientemente (no bom sentido da palavra) a ressalva da posição ortodoxa de que somente Deus é capaz de, realmente, nos convencer de Sua existência.

É muito interessante a divisão que Grudem faz no que diz respeito aos atributos comunicáveis e incomunicáveis de Deus, mostrando a interação desses atributos com o próprio ser humano e deixando o esclarecimento de que tais definições não são absolutas, pois atributos incomunicáveis poderão ser experimentados em certa medida pelos homens e os comunicáveis, não são totalmente absorvidos pela humanidade e nem dentro da humanidade, pelos cristãos.

A explanação com respeito à doutrina da Trindade é clara e fortemente convincente. O autor fazendo uso de vários textos bíblicos demonstra de modo inegável a crença do Deus Triúno na Bíblia. Aqui cabe uma ressalva de que o texto apontado por ele em 48.16, é de difícil interpretação e não se pode afirmar de que é fato o seu ensino acerca da Trindade, até porque a pessoa enviada por Deus pode ser o próprio profeta Isaías que traz a revelação de Deus no texto.

É altamente louvável a exposição teológico-científica que Grudem faz concernente à criação. Traz o pensamento das teorias modernas e trata da teoria da evolução pela própria perspectiva científica, mostrando a fragilidade de tal teoria. Ao versar sobre as duas possíveis interpretações, coloca de modo muito completo os dois entendimentos, seus argumentos favoráveis e contrários, mesmo declarando a teoria para a qual se inclina.

Ainda abordando a Teologia Própria do livro, no que diz respeito à Providência divina, o calvinismo de Grudem demonstra não ser apenas uma escolha teológica, mas uma evidência daquilo que é o ensinamento bíblico, expondo por toda a Bíblia a realidade da providência divina com respeito à Sua cooperação.

A angelologia do autor precisa de questionamento, especialmente quando trata da possessão de crentes por demônios. O autor redefine possessão como sendo o fato de que a pessoa “tem demônio”, mas que este não possui a pessoa a tal ponto que ela inevitavelmente renda-se a ele. Dentro disso afirma a possibilidade de um crente ser influenciado por um demônio de maneira forte, usa o exemplo de Lucas 13.11, 16 e no último parágrafo em que aborda o assunto diz que não se pode concluir que é impossível o fato do crente “ter demônio”, o que chamaríamos de possessão demoníaca. Portanto, abre-se um espaço para que o crente possa ter dentro de si a habitação de um demônio.

Um texto chave para isso é 1 João 5.18, onde o apóstolo afirma a impossibilidade de Satanás tocar no cristão, contrastando no verso 19, onde o mundo é governado pelo Diabo. A palavra grega usada no texto tem um sentido léxico forte, onde “tocar” pode significar também “atacar alguém” ou de “aderir-se a algo”. Esse verbo é usado por João referindo-se ao diálogo que Jesus teve com Maria Madalena ao dizer-lhe para não o “deter”, porque Ele voltaria para o Pai (Jo 20.17). No entanto, deve-se afirmar que outros textos das Escrituras não requerem um toque forte ou influência forte sobre a pessoa que recebe o “toque” (cf. Mt 8.3; Mc 5.27-30; Lc 8.45-17; 18.15). Parece, portanto, que João está falando de um poder que Satanás exerce sobre o crente de modo forte, por haver essa possibilidade exegética da palavra, e porque devido ao contexto mais amplo das epístolas vemos a possibilidade de Satanás causar até mesmo dano externo (“esbofetear”) sobre um crente, sem necessariamente tocá-lo (2 Co 12.7-9). O entendimento mais plausível para a palavra tocar parece ser possessão ou “ter demônio”, pois isto se encaixa com o seu contexto próximo da liberdade de atuação de Satanás sobre aqueles que não são salvos, pelo significado amplo exegético que a palavra possui, trazendo a possibilidade de um ataque forte de Satanás, e também, por ser plausível à luz de outros textos das Escrituras.

Além disso, Grudem abre uma possibilidade diante de um período onde o Espírito de Deus ainda não havia sido derramado, como o foi em Pentecostes, ao referir-se à mulher do texto de Lucas que é chamada de filha de Abraão. Fato que é, até mesmo, admitido pelo autor.

No que diz respeito à antropologia o livro apresenta um forte embasamento bíblico quanto à essência da natureza do homem. O dicotomismo é claramente exposto mostrando como as palavras “alma” e “espírito” podem ser supridas uma pelo outra, através da alternância que os usos são feitos indistintamente, tanto no que se refere a sentimentos, como a morte, pecabilidade, ações e na composição da natureza humana. E refutação é razoável, mas não se usa argumentos linguísticos que poderiam ser usados tanto em Hebreus 4.12 como em 1 Ts 5.23. A resposta para o texto de 1 Co 14.14, pareceu ser insuficiente, pois não explica o texto, mas simplesmente nega-se a existência da palavra “alma” nele.

É na cristologia que Grudem torna-se confuso e pende para um Jesus esquizofrênico, onde experiências que a natureza humana de Cristo passa, não são as mesmas que a natureza divina passa. Isto afeta de modo muito forte a identificação completa do Deus-homem conosco e a obra salvífica de Cristo. Por mais que Grudem não negue diretamente o fato da natureza divina ter recebido a ira de Deus com respeito aos nossos pecados, ele tem uma certa dificuldade em afirmar o fato de que a natureza divina morreu, assim como a humana. Nega o fato de que a natureza divina foi tentada juntamente com a humana, criando uma esquizofrenia, onde a natureza humana foi tentada, mas a divina, não. Tornando até mesmo questionável a obra expiatória de Cristo, pois parte dela incluía Sua identificação conosco por meio da tentação, se apenas a natureza humana de Cristo identificou-se conosco na tentação, então, a suficiência do sacrifício dEle, torna-se questionável.

O autor procura entender o mistério de Cristo e acaba chegando a conclusões quase nestorianas. Diz que em Mateus 8.24-27, era a natureza humana de Jesus que dormia pelo cansaço, e foi Sua natureza divina que acalmou o mar. Afirma, também, que foi a natureza humana que não sabia a respeito dos eventos futuros (Mc 13.32), pois em Sua natureza divina, Jesus sabia (Jo 2.25). É inevitável, então, perceber um erro crasso do autor ao fazer distinção das duas naturezas, tornando as duas naturezas de Cristo quase que em duas pessoas dentro de uma mesma. Cada hora uma manifestava sua existência, enquanto a outra ficava oculta pela que se dava a conhecer.

Outras questões bastante interessantes para se avaliar é que diz respeito às doutrinas referentes à salvação, à igreja e às últimas coisas.

Grudem fez uma abordagem sintética, porém, profunda daquilo que significa ser graça comum e como, de fato, as Escrituras apoiam a realidade desta doutrina tanto no domínio moral quanto no físico e social. Trouxe com uma perspicácia interessante a relação da graça comum com a maneira que os crentes devem agir frente aos incrédulos.

No que tange à soteriologia, as questões são tratadas de modo amplo e completo. É digno de elogio o tratamento que é dado à questão da regeneração, pois aborda de maneira bem extensa e, também, com boa fundamentação bíblica o fato de a regeneração vir antes da fé e os resultados que a regeneração produz na vida dos crentes, onde os textos bíblicos são claros e convincentes. No entanto, em sua abordagem quanto à eleição, o autor peca em sua explicação acerca da vontade revelada e vontade secreta. Ele simplesmente diz que no texto de 1 Timóteo 2.4 e 2 Pedro 3.9 a solução é dizer que existe uma vontade revelada (o que Deus quer que façamos) e uma vontade secreta (seus planos eternos sobre o que irá ocorrer) de Deus, e que nestes textos é apresentada a vontade revelada. Isso pareceu como o próprio autor afirmou, que ele diz isso devido à perspectiva reformada que tem e não devido a uma análise exegética mais profunda do texto. Até porque o texto de 2 Pedro 3.9 parece estar falando de crentes, pois diz: “... Ao contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento”. Em seguida, Pedro traz advertências de como os irmãos deveriam viver diante da realidade da vinda do Senhor e diz que uma vida santa e piedosa apressaria a vinda dEle, contrastando com a idéia da paciência de Deus no verso 9 que tinha a finalidade de não permitir que os crentes perecessem, mas chegassem ao arrependimento.

Ao abordar a perseverança dos santos, o livro apresenta uma base bíblica extensa e forte, demonstrando que Deus preserva o crente da perda de sua salvação, como este, também, persevera em obedecer-lhe. É importante destacar que a interpretação apresentada acerca de Hebreus 6.4-6 é muito fraca e se dá um valor excessivo ao estudo dos vocábulos do texto, sem sequer respeitar o próprio uso de alguns destes vocábulos pelo próprio autor de Hebreus. A análise se inclina mais a uma eisegese do que a uma exegese propriamente dita.

Como alguém que claramente tem uma formação pentecostal (vide dedicatória e p. 859-929), o autor demonstra grande equilíbrio ao tratar da questão do batismo e plenitude do Espírito Santo. Reconhece à luz das Escrituras que o evento ocorrido com muitos pentecostais de hoje deveriam ser chamado de enchimento do Espírito Santo e não batismo. Apresenta uma boa análise de textos e alerta sobre o perigo das categorias “crentes batizados” e “crentes não-batizados”.

Na parte de eclesiologia o estudo apresentado é suficiente e auxilia num entendimento correto da igreja e de suas implicações. A primeira parte que analisa a natureza, características e propósitos da igreja se trabalha muito bem com a questão da realidade da igreja local e universal e aborda satisfatoriamente com simplicidade as metáforas que dizem respeito à igreja. Erra ao não saber diferenciar Israel de Igreja, porém apresenta bons argumentos bíblicos em prol de seu entendimento, mesmo que estes necessitem de uma observação mais acurada dentro de seus próprios contextos.

Um capítulo a se questionar é o que trata sobre igrejas mais puras e menos puras. A pergunta que deve ser levantada é se é legítimo fazer esta diferenciação, já que todas as igrejas são uma só como igreja universal. Quanto à questão do governo da igreja, Grudem apresenta uma visão equilibrada e demonstra convincentemente de que o governo congregacional é aquele que melhor se adequa numa práxis eclesiástica.

No trato do batismo, o livro apresenta uma base sólida escriturística demonstrando que o ensino bíblico daqueles que devem ser batizados diz respeito somente aos salvos e deixa clara a fragilidade do pedobatismo como sinal da comunidade da aliança. Porém, ao abordar o caso de uma pessoa que foi batizada numa igreja reformada quando criança e passa a fazer parte de uma igreja que crê no batismo pós-conversão, erra por dizer que essa igreja que recebe tal pessoa deveria entender como válido seu batismo, pois, vai contra àquilo que o próprio autor acabou de demonstrar.

É admirável a exposição feita pelo autor no que diz respeito ao dom de línguas, porque apresenta um exame hermenêutico profundo e uma aplicação equilibrada quanto à continuidade deste dom e na validação do uso dele, analisando detalhadamente o texto de 1 Coríntios 14. Foi razoável, porém, necessitou de um estudo maior a descrição bíblica do que vem a ser o “falar em línguas” apresentada na obra, sem uma observação mais profunda de Atos 2 e 1 Coríntios 14.21.

Na escatologia, o escritor inicia bem, expondo a iminência do retorno de Cristo como sendo uma doutrina ensinada diversas vezes nas Escrituras, especialmente fazendo citações de textos cujos contextos são escatológicos e de outros em que a iminência da volta de cristo reforça um ensino ou exortação. Entretanto, a solução que apresenta de como conciliar a iminência do segundo advento com os sinais que o precedem o escritor é infantil hermenêuticamente e traz explicações rasas, tendenciosas e confusas na busca para entender a concretização de tais sinais.

As explanações das posições acerca do milênio são bem feitas, Grudem, primeiramente, expõe as posições e suas defesas bíblicas e depois contra-argumenta, permitindo que os leitores reflitam a respeito das outras perspectivas. Cabe aqui fazer uma consideração quanto à posição milenar do autor. Em sua defesa do pré-milenismo histórico o autor diz que as promessas feitas por Deus dizem respeito a um estágio futuro da história, apontando para textos proféticos vétero-testamentários que alegam isso. Todavia, ele se torna incoerente ao dizer que os textos exigem um cumprimento na história e, enquanto isso, ignora o literalismo que compete ao povo com quem essas promessas se cumprem. Interpretando literalmente o evento, mas não literalmente o povo que diz respeito a esses eventos.

Finalmente, é bom destacar que o livro é completo ao trazer em seu escopo, credos e confissões que ajudam o leitor a conhecer a teologia dentro da própria história eclesiástica e de mais de uma perspectiva teológica. É muito positiva a inclusão da declaração de Chicago sobre a inerrância da Bíblia, pois responde a problemas atuais trazidos pelo liberalismo e neo-ortodoxia. Traz, também, uma bibliografia sugerida que auxiliará o estudante de teologia sistemática e que inclui obras de autores que possuem pensamentos diferentes de Grudem.


A teologia de Wayne Grude é publicado pela Edições Vida Nova.
Clique na imagem para acessar.

_______________
[1] Texto de Tiago Abdalla T. Neto. Publicado originalmente in:

INTRODUÇÃO À EXEGESE BÍBLICA [Resenha]


GORMAN, Michael J. Introdução à Exegese Bíblica. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2017. 320p.


Muita coisa tem surgido no campo de estudos bíblicos desde a publicação original deste livro. Houve descobertas arqueológicas e rumores de novos achados (ossuários e tumbas entre os mais notáveis), bem como novos embates na guerra bíblica, especialmente sobre a interpretação de determinados aspectos éticos. Algumas novas traduções têm surgido e certas metodologias de estudo da Bíblia foram renovadas ou aperfeiçoadas.

Entretanto, sem dúvida, o mais importante desenvolvimento no campo de estudos bíblicos desde o começo do século 21 é a volta (ou melhor, a retomada) da interpretação teológica das Escrituras. Esse desenvolvimento expressa um profundo desejo da parte de muitos estudiosos e teólogos de explorar e articular formas de interpretação bíblica que considerem o texto bíblico primário como um texto teológico, como veículo de revelação divina e de direção. Para muitos dos que estão fora do círculo teológico, mas dentro da Igreja (e talvez até mesmo fora dela), tal enfoque é totalmente evidente e natural. Contudo, para muitos que fazem parte do meio cristão, os anos de exposição à interpretação não teológica fizeram com que a leitura das Escrituras parecesse quase anormal, e aqueles de nós que estão tentando mudar esse viés estão cientes dos desafios enfrentados à medida que tentamos avançar na tarefa de conduzir de forma adequada uma interpretação teológica bíblica.

De acordo com as informações da introdução deste livro, houve uma revisão e ampliação da primeira edição, especialmente nos capítulos um e oito, a interpretação teológica recebe maior atenção nesta edição, contando com a mais significativa mudança: a considerável expansão e renomeação do capitulo oito. Esse capítulo é agora chamado não meramente de Reflexão, mas "Reflexão: Interpretação teológica". 

Três pontos sobre essas mudanças precisam ser apresentados aqui.

Primeiramente, a interpretação teológica não possui um método ou metodologia exegética particular. Os exegetas podem e fazem — uso de uma variedade de métodos. O autor afirma aqui que a sua metodologia é bastante eclética, mas majoritariamente sincrônica, como discutida no primeiro capítulo.

Em segundo lugar, o oitavo capítulo, revisado, é maior e mais teórico do que a maioria dos demais capítulos, e é propositadamente dessa forma por causa do tema. O capítulo apresenta sugestões praticas, mas o faz dentro de uma estrutura mais desenvolvida e não como uma "colcha de retalhos".

Em terceiro, apesar de a extensa discussão da interpretação teológica estar próxima do fim do livro, os leitores não deveriam concluir que a interpretação teológica seja uma reflexão tardia ou que ocorre somente depois de o "trabalho real" da exegese crítica ou cientifica (histórica e literária) tiver sido concluído. Em vez disso, a interpretação teológica envolve uma atitude, um modus operando e uma finalidade (tetos) que permeia todo o processo. Em suma, a interpretação teológica implica em ler o texto escriturístico tão rigorosa e cuidadosamente quanto possível, empregando as melhores metodologias disponíveis, porque os intérpretes teológicos acreditam que durante e depois do processo eles podem ouvir Deus falar no texto e através dele.

Esse aumento da ênfase na interpretação teológica não nega de forma alguma os aspectos históricos e literários básicos de uma exegese sólida que qualquer intérprete da Bíblia deve levar em consideração. De fato, mesmo os intérpretes que não estão comprometidos com uma leitura teológica do texto bíblico poderão tirar proveito da abordagem básica e do método recomendado neste livro. Isso quer dizer que, se alguém considera a interpretação teológica como um caminho importante, e outro a vê como uma sobremesa desnecessária, há certos ingredientes numa degustação exegética que são comuns a todos os leitores criteriosos da Bíblia, e esses ingredientes se constituem nos blocos de construção tanto deste livro quanto de qualquer outro bom método exegético.

Outro acréscimo importante nesta edição é a inclusão de um tão necessário artigo sobre exegese de um texto do Antigo Testamento da Bíblia hebraica. Outras alterações nesta edição são relativamente menores, porém significativas: alterações em alguns exercícios, esclarecimentos e/ou preparação relativos a diversos temas, e especialmente a adição de novos recursos. O propósito deste livro bem como seu público-alvo permanecem os mesmos: Introdução à exegese bíblica oferece a estudantes e ministros uma abordagem não apologética de exegese construída sobre uma sólida base teórica.


PRINCÍPIOS E PROPÓSITOS DESTE LIVRO

1. Este livro é sobre princípios, fundamentos. Elaborado para estudantes, professores, pastores e outros que desejam refletir e escrever com seriedade sobre a Bíblia, o livro começou como um guia para que seminaristas aprendessem a fazer uma análise cuidadosa do Novo Testamento para suas aulas, exames de ordenação e pregação. Primeiramente apresentado para classes e grupos de estudos de preparação para exames de ordenação na Igreja Presbiteriana (alguns dos quais falharam em sua primeira tentativa no exame, em geral porque não tinham um método claro!), o material se tornou uma ferramenta simples e útil para o aprendizado, e então se transformou em um breve, guia prático para a exegese bíblica.

2. Este livro é um trabalho totalmente revisado, embora os princípios básicos do método tenham permanecido os mesmos, ainda que o AUTOR tenha incorporado novas informações a partir do campo [sempre dinâmico] jamais estático da interpretação bíblica. É importante que o AUTOR afirma que muitos estudantes ainda falham nas provas de exegese, e segundo ele, uma prova disto é que muitas pregações atuais revelam ignorância dos princípios básicos de exegese.

3. Este livro é oferecido, assim, para ser usado em diversos níveis e de muitas maneiras. Os conceitos e método para estudantes que estão iniciando o estudo da Bíblia em faculdades, universidades, programas de teologia e seminários. Para esses estudantes, são recomendados tanto a discussão do método quanto os exercícios práticos no fim de cada capítulo. Este livro e útil como leitura introdutória ou estudo paralelo de um curso sobre a Bíblia como um todo ou qualquer parte dela, e pode ainda ser estudantes como leitura independente ou obra de referência. Seu uso não requer, mas também não se opõe, ao conhecimento dos idiomas originais da Bíblia.

4. Para os estudantes mais experientes e os pregadores ordenados, a discussão de um método claro e lógico para o estudo da Bíblia pode lhes oferecer algo que eles não têm encontrado em outras fontes. Muitos eruditos bíblicos usam algo parecido com o método apresentado neste livro em suas próprias reflexões, escritos e aulas, mas para o AUTOR essa estratégia muitas vezes não É comunicada de forma metódica aos estudantes. E aqui ele afirma: “Minha experiência, tanto com pastores quanto com seminaristas, tem confirmado essa percepção. Além disso, muitos manuais de exegese publicados são bastante detalhistas e complexos para que a maioria dos estudantes e pregadores possa fazer uso deles regularmente. Este livro sugere como ler o texto bíblico cuidadosamente, não importa se alguém está preparando um debate em classe, um trabalho de exegese, ou aventurando-se no púlpito. Assim, e pode ser usado como obra de referência em classes ou seminários de estudos bíblicos, exegese ou homilética. Para pregadores experientes este livro poderá apresentar não somente sugestões sobre como pregar o texto, mas também oferecerá conselhos (ou lembretes) sobre como ler o texto com mais responsabilidade” [p.19].


ADVERTÊNCIAS SOBRE ESTE LIVRO

O AUTOR faz três advertências a aqueles que tomarão a decisão de ler este livro:

Primeiramente, embora os elementos ou passos sejam simples, o domínio do processo é difícil. Exige muito trabalho, com muitas tentativas e erros — mas o trabalho difícil será compensador.

Em segundo lugar, não desejo criar a expectativa de que creio que o método apresentado neste livro seja a única forma de pensar ou escrever sobre a Bíblia. Há muitos outros caminhos que podem ser usados pelo intérprete moderno. O método apresentado aqui é uma análise básica, mas criteriosamente histórica, literária e teológica de um texto relativamente curto, cujos princípios, porém, podem ser aplicados na leitura de toda a Escritura (e de quase tudo o mais) em geral. Este método foi escolhido como o ponto de partida para uma grande variedade de leitores; ele pode ser também útil para aqueles que desejam suplementá-lo com outras estratégias interpretativas.

Em terceiro lugar, obviamente este livro não tem a pretensão de substituir obras mais detalhadas sobre interpretação bíblica, gêneros literários específicos ou da área de hermenêutica. Estou convencido, no entanto, de que a difícil tarefa de fazer exegese e interpretação bíblica está se tornando tão complexa, com uma variedade interminável de novos métodos e metodologias (para não mencionar novas descobertas históricas), que muitos estudantes e pregadores são tentados a abandonar a ideia de se tornar "eruditos ou até mesmo leitores mais aprofundados em sua leitura e uso da Bíblia. Quando isso acontece, estudantes e pregadores — sem citar as igrejas e o público em geral — haverão de sofrer (e já sofrem) imensas perdas. Este livro é deliberadarnente simplificado (mas não simplista), não para restringir o estudo profundo, mas para estimulá-lo e, ao mesmo tempo, prevenir desastres em salas de aula e no púlpito. Meu objetivo, portanto, é simples e direto: ajudar a prevenir a falta de instrução em exegese entre leitores comuns, professores e pregadores do texto bíblico.

O livro possui além dos agradecimentos e introdução, três partes. Cada parte é constituída de capítulos fazendo um total de onze e finaliza com quatro apêndices. Sobre os capítulos é importante dizer que sempre terminam com um resumo, sugestões práticas e propostas para estudo adicional e prático. E como sempre fazemos, iremos trabalhar este capítulo a capítulo. 



PARTE 1: ORIENTAÇÃO

Capítulo 1: A Tarefa

Exegese, uma palavra derivada do verbo grego “levar para fora”, é uma cuidadosa análise histórica, literária e teológica do texto. Alguns chamariam de “leitura acadêmica” e a descreveriam como uma forma que “verifica o sentido do texto por meio do registro mais completo e sistemático possível dos fenômenos textuais, lidando com as razões que são expostas a favor ou contra um específico entendimento dele. [p.26]

Exegese é investigação das muitas dimensões, ou tramas, de um texto em particular. É o processo de fazer perguntas ao texto, questões que são muitas vezes provocadas pelo próprio texto. Exegese é diálogo. Um diálogo com leitores vivos e mortos, mais ou menos instruídos, ausentes ou presentes. É um diálogo sobre textos e seus contextos, sobre palavras sagradas e suas reinvindicações – e as alegações que outros fizeram sobre elas. Exegese é arte. Com certeza, há certos princípios e passos a seguir, mas saber o que perguntar ao texto, o que refletir e o que dizer sobre ele jamais pode ser realizado com total certeza ou feito apenas com o método. Ao contrário, um exegeta precisa não somente de princípios, regras, trabalho duro e habilidades de pesquisador, mas também ter intuição, imaginação, sensibilidade e fazer aquelas descobertas que o beneficiem por acaso. A tarefa da exegese requer, portanto, enorme energia intelectual e também espiritual. [p.27-28]

Há três abordagens para a exegese: sincrônica, diacrônica (histórico-crítica) e existencialista (que inclui tanto perspectiva teológicas quanto ideológicas). O método defendido neste livro é eclético e integrado, mas dá prioridade à abordagem sincrônica, com um objetivo final teológica. Ele destaca a importância dos contextos.

Os setes elementos de exegese e os passos para escrever um trabalho de exegese são: (1) Pesquisa (preparação para a leitura ou introdução); (2) Análise contextual (do contexto histórico e literário do texto); (3) Análise formal (da forma, estrutura e movimento do texto); (4) Análise detalhada; (5) Síntese (6) Reflexão; (7) Aprimoramento e ampliação da exegese.

Exegetas perspicazes preparam sua própria exegese cuidadosa inicial do texto antes de consultar os especialistas.


Capítulo 2: O Texto

Os estudantes devem escolher uma passagem para exegese que seja do seu interesse e que componha uma unidade completa, com extensão viável e que tenha começo e fim bem estabelecidos.

No que diz respeito a tradução da Bíblia é importante que se compreenda que cada tradução é uma interpretação, um tipo de exegese simplificada. A tarefa de uma tradução é dificultada por vários fatores complicadores característicos da linguagem. As duas abordagens básicas de tradução são equivalência formal e equivalência funcional.

Estudantes que não conhecem os idiomas originais deveriam usar a melhor versão possível, preferencialmente uma tradução de equivalência formal como base para seu trabalho exegético. Lembrando que as Bíblias de estudo são um importante auxílio, embora todas tenham suas limitações.

Observação importante. Os capítulos 3 a 9 deste livro introduzem, cada um deles, um elemento em particular da exegese. Teoricamente, ao dominar um desses capítulos, o leitor até poderia executar esse aspecto exegético mesmo numa ilha deserta. Leitores que aprendem todo o processo exegético se qualificam como exegetas autônomos. Algumas sugestões sobre o processo são apresentadas no capítulo 10. O capítulo 11 trata da ampliação e do refinamento de cada elemento específico do processo exegético, com o uso de outros recursos e ferramentas. Em outras palavras, o capítulo 11 é para aqueles que retornaram da ilha deserta para a civilização e novamente dispõem de biblioteca, computador, colegas de leituras e outros recursos disponíveis.



PARTE 2: OS ELEMENTOS

Capítulo 3: Pesquisa

A cuidadosa leitura e análise de qualquer texto, seja um livro, ensaio ou poema, requer uma pesquisa inicial do conteúdo do documento. Essa pesquisa prepara o leitor, alertando-o a respeito dos aspectos importantes do texto em consideração no processo de leitura atenta. É válido também para a leitura da Bíblia. Esse pequeno (porém importantíssimo capítulo) introduz algumas simples estratégias para a pesquisa sobre uma passagem escolhida em seu contexto. Importantes sugestões para dar suporte a essa parte do processo exegético são encontradas na seção 3 do capítulo 11. 

Vejamos aqui um resumo deste capítulo: O processo inicial da pesquisa e questionamento do texto no seu contexto oferece ao leitor um “reconhecimento do terreno” e encoraja a busca de observações preliminares e perguntas para a investigação. A pesquisa inicial inclui assumir uma pressuposição sobre o significado do texto.

Certamente, em exegese, um pressuposto deve ser trabalhado e refinado (ou, ocasionalmente, até mesmo descartado!) no decorrer de um trabalho criterioso, e substituído por algo bem estudado, claramente articulado e (em um trabalho escrito) convictamente apresentado como tese.

A introdução de um trabalho escrito de exegese, finalizado na conclusão do processo exegético, apresenta a tese da dissertação à luz dos resultados do processo exegético.


Capítulo 4: Análise Contextual: o contexto histórico, literário e canônico do texto.

As pessoas e as comunidades são constituídas, principalmente, por três coisas: (1) Os eventos significativos que vivenciam (pessoal ou indiretamente através de histórias) e repassam; (2) Os relacionamentos públicos e individuais nos quais estão envolvidas; (3) Os valores que adotam, conscientemente ou não. Esses três aspectos da vida humana – nossos contextos histórico, sociopolítico e cultural – são também, obviamente, aspectos da vida nos “tempos bíblicos”. De todos os elementos de exegese, a compreensão dos contextos histórico, social e cultural, o contexto histórico é o aspecto mais difícil para os não acadêmicos (e mesmo para os acadêmicos). [p.90-91]

Costuma-se dizer que um texto sem contexto é um pretexto – uma desculpa para que a suposição de alguém possa ser confirmada pelo texto. Em outras palavras, muitas interpretações equivocadas da Bíblia são devidas à negligência do contexto literário. Para compreender uma passagem, você precisa tentar ver se ela se encaixa numa unidade literária (ou várias) mais ampla do que naquela em que ocorre: por exemplo, o capítulo, a seção do livro bíblico e o livro como um todo. O contexto literário, portanto, envolve os contextos (plural). O texto é muitas vezes semelhante ao centro de vários círculos concêntricos, cada um deles representando uma seção maior do livro bíblico. Esses contextos são geralmente considerados próximos ou imediatos, contextos restrito e amplo. [p.95]

Somado ao contexto literário, o texto também tem um contexto retórico. A retórica é a arte efetiva (e, portanto, muitas vezes persuasiva) de falar e escrever. De acordo com Cícero, o propósito da retórica é o ensino, o prazer, e mexer com ouvintes e leitores. Assim, o contexto retórico faz referência ao lugar da passagem na estratégia global do documento no sentido racional, artístico e/ou influência e persuasão emocional. O contexto histórico é uma função do contexto literário, porém é mais que isso. Analisar o contexto literário significa perguntar onde o texto está localizado; analisar o contexto retórico significa perguntar por que o texto está aí situado. [p.96]

Para aqueles que leem a Bíblia teologicamente, um dos contextos dentro dos quais um texto deve ser considerado é a própria Bíblia, ou cânon, como um todo – o contexto canônico. Isso não quer dizer que os intérpretes teológicos devam ignorar o contexto histórico e literário, mas que eles podem suplementar os expandir esses contextos ao ver o texto como parte de um livro chamado Bíblia. Se decidir levar em consideração o contexto canônico, é importante fazer as seguintes perguntas: (1) Que papel (caso exista) esse texto e/ou temas primários e personagens desempenham no restante das Escrituras? (2) Qual é, especificamente, a relação (caso exista) entre esse e outros textos no outro Testamento (Antigo ou Novo)? (3) Com quais outras passagens bíblicas ou temas seu texto se harmoniza ou se relaciona? (4) Com quais outros textos bíblicos ou temas seu texto parece estar em conflito? Pode essa tensão ser resolvida? (5) Isso significa considerar que o contexto canônico permite ao exegeta colocar textos bíblicos em diálogos uns com os outros. [p.98-99]

Um texto sem contexto – um texto isolado de seus variados contextos (plural) – é potencialmente uma arma perigosa. Uma exegese responsável reconhece a dificuldade em descobrir esses contextos tanto históricos quanto sociais, culturais, literários, retóricos ou canônicos, mas se recusa a desistir da tarefa. As alternativas para se empenhar num trabalho complexo requerido por esse elemento de exegese são muito custosas.


Capítulo 5: Análise Formal: forma, estrutura e movimento do texto.

A análise formal começa com a questão da forma literária da passagem – a que espécie ou tipo de escrita ela pertence. Especialistas em estudo da Bíblia e outros eruditos usam vários termos para se referir a que tipo de literatura o texto pertence: forma literária, estilo, gênero e até mesmo subgênero. Portanto, a análise formal de um texto deve levar em consideração sua forma literária, sua estrutura (divisões e subdivisões) e seu movimento do começo ao fim. Há princípios específicos de interpretação apropriados para cada forma de literatura e gênero. [p.103]

A descoberta de uma estrutura, esquema ou padrão organizacional em um texto é uma arte. Existe apenas uma “resposta certa”, uma forma correta de esboçar um texto: duas pessoas podem discernir dois diferentes padrões, mas igualmente legítimos no texto. É importante saber, entretanto, que há diversos padrões de estruturas comuns que ocorrem em muitos textos bíblicos; na verdade, eles ocorrem também em muitos textos fora da Bíblia. Padrões comuns de estrutura geral incluem repetição, contraste ou antítese, paralelismo, inclusio e quiasmo.

Em acréscimos aos padrões estruturais genéricos que podem ocorrer em algum texto, muitos gêneros literários seguem certa forma de padrões regulares, Ou seja, algumas formas e gêneros literários tem padrões estruturais comuns para gênero, incluindo grande abrangência de gêneros como o discurso e a narrativa retórica, bem como modalidades específicas, como histórias de milagres. Alguns formatos gerais nos quais um texto se move do começo ao fim incluem descrição, explanação, repetição, lógica, catálogo e comparação/contraste.

“Em um trabalho escrito de exegese, é útil igualmente para o escritor e para o leitor se o documento incluir um esboço breve, que indique o conteúdo básico de cada uma das partes que um estudante discirna no texto. O esboço deve ser seguido por uma breve exposição do movimento do texto. Esse esboço de uma passagem bíblica se torna a súmula para a análise detalhada do texto, que é o próximo passo do trabalho. Embora a consideração da forma, estrutura e movimento exijam muito tempo de estudo e preparação, devem ocupar um espaço relativamente pequeno dentro do trabalho. De outra forma (e isso é um problema comum), ele se torna repetitivo. Entretanto, se você fez um bom trabalho analisando a estrutura e o movimento do texto, você já terá feito quase metade do trabalho – porque já foi forçado a começar a análise detalhada” [p.119].


Capítulo 6: Análise detalhada do texto

A quantidade e o caráter de questões a ser consideradas e tratadas ao se fazer a análise detalhada de um texto pode ser impressionante. Não se deve, porém, desistir. Por um lado, como em qualquer outra atividade, a exegese requer prática. Como dizem os franceses para transmitir a ideia de que a prática leva à perfeição: “É forjando que alguém se torna um ferreiro”. Ou: É somente fazendo exegese que alguém se torna um exegeta. [p.146]

Neste capítulo aprendemos que a exegese envolve uma atenção balanceada entre o quadro maior e a atenção aos detalhes. É importante escolher cuidadosamente que detalhes serão analisados. Há certas perguntas básicas a respeito de detalhes que devem ser feitas para cada texto em relação a palavras-chave, imagens, aspectos literários, componentes das frases, apelos à tradição, fontes, elementos narrativos e retóricos, tom e humor, assim como a relação das partes com o todo.

O processo exegético é um círculo hermenêutico que se move para frente e para trás, das partes menores para o todo. Palavras-chave e imagens num texto são como as variáveis desconhecidas de uma equação; o significado depende do contexto e da relação com os demais elementos. 

A análise cuidadosa da frase em um texto, e a função de cada frase, é parte essencial no processo exegético. A exegese inclui atenção para identificar qualquer fonte usada pelo texto e como elas são usadas. A exegese também deve abordar a intertextualidade, tanto literária quanto cultural, ou o fato de os textos ecoarem tanto em outros textos quanto em realidades extratextuais. A análise detalhada dos textos narrativos inclui atenção ao enredo, desenvolvimento do personagem e o “mundo da narrativa” do texto.


Capítulo 7: Síntese

Sintetizar é juntar vários elementos numa espécie de um todo unificado. Sintetizar, então, é um ato disciplinado e criativo de integração. Ao formular uma síntese da passagem, você está juntando tudo o que tiver pensado ou dito a respeito dela. No entanto, você não está fazendo simplesmente um resumo; está propondo uma conclusão acerca do significado essencial do texto, em relação ao propósito ou função, depois de tê-lo entendido. Em termos literários, você está procurando dizer algo sobre o tópico e o tema do texto – tanto o próprio tema quanto sua tendência ou perspectiva sobre o assunto. Voltando ao seu pressuposto inicial, você está agora transformando sua pressuposição e a cuidadosa análise numa coerente leitura do texto como um todo. [p.150]

Uma síntese expressa criativamente uma conclusão bem concebida, bem desenvolvida e bem defendida, feita por um intérprete, sobre o significado e a função de um texto. Essa síntese será exclusiva para o intérprete que a apresenta. Em um trabalho escrito de exegese, ela é o somatório do argumento e da ponte para a reflexão teológica.

Vejamos um resumo deste capítulo: Sintetizar não é meramente fazer um resumo, e sim, um ato criativo do desenvolvimento de uma conclusão sobre o significado e função de um texto. Várias características de um texto podem fornecer sugestões quanto ao seu assunto principal e por razões variadas, incluindo o caráter inerente do próprio texto, seu significado pode ser ambíguo. E finalmente, por ser a exegese uma arte (um ofício com uma inerente dimensão subjetiva), assim como uma ciência (técnica), e porque cada texto bíblico é multifacetado, um texto tem uma variedade de formas legítimas de leitura; ele possui uma limitada, embora não infinita, polivalência.


Capítulo 8: Reflexão: Interpretação teológica. O texto hoje.

A reflexão sobre um texto bíblico dificilmente começa pelo seu final. O processo exegético é, naturalmente, um processo de reflexão do começo para o final. Após a análise cuidadosa e a síntese terem sido feitas, você está melhor capacitado para pensar de forma mais adequada e sistemática sobre o significado do texto. Nesse ponto, a pergunta mais importante passa de "por quê?" Para e então?

Esse estágio, ou dimensão de exegese, embora evitado por alguns leitores, é realmente o elemento final apropriado desse processo. Grandes obras de arte (incluindo literatura religiosa) inevitavelmente convidam ao envolvimento. Elas possuem uma capacidade inerente de inspirar a imaginação e criar novas possibilidades de pensar e viver. O objetivo final da exegese, a "direção" do texto, é a consideração cuidadosa do convite do texto à imaginação, ao pensamento e especialmente à comunidade que chama a Bíblia de "Escrituras" — um texto sagrado e uma mensagem divina. Neste capítulo é observado alguns possíveis objetivos para essa reflexão sobre o texto e uma ampliação do entendimento de exegese para incluir o que agora é chamado de exegese teológica da interpretação bíblica.

Este capítulo contém mais teoria e teologia do que a maior parte dos outros capítulos deste livro. Isso é necessário para prover um apropriado fundamento e uma estrutura para o trabalho prático — para o qual há também numerosas sugestões na última parte deste capítulo.

Um resumo deste capítulo, pode ser apresentado desta forma: Existem cinco posturas interpretativas básicas ou hermenêuticas: antipatia, apreciação ou não descomprometimento, discernimento ou investigação, suspeição e aceitação ou fé. Uma hermenêutica da confiança é a hermenêutica operativa da interpretação teológica. Está fundamentada em certos princípios teológicos que enfatizam convicções como a origem divina, universalidade e unidade da Escritura como mensagem divina em palavras humanas. 

Uma hermenêutica teológica é também uma hermenêutica missional — uma leitura com a finalidade de discernir e participar da missão de Deus no mundo. 

A consideração dos dois horizontes, do passado e do presente — reflexão e aplicação ou apropriação —, é um elemento essencial de um processo completo da leitura, mas a aplicação não deve ser feita descuidada ou prematuramente.

É importante fazer as perguntas certas em relação a um texto, ao considerar seu significado mais amplo, mais profundo ou contínuo. Para as pessoas de fé, a questão essencial é: "Que afirmações sobre Deus e sobre suas reivindicações para nós o texto apresenta?" Pessoas de fé procuram realizar, envolver-se ou tornar-se uma exegese viva do texto — participar da história divina contada peIas Escrituras. Isso é feito de forma criativa e fiel, mas, às veze também até de modo crítico.


Capítulo 9: Aprimoramento e ampliação da Exegese

Um dos pressupostos fundamentais deste livro é que a exegese pode e deve ser feita por alguém que não é especialista. O aluno, professor ou pastor não precisa ter um doutorado em estudos bíblicos para fazer uma excelente exegese. Tal suposição não significa, porém, que recursos apropriados devam ser negligenciados ou que o trabalho de guias especializados possa ser ignorado. Os "recursos de compartilhamento" e o campo da erudição bíblica podem e devem informar o próprio trabalho do aluno ou do pregador se esse trabalho for responsável. E preciso que haja colegas na investigação, parceiros no diálogo, bem como instrumentos artísticos.

Qualquer pessoa que já tenha consultado mais de um comentário sobre um texto bíblico sabe que os estudiosos muitas vezes discordam do significado da passagem. O exegeta não especialista não pode e não deve, portanto, tomar cada frase de um comentário como um "evangelho". Ao contrário, cada informação deve ser lida com critério e de modo crítico, em diálogo com seu próprio trabalho e com quaisquer outros recursos disponíveis. O trabalho de qualquer pessoa pode ser tão válido quanto o de um comentarista. Uma cuidadosa interpretação do texto, contestada, informada e refinada pelo trabalho dos estudiosos, é o objetivo deste passo no processo exegético.

Portanto, pessoas que fazem bons trabalhos de exegese consultarão os recursos e contribuições compiladas por especialistas, pois é possível obter contribuições acadêmicas através de notas e bibliografias em várias fontes e através de diversos tipos de recursos bibliográficos.



PARTE 3: SUGESTÕES E RECURSOS

Capítulo 10: A exegese e o exegeta – Erros a evitar, descobertas a fazer.

Até agora, temos visto neste livro os sete elementos que compõem o processo de exegese — lendo cuidadosamente e analisando um texto bíblico — defendido neste livro. Agora está pronto para escolher uma passagem a qual vai estudar e analisá-la em detalhes. Inicialmente, porém, algumas palavras finais de cautela e encorajamento.

Dois erros gerais comuns na utilização desse método de exegese podem ser facilmente evitados se forem conhecidos antecipadamente. Em primeiro lugar, alguns alunos tornam-se tão completamente ligados ao procedimento que acabam perdendo qualquer sentido de ideias originais ou de criatividade. O objetivo do método não é sufocar a criatividade, mas fornecer um meio de investigação disciplinada, bem como de imaginação. Alunos e professores devem sempre empenhar-se em fazer novas perguntas sobre os textos e acerca de si mesmos. O medo desse processo criativo é o que leva, por vezes, os alunos simplesmente a coletar uma série de opiniões de estudiosos, encadeá-las em conjunto e chamar isso de trabalho de exegese. Mesmo quando devidamente documentadas, somente uma série de citações não constitui exegese; a exegese de um texto é a forma de leitura que você faz do texto, embora se trate de uma leitura fundamentada pelos recursos bibliográficos. Não é uma mistura — nem mesmo uma coleção organizada — de fatos, opiniões e possíveis interpretações.

Em segundo lugar, ao escrever trabalhos de exegese, alguns alunos são propensos a se tornar repetitivos. A introdução, esboço, análise, síntese e até mesmo suas próprias reflexões podem ficar muito semelhantes entre si. Isso não precisa acontecer, no entanto, uma vez que cada parte do trabalho da exegese tem seu próprio objetivo e foco. Há uma diferença, por exemplo, entre a discussão do contexto literário e a discussão da forma, estrutura e movimento, e as duas discussões não devem ser redundantes. Além disso, cada seção do trabalho deve levar a interpretação da passagem para um passo adiante; cada parte deve conduzir a compreensão do leitor a um novo nível e não apenas repetir observações e conclusões anteriores.


Capitulo 11: Recursos para exegese

Este capítulo possui uma bibliografia anotada de recursos acadêmicos para ajudar no processo de exegese. Esses recursos são algumas das ferramentas mais importantes e comumente usadas, especialmente para o sétimo elemento, expansão e refinamento da exegese, que são aplicadas a todos os outros elementos. Ao contrário de William Tyndale, no entanto, muitos exegetas contemporâneos não leem, ou já não se lembram do hebraico e grego. Assim, a maioria dos recursos listados a seguir não requerem um conhecimento das línguas originais, embora em alguns casos esse conhecimento possa auxiliar, e em outros seja absolutamente necessário (por exemplo, para usar o NT grego).

Esta parte do livro está dividida em nove seções, correspondendo aos primeiros nove capítulos. Os recursos para o capítulo 9 são principalmente ferramentas bibliográficas e outros livros que apontam recursos adicionais. Alguns deles desafiam a categorização e muitos são úteis para uma variedade de elementos do processo exegético. Os comentários, por exemplo, contêm não só uma exegese detalhada, mas também informações sobre o contexto, sobre a forma e a estrutura, e às vezes sobre o significado contemporâneo de um texto. Todos esses recursos estão conectados como recursos de propósitos múltiplos com o elemento de exegese para o qual eles são mais úteis. 

Para uma lista resumida de recursos da internet, veja o Apêndice D. Não é algo exaustivo, apenas útil. Os exegetas zelosos usarão esses trabalhos para procurar outros recursos, conforme a necessidade. E todos os leitores devem ter cuidado e adequada cautela ao usar esses recursos; todos são benéficos, mas nenhum deles é infalível.


CONCLUSÃO

Para concluir esta resenha, afirmo e RECOMENDO, pois trata-se de uma obra altamente prático e didático, o livro mostra que essa tarefa pode ser facilmente executada por meio de sete subsídios principais: pesquisa, análise contextual, análise formal, detalhamento do texto, síntese, reflexão e expansão e aprimoramento da exegese. Para cada um desses elementos, o renomado e premiado autor Michael J. Gorman fornece uma explicação acessível, sugestões objetivas e úteis — como erros a evitar e descobertas a fazer —, além de exercícios para ajudar o leitor a desenvolver perícia exegética. Para melhorar ainda mais a assimilação do aprendizado e seu desenvolvimento, o autor fornece recursos atualizados da mídia impressa e da Internet para os que desejam prosseguir o estudo em qualquer aspecto da exegese. Os apêndices fornecem exemplos e diretrizes práticas para escrever um acurado trabalho de pesquisa exegética.

Para acessar o link do livro, clique na imagem acima.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O QUE APRENDI EM NÁRNIA [Resenha]


WILSON, Douglas. O que Aprendi em Nárnia. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018. 178p. 


O AUTOR E O LIVRO 

Eu na verdade sou um apreciador de todos os textos produzidos por Douglas Wilson, mas lendo este livro descobri coisas novas acerca deste autor. Primeiro, ele diz que foi criado como um “narniano” e segundo a forma como fala de C. S. Lewis: “E, claro, gostaria de agradecer a C. S. Lewis, o homem que me influenciou mais do que todos os outros autores que já li. Muitas vezes o encontro no final de cada linha de raciocínio, perto da raiz de cada árvore. As dívidas não são pagas simplesmente ao reconhecê-las, contudo, por mais frágil que seja a sua expressão, o reconhecimento ainda deve ser expresso. Sou profundamente grato.” 

Douglas Wilson começa esta série de meditações sobre As crônicas de Nárnia de C. S. Lewis com a seguinte observação: “Este livro de modo algum se destina a ser uma introdução a Nárnia. Ao contrário, está mais para uma conversa entre dois amigos sobre alguns outros bons amigos, falando sobre os bons momentos que tivemos e por quê”. Wilson realça os temas práticos da vida cristã e madura que emergem dessas histórias clássicas (nobreza, confissão, graça completa) – um contraste feliz à pobreza da vida moderna. Obrigatório para todos os fãs de Nárnia, jovens ou velhos. 

O livro é composto de sete capítulos contendo sete lições que o autor aprendeu lendo “As Crônicas de Nárnia”. Pra o autor essas lições ou verdades básicas estavam no centro de como o Senhor usou essas histórias em sua vida e a sua esperança é aqueles que leem esse livro sejam alcançados e compreendam essas verdades. 

Além do agradecimentos e introdução, os sete capítulos estão divididos com os seguintes temas: Autoridade, confissão de pecados, nobreza, disciplinas espirituais, paixão por histórias, graça perfeita e amor por Aslam e amor a Deus. 


CAPÍTULO 1 - AUTORIDADE 

Antes de iniciarmos o resumo deste capítulo é muito importante observar o que o autor fala sobre a conexão entre Aslam e Jesus. C. S. Lewis foi bastante inflexível em dizer que os livros de Nárnia não são uma alegoria. Ao contrário, ele chamou esses livros de “uma grande suposição”. Suponha que existiu outro mundo como Nárnia e que Deus entrou nele de um modo semelhante ao que entrou no nosso – com que ele se pareceria? Portanto, os habitantes de Nárnia, em geral, não possuem significados específicos alegóricos. Mas, Aslam, obviamente, preenche o lugar de Jesus nesta grande “suposição”. Certa vez ele às crianças, quando elas estavam para voltar à Inglaterra, que lá o conhecerão por “outro nome”. No final de A Viagem do Peregrino da Alvorada vemos uma visão dele como um cordeiro, o símbolo cristão de Jesus. Em A Última Batalha, quando tudo converge em um juízo final, fica muito claro, novamente, que Aslam é Cristo, o Juiz. 

Portanto, exatamente como em nosso mundo toda autoridade verdadeira flui de Jesus Cristo, assim também, em Nárnia, toda autoridade verdadeira flui de Aslam. Ele estabelece o padrão da verdadeira autoridade que seus seguidores imitam, e o fundamento básica dessa autoridade, em contraste direto com os personagens maus sobre os quais iremos identificar, é de sacrifico e entrega. 

Wilson descreve autoridade da seguinte forma: “Autoridade é algo inevitável. Isso significa que as pessoas podem usá-la correta ou incorretamente, mas não podemos evitar por completo ter pessoas em posição de autoridade. Do mesmo modo, as pessoas podem submeter-se à autoridade correta ou incorretamente (ou á autoridade certa ou errada), mas sempre estão sujeitas a algum tipo de autoridade. Autoridade é algo que Deus estabeleceu nesse mundo e, por direito de criação, ele é a autoridade última por aqui. Contudo, uma vez que a humanidade é depravada, temos muitas maneiras de abusar da autoridade ou de tentar negá-la completamente” [p.15] 

Falsa autoridade – As Crônicas de Nárnia contém muitos personagens que tentam abusar da autoridade de muitas formas. Mas, no fim, todos têm um ponto em comum. A raiz de todos os seus problemas é o egoísmo e a ganância – o oposto da ordem bíblica para os líderes serem sacrificiais e generosos. Os que exerceram uma falsa autoridade, são eles: Miraz, de O Príncipe Caspian (assassino e usurpador); Eustáquio Mísero, de A viagem do Peregrino da Alvorada (não tem respeito pelos pais e defende o igualitarismo); Jadis, de O Sobrinho do mago (pelo fato de serem magos acreditam estar “acima das leis”); Achosta, de O cavalo e seu menino (Exerce um autoridade fundamentada no puxa-saco, adulação e manipulação); Manhoso, o manipulador de A última batalha (ele é um tipo que manipula através do mentir e trapacear para conseguir o quer) e os Anões, de A última batalha (outrora eram escravo e agora entendem que todas as autoridades devem ser escravocratas, então resolvem se livrar de toda a autoridade). Todos estes, obtiveram sua autoridade por meios injustos e escusos, ou abusando egoisticamente da autoridade que já possuíam, ou (mais comumente) ambos. [p.23] 

A verdadeira autoridade é sacrificial – Aslam é o principal exemplo e padrão, e é exatamente como Jesus neste quesito. Mas, a feiticeira, em “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, só entende o tipo de autoridade aferradora: se quer algo, você o toma. Ela não entende o tipo de autoridade de Aslam. O que ela pensa quando Aslam chega para negociar a libertá-lo de Edmundo? Lembre-se de que Edmundo traíra seus irmãos e, por conta disso, mesmo se ele tivesse sido resgatado da feiticeira, ela teria direito legítimo sobre ele, porque este é um traidor. Aslam não questiona o direito. Ao contrário, faz algo surpreendente e incompreensível para todos aqueles que, como a feiticeira, percebem apenas o tipo de autoridade aferrador: ele aceita entregar-se em troca de Edmundo. Isto porque Aslam sabe que o caminho para a autoridade é o sacrifício. Quando a feiticeira o vê chegando, acredita que triunfou. Tudo que ela entende é o que Aslam chama de “a magia profunda””, a qual permite ao traidor ser liberto se outro escolher morrer em seu lugar. Contudo, após Aslam ressuscitar, ele explica o equívoco da feiticeira: “A feiticeira pode conhecer a magia profunda, mas não sabe que há outra magia ainda mais profunda” (p.174). A magia ainda mais profunda é que amor e sacrifício vencem o ódio e a ganância. Eles geram a autoridade verdadeira e última. [p.27-28] 

A verdadeira autoridade é humilde – Todos os vilões mencionados até aqui – Miraz, Jadis, Tio André, manhoso e até mesmo Achosta – são orgulhosos e ensimesmados, coisas que vão acompanhadas de sua falsa autoridade. Mas Aslam é o padrão de autoridade verdadeira, e quando ele outorga esse tipo de autoridade aos seus servos, a verdadeira humildade chega com ela. É obvio que nenhum deles é perfeito – pois têm pecados e imperfeições residuais -, mas exercem a autoridade de maneira coerente com verdadeira humildade. São eles: Príncipe Caspian, que quando questionado por Aslam se estava pronto para assumir o reino, a sua resposta foi: Bem não sei – respondeu Caspian. – Não passo de um garoto. - Muito bem- replicou Aslam. – Se dissesse que tinha a certeza, seria a prova de que não estava apto a reinar. (p.389). Caspian percebe a verdadeira natureza da autoridade, que envolve grande sacrifício pessoal, e essa compreensão produz humildade. Ele admite que não se sente pronto para assumir tal encargo e, paradoxalmente, isso significa que ele está pronto. [p.29-30] 

Autoridade e Obediência – Até a esta parte do livro, se tem falado sobre a verdadeira e falsa autoridade no contexto das pessoas que ocupam essa posição. E o que dizer daquelas que estão debaixo de autoridade? Qual a forma certa ou errada de reagir à autoridade dos outros? Wilson cita dois exemplos. Primeiro, o anão Trumpkin, em O Príncipe Caspian – que mesmo não concordando com Caspiam e da decisão do conselho, lhes permanece leal e respeitosamente se submete à sua autoridade. Esse tipo de obediência não deve envolver murmuração ou indolência. A obediência deve ser de corpo e alma, quer você considere a tarefa uma ideia, quer não. Segundo, A Cadeira de Prata fornece outro exemplo de lealdade em alguém que está debaixo de autoridade. Perto do fim do livro, Eustáquio e Jill são furtivamente carregados para uma reunião de corujas no meio da noite. Ele não conhece os pormenores da política de Nárnia, mas sabe onde está, e suas primeiras palavras são uma grande prova do seu caráter: “O que pretendo dizer é o seguinte: sou fiel ao rei, e se esta reunião de corujas tiver qualquer caráter subversivo, minha presença aqui é um equívoco” (p.542). 

A verdadeira autoridade e submissão é uma das grandes lições de Nárnia — não apenas como governar sem ser um tirano, mas também como obedecer sem ser um seguidor estúpido ou um escravo. Se você se recusar a obedecer — se se aferra a essa autoridade e diz: "Não obedeço a ninguém senão a mim mesmo!" —, então você, de fato, tornou-se um escravo. Quando você a renúncia, obedece às autoridades que Deus lhe deu e obedece ao próprio Deus, ele o liberta. 


CAPÍTULO 2 - CONFISSÃO DE PECADO 

Aprender como dizer perdão de modo verdadeiro é uma das mais importantes lições que você jamais aprenderá, e isso se dá porque é basicamente uma questão de aprender como ser uma pessoa genuinamente sincera e humilde. Os dois traços da humildade e sinceridade sempre andam juntos. Lewis deixou claro nas histórias de Nárnia que os heróis são fundamentalmente sinceros, ao passo que os maus são fundamentalmente fingidos e orgulhosos. 

Confissões genuínas – Há dois enredos comuns que você pode encontrar em todos os exemplos. O primeiro é que a confissão de pecados se resume a honestidade. O segundo é que as pessoas são constantemente tentadas a confessar os pecados dos outros, em vez de os próprios, e que desaprender esse instinto natural é o primeiro passo para aprender como confessar corretamente. 

Exemplos de confissões genuínas – Em O Sobrinho do Mago, temos Digory e Polly. No começo de O leão, a feiticeira e o guarda roupa, temos o caso de Edmundo que zomba de Lúcia acerca da existência de Nárnia. Em O Cavalo e seu menino, temos o caso de Shasta e Aravis. Em O Príncipe Caspian é o caso de Susana. Em A Viagem do Peregrino da alvorada temos o caso do Príncipe Caspian. Em A Cadeira de Prata, temos o caso de Eustáquio e Jill. Em A última batalha, encontramos a desavença e o pedido de perdão entre Manhoso e o jumento Confuso. 

Exemplos de confissões falsas – Agora, vamos olhar para o outro lado da moeda e ver como Lewis lida com as confissões falsas. Os exemplos que temos, começa com o livro A viagem do Peregrino da Alvorada, encontramos os casos de Eustáquio, Digory, Tio André e finalmente a própria Lúcia. 

É notável com que frequência o tema da confissão se revela em Nárnia. Os temas centrais que interligam todos eles são estes: primeiro, que a boa confissão é sincera e humilde, e isso significa que você não deve inventar, encobrir, minimizar ou dar desculpas; segundo, que Deus perdoa completa e imediatamente aqueles que confessam com sinceridade; e terceiro, que cada pessoa é responsável por confessar seus próprios pecados — não os do seu próximo. 

O que é digno de nota também é a capacidade de Lewis de pegar um assunto como "confissão de pecados e fazer com que as lições certas surjam naturalmente enquanto conta as histórias. Quando você aprende sobre confissão de pecados em Nárnia, não está sentado na igreja ouvindo um sermão, participando de uma conferência ou fazendo um curso de cristianismo prático na escola. É claro que tudo isso são coisas boas de fazer, mas o método de ensino e como aplicá-lo é diferente quando você aprende por meio de uma história. Você aprende que, em algum lugar lá no fundo, você não quer ser um Edmundo — você quer ser um Pedro. Você não quer apontar o dedo, como Lúcia fez quando os outros não quiseram acreditar que ela viu Aslam. Você entende que usar desculpas manifesta pobreza de caráter, pois foi assim que Eustáquio agiu. Você quer contar a história inteira, e não amenizar suas próprias falhas, pois foi assim que Digory e Polly agiram com Aslam. Quanto mais que você lê histórias como essa, mais essas lições se assentam nos seus ossos e mais você se vê como um personagem em sua própria história. É um exercício muito bom de vez em quando parar e pensar: "Se minha vida fosse uma história, estou sendo um personagem admirável neste exato momento ou não?" É incrível quantas camadas de auto justificação mesquinha essa ideia sozinha pode remover. 

A confissão sincera possibilita que pessoas imperfeitas vivam em comunhão umas com as outras como amigos, irmãos, pais, filhos e vizinhos. 

Sem confissão, o pecado acumulado só se fortalece, até que destrua relacionamentos e vidas. Confissão e perdão, longe de serem assuntos cansativos de aprender, são as lições mais fundamentais e libertadoras da vida cristã, e sou profundamente grato que as histórias de Nárnia sejam capazes de ensiná-las de um modo tão claro, eficaz e vibrante. [p.63-65] 


CAPÍTULO 3 - NOBREZA 

O que significa ser nobre? Semelhantemente a conceitos como autoridade e confissão, existem os dois lados da moeda – uma nobreza verdadeira e uma falsa. Existem também personagens sem nenhum tipo de nobreza. O Rei Pedro é um exemplo de nobreza verdadeira. 

A Nobreza é feliz – Em A viagem do Peregrino da Alvorada, o navio aporta nas Ilhas Solitárias, onde eles encontram Lorde Bern, um dos amigos perdidos do pai de Caspian. Lewis descreve a família de Bern assim: Bern, sua simpática esposa e suas encantadoras filhas acolheram os visitantes com alegria (p.424). Pouco tempo depois, Caspian liberta as ilhas dos burocratas rabugentos, gananciosos, negligentes e tirânicos que as haviam governado outrora, e nomeia Bern como duque no lugar dele. Pode-se dizer que Lewis não gosta de muito governantes e burocratas; eles são desprovidos de nobreza. O que as Ilhas Solitárias precisam, de acordo com Lewis, não é de um burocrata enfadonho, mas de um duque nobre com uma família feliz que gosta de dar gargalhadas ao redor da mesa de jantar. 

Nobreza e aparência – A nobreza afeta até mesmo a aparência das personagens. Em A cadeira de prata, quando as duas crianças, o Brejeiro e o Príncipe Rilian, escavam um túnel subterrâneo e desembocam direto na dança narniana da neve, os narnianos imediatamente reconhecem Rilian como nobre. A nobreza de coração e mente está refletida na aparência externa de Rilian; o estado do coração e da mente de uma pessoa revela o seu aspecto para além do nível físico. 

Nobreza e lealdade – Pessoas nobres sempre mantém sua palavra. Em O Príncipe Caspian, temos Nikabrik, o anão, que quando alguém o lembra de que ele fez um juramento de lealdade a Caspian, em resposta ele debocha: “Mesuras da corte!” (p.370). Em outras palavras, ele faz pouco caso de seus juramentos e lealdades e os considera como nada mais do que palavras vazias, e zomba daqueles que acham que tais formalidades têm algum significado. 

Nobreza e sacrifício – Em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, Aslam – a figura mais nobre da história – se sacrifica no lugar de Edmundo, que é, nessa altura da narrativa, o personagem mais infame. 

Nobreza como dom – Temos visto, até gora, como a nobreza envolve dever, sacrifício, folia e liberdade. Aqueles que estão se tornando nobres estão seguindo o exemplo de Aslam, mas também é importantíssimo notar que essas pessoas não são capazes de fazer isso pelas próprias forças. A capacidade de seguir Aslam fielmente é, em si mesma, um dom dele. 

Nobreza e humildade – Nossos estereótipos de “nobreza” tendem a associá-la com o orgulho. Mas, isso só é verdade em relação à falsa nobreza: a verdadeira nobreza é sempre humilde. Quando (em A viagem do Peregrino da Alvorada) Eustáquio, Lúcia e Edmundo vão dar em Nárnia através de um quadro na parede, eles são arremessados fora do oceano no navio de Caspian. Pra, trata-se de um pequeno navio sem muitos camarotes privativos, mas Caspian é o primeiro da fila a humilhar-se concedendo o seu a Lúcia. 

Nobreza e etiqueta – Nenhuma discussão sobre a nobreza narniana seria completa sem alusão a Ripchip. Pouco tempo após Eustáquio, Edmundo e Lúcia embarcarem no Peregrino da Alvorada, o comportamento detestável de Eustáquio leva Ripchip a desafiá-lo para um duelo. Quando Lúcia intervém, Ripchip condescende com relutância: “Para servir a uma senhora, mesmo uma questão de honra pode esperar, pelo menos por agora” (p.409). Ora, Ripchip tem o que alguns chamariam de um senso superabundante de nobreza, em que ele é rápido para defender (normalmente com um duelo) a honra de qualquer pessoa de bem (muito frequentemente a própria). Mas também sabe que as boas maneiras exigem que “servir a uma senhora” fale mais alto do que praticamente todas as outras preocupações. [p.67-89) 

Nobreza significa dedicação, lealdade, humildade e sacrifício — doar-se aos outros. Mas também significa fazê-lo com alegria e prazer. Doar-se de forma triste e melancólica não é nobre. Tem gente que se doa enquanto fica se remoendo sobre o quanto lhe é difícil e horrível fazer isso. A Bíblia diz que todo aquele que dá também recebe. Se perder a vida por amor a Jesus, você a encontra; mas, se tentar aferrar-se a ela, você a perde. Portanto, se você se doar como um estoico, porque isso é uma coisa nobre de fazer, e pensar "Bem, isso diz respeito às minhas necessidades, meus interesses e minha individualidade", então você não entende isso. Não significa dizer que você receberá de volta tudo a que renunciou, mas significa que o que você recebe será mais glorioso e mais gratificante do que aquilo a que você renunciou. 

Nobreza é algo que você pode manifestar (ou não) em qualquer hora ou ocasião, quer em ocasiões especiais e formais, quer no dia-a-dia. Sua nobreza pode ser testada quando você ajuda sua mãe com a louça ou quando encontra o Presidente da República. Ela pode ser testada numa quadra de basquete na faculdade ou num campo de batalha estrangeiro. A nobreza deve ser praticada em toda parte — com seu irmão, sua mãe, seus amigos e seus inimigos. O mundo é um lugar complicado, mas o âmago da nobreza é simples: sacrifício coroado com alegria. 


CAPÍTULO 4 - DISCIPLINAS ESPIRITUAIS 

Por “disciplinas espirituais”, refiro-me às práticas diárias e habituais de adoração e santificação. Elas são um pouco como o equivalente espiritual de escovar os dentes – algo que você faz todos os dias, de modo que já não considera mais um fardo ou uma importunação. É algo que você sabe que tem que tem que fazer, e fica Felix em cumpri-lo, pois traz benefícios reais e duradouros. Você até fica meio aborrecido consigo mesmo pelo resto do dia se acontecer de esquecer ou se não tiver a oportunidade de fazê-lo. Alguns exemplos de disciplinas espirituais são a oração, a leitura da Bíblia, cultuar a Deus na igreja, tomar a ceia do Senhor e assim por diante. Os teólogos chamam essas práticas de instrumentos ou meios de graça que Deus usa para fortalecer você como cristão, para moldá-lo gradualmente em um determinado tipo de pessoa ao longo do tempo. 

Para Wilson, no livro A Cadeia de prata, as disciplinas espirituais são de fato um tema central da história, e é traduzido por sinais que é dado por Aslam, para dois personagens – Eustáquio e Jill. 

Para que estes personagens obtenham sucesso na missão, Aslam procura imprimir neles a poderosa importância dos sinais. Aslam trabalha neles a importância da memória e esquecimento. Ele os faz repeti-los vezes sem conta, até que tenha memorizado completamente: “Ante de tudo, lembre-se dos sinais! Repita-os ao amanhecer, antes de dormir e, caso acordar, durante a noite” (p.53). A exortação para lembrar é uma lição bastante bíblica. A linguagem de Aslam nessa passagem ecoa fortemente o que Deus manda Israel fazer em Deuteronômio 6.6-9. Meditar na palavra de Deus deve ser uma atitude que permeia todo o seu dia, preenchendo inclusive aqueles pequenos espaços de tempo livre que você dispõe quando está andando pela rua. Considere as palavras de Deus quando você acordar de manhã e quando for dormir. Repita-as. Memorize-as. Elas são os sinais pelos quais Deus guia você através da confusão do mundo e, sem elas, você está perdido. 

A importância da memorização para Eustáquio e Jill eram, porque enquanto eles estão no país de Aslam tudo parece perfeito, mas no mundo real os sinais seriam sufocados pelo cotidiano e desafios. Lewis está ensinando uma lição semelhante sobre disciplinas espirituais. Quando você está fazendo suas devoções diárias, ouvindo o sermão na igreja ou participando de um estudo bíblico, a mensagem de Deus parece muito clara: confie em Cristo, não furte, honre seus pais, perdoe setenta vezes, não cometa adultério e assim por diante. Mas a vida real, cotidiana, tende a fazer suas escolhas parecerem mais complicadas, e a mente tem uma forma de rapidamente tentar esquecer e ignorar o que Deus diz sobre determinado pecado enquanto a tentação está operando. As disciplinas espirituais preparam você para resistir a essa tendência. 

Wilson afirma que quando começamos a buscar seriamente as disciplinas espirituais, descobrimos, mais cedo ou mais tarde, por que elas são chamadas de disciplinas. Elas são difíceis, e você fracassará de muitas maneiras. Por causa disso, é importante lembrar duas coisas: que Deus é rápido em perdoar e rápido em nos capacitar a segui-lo mais fielmente. Ele não está usando essas disciplinas para nos esmagar. Elas são graça, não lei. É assim que Deus nos convoca para a maturidade. E conclui – Da próxima vez que você ler A cadeira de prata, pense nos sinais como as disciplinas espirituais que você está tentando manter na própria vida – orar, estudar a Palavra, cultuar a Deus, privilegiar seu Reino em detrimento dos cuidados desta vida. E exulte nas disciplinas, mesmo quando elas não aparentarem ter qualquer efeito imediato. Elas estão operando. Complete-as e confie em Deus, pois ele o abençoará. [p.91-115] 


CAPÍTULO 5 - PAIXÃO POR HISTÓRIAS 

As histórias de Nárnia são histórias, afinal de contas, e Douglas Wilson, afirma que “de todo o coração o incentivo a simplesmente desfrutar delas nesse nível, sem ficar obcecado em garantir que está aprendendo todas as lições que acha que foram feitas para aprender com elas.” Na concepção de Wilson, as histórias de Nárnia não só nos instruem sobre temas como autoridade, nobreza, confissão e assim por diante; elas também nos ensinam sobre como as próprias histórias funcionam e como devemos pensar sobre elas. Repetidas vezes, Lewis usa suas histórias a fim de nos ensinar que as histórias preparam as pessoas para viver bem em sua própria história — a história de sua vida. 

A importância da história – C. S. Lewis foi um dos grandes estudiosos do século 20 e, como tal, escreveu uma quantidade considerável de não ficção acadêmica. Contudo, uma das razões de ele ter sido esse grande estudioso é que entendeu as limitações do mundo acadêmico e os tipos de deficiências sob as quais os estudiosos frequentemente trabalham. Muitos tipos de verdade podem ser comunicados muito melhor por meio de histórias. 

História como preparação – Uma das lições mais importantes que Lewis ensina é que conhecer as histórias certas é uma boa preparação (O Príncipe Caspian, A viagem do Peregrino da Alvorada, A cadeira de parta). Estes exemplos, são bons exemplos de como os comentários marginais de Lewis realçam o fato de que nosso dia a dia é permeado por histórias, quer saibamos quer não. Muitas das nossas reações instintivas, atitudes, personalidade, decisões e as maneiras como estruturamos nossas experiências são influenciadas por aquilo com que gastamos o nosso tempo lendo (ou, no caso dos leitores modernos, também assistindo). E se você realmente quer adquirir nobreza ou aprender a verdadeira autoridade na vida real, as histórias são um dos meios primários de fazer isso. Elas fornecem a você exemplos do tipo de pessoa que você quer se tornar, e adquire essa estrutura mental. As histórias determinam como você pensa, para o bem ou para o mal. Wilson, afirma que “as histórias podem ensinar-lhe lições de diferentes épocas e culturas que você jamais poderia ter aprendido de outra forma. Existem muitas coisas que aprendi em Nárnia que eu não teria aprendido simplesmente por ter crescido nos Estados Unidos, mas, por tê-las aprendido lá, posso praticá-las aqui. 

Esta é uma das principais razões por que estimulo as crianças a ler as histórias de Nárnia repetidas vezes. Elas não são apenas divertidas de ler; há, também, muitíssimas coisas importantes a serem aprendidas nelas. Se não crescem lendo livros como esse, as crianças vão ler (ou, como é bem provável, assistir) outra coisa. Outra coisa preencherá a lacuna — e pode não ser o tipo correto de história, de modo algum.” 

Apaixonando-se por histórias verdadeiras – Histórias não são apenas meios para meter informação na cabeça das pessoas; são algo que podemos amar pelo valor intrínseco que possuem. Toda boa história que é contada aqui na terra possui uma espécie de realidade vaga, mas sempre se vale de uma verdade e realidade mais profundas. J. R. R. Tolkien certa vez foi perguntado se achava que O Senhor dos Anéis realmente aconteceu em algum lugar, em alguma época. Ele respondeu: "Espera-se". Lewis e Tolkien acreditavam que a arte de contar histórias era muito mais do que apenas inventar algo. Ela dizia respeito aos escritores humanos, como portadores da imagem de Deus, imitando a obra criativa dele. Embora não possam criar coisas físicas no mundo real, eles podem, contudo, criar mundos que ressoam a verdade da realidade de Deus. É por isso que Lewis disse que uma boa história de aventura é mais verdadeira que uma história insípida. Os eventos na história podem não ter acontecido, mas se assemelham mais fielmente com o tipo de mundo que Deus fez do que um recontar morto de eventos verdadeiros. E quando, por fim, entrarmos no céu, perceberemos plenamente como todas as melhores histórias estavam prefigurando a última e maior história de todas. 

Wilson termina este capítulo de modo surpreendente. “Pode ser que alguns de nós fiquem tentados a pensar que o mundo cristão precisa, ao contrário, de mais de livros de teologia; eu, no entanto, considero isso fundamentalmente contra o espírito da Bíblia. A Bíblia não é um livro cheio de teologia e doutrina. É um livro cheio de histórias, poesia, profecias e canções, junto com alguns livros doutrinários. É óbvio que não estou dizendo que teologia e doutrina são irrelevantes — são essenciais. Mas muito da palavra de Deus veio a nós na forma de história. Quer sejam as parábolas de Jesus ou as grandes histórias do Antigo Testamento, como Davi derrotando Golias, Josafá triunfando com o coral à frente do exército, as muralhas de Jericó ruindo, a fuga do Egito e a abertura do Mar Vermelho — todas elas nos levam a pensar na vida cristã e nosso relacionamento com Deus como uma história. Fomos feitos para viver como vivemos em uma das histórias de Deus. Portanto, aprenda com a história de Israel e com as parábolas de Jesus. Aprenda através das histórias de grandes escritores cristãos como C. S. Lewis. Leia-os, releia-os e depois leia-os novamente. Quando você se deixar tomar por essas histórias, não apenas as desfrutara você será moldado e ensinado de muitas formas inesperadas e proveitosas, muitas das vezes sem nem perceber. Esse é o poder da história. [p.117-136] 


CAPÍTULO 6 - GRAÇA PERFEITA 

Wilson começa fazendo uma bela afirmação: “Nárnia ensinou-me não apenas sobre Cristo (através da figura de Aslam) e a igreja (através da figura dos fiéis narnianos) em si e de si mesmos, mas também sobre a natureza do relacionamento entre Cristo e seu povo. O melhor e mais simples modo de descrever esse relacionamento é que ele é fundamentado na graça. Ora, a graça envolve muito mais do que ser meramente "gentil" ou "legal". Significa mostrar favor, doação e entrega. Por causa da natureza do relacionamento entre Criador e criatura, tudo o que temos, bem como a nossa própria existência, são completa e inteiramente dádivas — nada mais.” 

O Sacrifício de Aslam e o fundamento da graça (Doutrina da Expiação) – A história fundamental da graça nas histórias de Nárnia é, naturalmente, o sacrifício de Aslam por Edmundo em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Mas as duas outras com as quais eu mais aprendi são a de Eustáquio, em A viagem do Peregrino da Alvorada, e de Jill, em A cadeira de prata. Na medida em que consideramos a história de como Aslam redimiu Edmundo no primeiro livro de Nárnia que Lewis escreveu, precisamos lembrar que a morte de Aslam em favor de Edmundo não foi apenas um ato especifico que o salvou como indivíduo; foi um tipo ou figura do que Aslam estava fazendo por toda a Nárnia. O Rei Tirian, em A última batalha, descreve Aslam como "o bom leão, que dera o próprio sangue para salvar Nárnia inteira" (p. 649). Há outra referência a isso em A viagem do Peregrino da Alvorada, quando Edmundo está falando com Eustáquio sobre como ambos haviam sido transformados por seus encontros com Aslam, e Edmundo menciona: ele "salvou a mim e a Nárnia" (p. 452). Portanto, Lewis claramente deseja que vejamos Edmundo como o representante de todos os narnianos, de todos os que precisam ser salvos. 

Na própria história de O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, Lewis enfatiza o sacrifício de Aslam por Edmundo como um indivíduo a fim de ilustrar a doutrina cristã da expiação substitutiva. Embora essa mensagem seja central a toda a mensagem do evangelho, às vezes nos é difícil entendê-la como doutrina abstrata. No entanto, quando lemos como Edmundo trai seus irmãos, como é escravizado pela feiticeira, como Aslam intervém e morre em seu lugar, a natureza da mudança é clara. A feiticeira ia matar Edmundo, mas Aslam interferiu e ofereceu-se em lugar dele. Este é o fundamento da fé cristã: Cristo morreu como um substituto de todo o seu povo. 

Wilson escreve ainda - De todas as coisas que aprendi em Nárnia, se eu tivesse de escolher uma única lição que se destacasse como a mais importante, seria essa lição sobre a natureza da expiação substitutiva. Embora eu tenha crescido numa igreja cristã e ouvido quase todo domingo que Jesus morreu por nossos pecados, foi somente quando li a história de Aslam e Edmundo que a lição realmente estalou. Repentinamente eu entendi a cruz e o centro da mensagem do evangelho — de um modo novo e mais profundo. Por meio dessa história, Lewis consegue comunicar o que muitos teólogos lutam para fazê-lo: a morte substitutiva ou "vicária" de Cristo por seu povo. Este é o significado da fé cristã: Cristo morreu em seu lugar, salvando-o por pura graça, sem esforço algum de sua parte. Do mesmo modo, o sacrifício central de Aslam é o fundamento de toda graça que aparece alhures em Nárnia. E Lewis revela a verdadeira natureza da graça por Edmundo não ter feito absolutamente nada para merecer ou conquistar o que Aslam fez por ele. 

Três histórias de Conversão - Este capítulo fala de três histórias de "conversão" — de Edmundo, de Jill e de Eustáquio —, vemos a importância fundamental do sacrifício e morte de Aslam. Mas também vemos que, quando ele morreu, aqueles que o seguem "morreram" também. Isso é o que vemos especialmente no caso de Eustáquio. Isso revela um ponto muito importante que devemos observar sempre que estivermos falando sobre uma morte substitutiva — quer seja Aslam na Mesa de Pedra em Nárnia, ou Jesus Cristo na cruz em nosso mundo. Quando ele morreu, todos aqueles que foram representados por ele morreram também. E, naturalmente, quando ele voltou da morte, também voltamos. A outra lição fundamental nessas histórias de Nárnia é a "gratuidade" da graça. Nenhuma das três crianças podia fazer nada para salvar a si mesma. No fim, elas simplesmente tiveram de aceitar a soberana graça que lhes foi dada. Assim como Deus, Aslam faz isso tudo. A única coisa que podemos fazer é aceitá-la, e até mesmo a nossa capacidade e desejo de fazer isso nos foi dada por Deus. Graça é graça, do começo ao fim. 

Essas coisas são os fundamentos da fé cristã. Aprendê-las é aprender o evangelho, mas aprendê-las em Nárnia é uma forma maravilhosa de realmente compreendê-las em um nível que nenhum livro de teologia ou escola dominical podem conseguir. [p.137-152] 


CAPÍTULO 7 - AMOR POR ASLAM, AMOR POR DEUS 

Segundo Wilson, um dos aspectos mais notáveis nas histórias de Nárnia é sua natureza bastante pessoal. Em todos os livros, é a pessoa de Aslam quem une todas as coisas. A lealdade a Aslam e o amor por ele caracterizam todos os verdadeiros narnianos, ao passo que uma antipatia para com ele caracteriza aqueles que são maus. Aslam é sempre a linha divisória. Os bons e os maus em Nárnia não são determinados por uma lista de regras abstratas isoladas, mas, antes, por relacionamento. 

Relacionamento com Aslam – Existem muitas passagens que ilustram esse ponto, mas separei apenas algumas. Em A última batalha, como o Rei Tirian conhece Aslam, quando, por fim, passa pela porta do estábulo para adentrar a Nárnia final e verdadeira? - “O último a se virar foi Tirian, porque estava com medo. Ali estava o anseio de seu coração, enorme e real: o Leão dourado, o próprio Aslam.” (p. 716) - O mais profundo desejo de Tirian não é ser uma pessoa via de regra boa e decente, ou servir à fraternidade abstrata da humanidade. Aslam é o "anseio de seu coração"; toda a sua vida, e seu destino após ela, são orientados por esse relacionamento pessoal. Em O Príncipe Caspian, quando as quatro crianças se perdem no caminho para encontrar Aslam, como Lúcia sabe que percurso eles deviam seguir? "Bem... ele... pela cara dele!" (p. 351). Lúcia não consegue articular como sabe o que fazer, mas tem certeza disso por causa de seu relacionamento pessoal com Aslam. 

Conhecimento de Aslam – Se conhecer Aslam e estar num relacionamento adequado com ele é central, o que significa, então, conhecê-lo? Quem ele é? Que tipo de pessoa é Aslam? Wilson o identifica da seguinte forma: 

Triúno e encarnado - Shasta conversa pela primeira vez com Aslam após ter concluído a missão de alertar o Rei Luna, mas ficou perdido nas montanhas. Enquanto cavalga pelo nevoeiro e pela escuridão, sente uma presença poderosa perto dele, falando a seu lado. Como Aslam finalmente se revelou a Shasta, então? “ - Quem é você? - Eu mesmo — respondeu a voz. Com uma entonação tão profunda que a terra estremeceu. [E de novo: — Eu mesmo — em tom alto, claro e vivo. E então a terceira vez: — Eu mesmo]' — com um murmúrio tão suave que mal se podia perceber, e parecia, no entanto, que esse murmúrio agitava toda a folhagem à volta. (p. 262).  Esta é uma clara referência bíblica a Deus, que disse a Moisés: "EU SOU O QUE SOU" (Êxodo 3.14). O fato de Aslam repetir "Eu mesmo" três vezes de três maneiras diferentes é, também, uma referência á natureza triúna de Deus. A Escritura expressa um ponto similar com uma das palavras hebraicas para Deus, Elohim. Elohim é a forma plural da palavra "deus", da mesma forma que as palavras hebraicas cheruh e seraph são singulares, mas cherubim e seraphim são plurais. Assim, a confissão de fé em hebraico seria como dizer "Cremos em um Deuses". A peculiaridade gramatical expressa teologia trinitariana, e Lewis faz algo similar aqui com a repetição tríplice de "Eu mesmo". Aslam é uma Pessoa, mas também participa de uma união trinitária; ele é tanto belo como terrível; e o relacionamento fundamental com seu povo é o da graça vivificadora. Esses são os fatos básicos que Shasta aprende. 

Compaixão e ternura - O fato de nosso Deus ser um Deus surpreendente é uma das lições mais úteis que Lewis me ensinou através da personagem de Aslam. Alguns cristãos excessivamente "religiosos" de um modo detalhista e irredutível tem falsas pressuposições sobre Deus, e eu gosto da maneira como Aslam está constantemente subvertendo essas pressuposições de maneiras inesperadas. Um desses atributos surpreendentes de Aslam e a ternura e compaixão para com seus servos, não obstante seus muitos erros e falhas. Em O sobrinho do mago, quando Digory fica preocupado com a saúde de sua mãe, Aslam o conforta: — Meu filho, meu filho, eu sei. A dor e grande. Só você e eu nesta terra sabemos disso. Sejamos compassivos um com o outro. (p. 77) 

Adoração e imitação - A Bíblia nos diz que quando olhamos para Jesus, o adoramos e vivemos em relacionamento com ele, então nos tornamos cada vez mais como ele. O oposto também é verdade: aqueles que adoram ídolos tornam-se cada vez mais como eles (Salmo 115.8). Do mesmo modo, os servos de Aslam tornam-se mais como ele, enquanto a cultura calormana que adora Tash torna-se mais hostil e cruel, exatamente como seu deus. Um exemplo disso está em A viagem do Peregrino da Alvorada, quando Lúcia está na ilha da Vozes. 

Chegando a Cristo por meio de Aslam - Espero que você perceba, a esta altura, que Lewis intentou que o relacionamento com Aslam e o conhecimento dele fosse o centro das histórias de Nárnia. Mas é importante não perdermos o ponto principal, deixando Aslam confinado a Nárnia — pois Lewis quis que aprendêssemos sobre Aslam na medida em que ele se revela em nosso mundo: — Está também em nosso mundo? — perguntou Edmundo.  — Estou. Mas tenho outro nome. Têm de aprender a conhecer-me por esse nome. Foi por isso que os levei a Nárnia, para que, conhecendo-me um pouco, venham a conhecer-me melhor, (p. 514). 

Para concluir, Wilson diz que o objetivo de nos apresentar a Aslam é obtermos uma compreensão mais madura de Cristo. É por isso que Aslam não permanece em sua forma de leão no fim das histórias. Em A última batalha, depois de tudo o que é dito e realizado, ele revela sua verdadeira natureza: E, à medida que Ele falava, já não lhes parecia mais um leão. E as coisas que começaram a acontecer a partir daquele momento eram tão lindas e grandiosas que não consigo descrevê-las. Para nós, este é o fim de todas as histórias, e podemos dizer, com absoluta certeza, que todos viveram felizes para sempre. (p. 737) 

Então, Aslam, mais à frente, manifesta-se em seu caráter pleno como o Senhor Jesus. O simbolismo, obviamente, perde um pouco de sua validade aqui, e há algumas peculiaridades que poderiam precisar de desenvolvimento, uma vez que anteriormente Aslam descrevera-se como "um animal de verdade". A forma de leão não é uma simples aparência; ele não é apenas o Deus de Nárnia em um traje de leão, não mais do que Cristo é Deus em um traje humano — o Credo diz que Cristo é verdadeiro homem. Mas uma coisa de que podemos estar certos é que a verdadeira forma de Aslam não era uma espécie de ser espiritual ou fantasmagórico. Antes, o contexto inteiro dessa passagem nos convida a considerar essas realidades celestiais — incluindo o corpo ressurreto de Cristo — como mais sólidas e tangíveis do que a "vida real" que veio antes. Em outro dos livros de Lewis, O grande abismo, ele descreve o céu como um lugar de solidez e cores reais comparadas com o obscuro mundo fantasma abaixo. Nós, por vezes, pensamos que quando Jesus ressurgiu dos mortos, fê-lo como algum tipo de fantasma. Afinal de contas, ele não atravessou as paredes do cômodo onde os discípulos estavam reunidos? O problema é que nunca nos ocorre que a parede era o fantasma. Jesus pôde atravessar a parede porque ele é mais sólido e mais real do que ela. Sendo assim, quando Lewis descreve Aslam mudando de forma no fim de A última batalha, ele está nos estimulando não a considerar essa forma como um tipo de corpo Jesus--fantasma, mas, ao contrário, a realidade verdadeira, última, sólida e corpórea de Cristo. 

RECOMENDO