sábado, 4 de agosto de 2018

APOLOGÉTICA CRISTÃ [Resenha]


VAN TIL, Cornelius. Apologética Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 160p.


O legado de Cornelius Van Til (1895-1987) à apologética cristã merece o devido apreço, pois traz uma bem articulada defesa da fé cristã, com uma clara exposição da teologia reformada para desafiar as artimanhas e sutilezas da incredulidade. A originalidade e o pioneirismo de seu pensamento colaboraram para ratificar a condição da cosmovisão cristã como a única via válida para prover real e coerente significado à existência humana. A apologética vantiliana, pois, mantém a centralidade do pensamento em Deus e, ao mesmo tempo, evita a alienação e a fuga irracional. Com efeito, o diálogo com as cosmovisões não cristãs torna-se transitável, aceitável e, ainda, não prescinde de racionalidade e objetividade. No entanto, esse diálogo resguarda-se das sínteses de pressupostos. Uma das marcas distintivas da apologética vantiliana é a capacidade de debater francamente com o pensamento incrédulo sem imiscuir-se com seus pressupostos não cristãos.

“Cornelius Van Til (1895-1987) foi sem dúvida um dos apologistas mais originais do século 20. No tocante à disciplina, ele foi um reformador, passando boa parte de seu tempo em desafiar as escolas existentes e articular a abordagem apologética que se tornou conhecida como pressuposicionalismo. Apesar de suas raízes distantes estarem no axioma anselmiano, o “entendimento pela busca da fé”, no contexto mais contemporâneo, está na teologia holandesa e presbiteriana de seu horizonte imediato. Seus ossos foram preenchidos com a medula da visão reformada do mundo e da vida. Ele cresceu com ela e jamais a abandonou. Mas, como ele argumenta na cartilha Por que creio em Deus, embora seja perfeitamente verdade que ele foi alimentado por esse tipo particular de teísmo desde a juventude, na idade adulta ele lhe foi confirmado e reafirmado. Nesse mesmo livreto, um instrumento para evangelização digno de seu autor, Van Til sucintamente estabelece toda a sua filosofia em termos simples, mas profundos: “Hoje, de fato, estou convencido de que toda a história e a civilização seriam ininteligíveis para mim, não fosse pela minha crença em Deus. Isso é tão verdade, que me proponho a argumentar que se Deus não estiver na base de tudo, não se pode encontrar sentido em nada” [p.8-9].

Van Til desenvolveu sua Apologética Cristã para ser o texto básico para o curso de introdução à apologética. Não obstante a isso, o texto apresenta elementos centrais de seu projeto apologético. O livro foi organizado por William Edgar e, nesse afã, a sua introdução contém uma exposição sucinta, porém clara e pontual, da apologética pressuposicionalista[1] vantiliana. Edgar sugere a contribuição de Van Til quanto à possibilidade de um diálogo apologético com o incrédulo considerando a antítese entre a cosmovisão cristã e as demais visões de mundo. Para esse diálogo, o ponto imediato de contato é o conhecimento de Deus impingido nos seres humanos criados à sua semelhança e anunciado na revelação da criação. De fato, a apologética vantiliana não é um sistema fideísta, irracional e destituído de evidências, porém, preconiza que há uma intrínseca ligação entre evidências e pressupostos; ou seja, os fatos ocorrem dentro de uma “estrutura maior”. A apologética pressuposicionalista, pois, “exige que se reconheça que todas as ideias e argumentos partem de um arranjo básico, uma estrutura em que na queda eles fazem sentido”. A fé cristã é demonstrável e racional, é uma verdade objetivamente válida. Entrementes, Van Til reconhece que a apologética por si só não pode levar o homem a deixar a incredulidade e abraçar a fé cristã, pois isto pertence exclusivamente a Deus e está condicionado à aceitação da verdade revelada em Jesus Cristo, segundo a ação do Espírito Santo. Nesta Apologética Cristã temos a obra de um grande visionário. Nele, o autor apresentou um ousado estudo sobre a graça e a verdade de Deus em sua geração. Que possamos fazer o mesmo na nossa.

O texto está dividido em cinco capítulos, que discutem o sistema da verdade cristã, a filosofia cristã de vida, o ponto de contato entre cristãos e incrédulos, o problema envolvendo o método apologético e, por fim, os conceitos de autoridade e razão na perspectiva bíblica.


CAPÍTULO 1 – O SISTEMA DA VERDADE CRISTÃ. No primeiro capítulo, Van Til apresenta a cosmovisão cristã que emana do cristianismo bíblico, tendo como ponto de partida a teologia verdadeiramente reformada. Neste capítulo encontramos um ensaio sobre as doutrinas reformadas básicas, uma leitura mais aos moldes de uma introdução à dogmática do que uma base para a epistemologia. Mas essa é a intenção! A abordagem de Van Til do conhecimento não começa com noções filosóficas abstratas, mas com a teologia sistemática, destinada a ser um sumário das doutrinas bíblicas sobre Deus, a humanidade, a criação, a queda e a redenção em Cristo. Ele muitas vezes se confessa um grande devedor de Geerhardus Vos, o professor de teologia bíblica de Princeton. O autor entende que aspectos históricos (evidências e fatos) e filosóficos (conceituação e teorias) perfazem a defesa do cristianismo.

“Na apologética atiramos com as ramas maiores, sob a proteção das quais os avanços definidos no campo histórico devem ser feitos. Em suma, existe um aspecto histórico e um filosófico na defesa do teísmo cristão. As evidências lidam, principalmente, com o aspecto histórico, enquanto a apologética lida, primariamente, com o aspecto filosófico. Cada uma tem seu trabalho, mas elas deveriam estar constantemente em contato uma com a outra” [p.20].

A apologética, por sua vez, lida mais com o aspecto filosófico, com o teísmo, mas não ignora as evidências factuais, o cristianismo. Por conseguinte, ele explora a relação entre a apologética e as demais disciplinas teológicas. Para Van Til, a apologética sempre está presente para defender, resguardar e vindicar o sistema da verdade do cristianismo bíblico. Nesse ponto, Van Til analisa a afinidade da apologética com os principais conceitos da fé reformada, sobretudo, da teologia sistemática (teontologia, antropologia, cristologia, soteriologia, eclesiologia e escatologia), pois é a disciplina que mais interage com a apologética. 

“Depois, temos a Teologia Sistemática, que toma todas as verdades trazidas à luz das Escrituras, pelos estudos bíblicos, e as transforma em um todo orgânico. [...] Fica claro através de nossa discussão até agora que a Teologia Sistemática tem uma relação mais próxima com a Apologética do que com qualquer outra disciplina. Nela encontramos o sistema de verdade que devemos defender. Sendo assim, devemos olhar brevemente para esse sistema que nos é oferecido. A teologia Sistemática divide seu conteúdo nas seis divisões seguintes: Teontologia, Antropologia, Cristologia, Soteriologia, Eclesiologia e Escatologia” [p.21-23]

Ao discorrer sobre as doutrinas elementares da teologia cristã reformada, Van Til expõe as ofensivas e os equívocos de teologias rivais e teorias não cristãs, e, ainda, destaca a função da apologética na defesa e afirmação da verdade revelada. Em epítome, observa-se que a cosmovisão cristã reformada é cabalmente distinta das demais, visto que é a única capaz de alcançar pleno significado para a vida.


CAPÍTULO 2 – A FILOSOFIA CRISTÃ DE VIDA. O capítulo seguinte indaga sobre uma aproximação entre a cosmovisão cristã reformada, a filosofia e a ciência. Van Til assevera que uma teologia verdadeiramente cristã vem acompanhada de uma “filosofia cristã”, ainda que em um esboço genérico. Ambas têm como preocupação apresentar uma visão da vida e do mundo como um todo. Por semelhante modo, ciência e teologia estão associadas, porque sem as bases das pressuposições cristãs a ciência se torna ininteligível. Sendo assim, tanto a ciência como a filosofia dependem de pré-requisitos fornecidos pelo cristianismo para a correta interpretação do mundo e dos fatos da existência. 

“Isso não significa que a filosofia e ciência devam ser exclusivamente dependentes da teologia para seus princípios básicos. Significa apenas que a filosofia e ciência devem, assim como a teologia, voltar-se para as Escrituras em busca de qualquer luz que esta possa oferecer em seus princípios gerais e fatos particulares. Para fazê-lo, elas devem pedir o auxílio da teologia. É papel da teologia engajar-se na exegese detalhada das Escrituras. O filósofo, naturalmente, fará uso dos frutos dessa exegese. É papel da teologia apresentar a verdade da Escritura de forma sistemática. O filósofo e o cientista, naturalmente, também farão uso do fruto desse esforço. Ainda assim o filósofo cristão e o cientista cristão estarão, em primeiro lugar, diretamente dependentes da própria Escritura” [p.51]. 

Para Van Til, a apologética cristã não pode ser indiferente para com a filosofia e a ciência; antes, seu dever é proporcionar auxílio. O restante do capítulo elenca os princípios gerais que devem estar presentes na filosofia e na ciência verdadeiramente cristãs, começando com o conceito bíblico do “pacto”.

“Fundamentalmente a toda atividade de filosofia e ciência é a ideia do pacto.[2] A ideia do pacto é comumente mencionada em relação à teologia somente. Nesse contexto, ela expressa a ideia de que em todas as coisas o homem encontra-se face a face com Deus. Deus é apresentado como o criador do homem e do mundo, que controla e direciona o destino de todas as coisas. Mas isso é equivalente ao aplicar a ideia de aliança aos campos filosóficos e científicos, assim como ao da teologia. É difícil pensar como a ideia de aliança pode ser mantida na teologia a menos que seja mantida na filosofia e ciência. Ver a face de Deus em todo lugar e fazer todas as coisas – seja comer ou beber ou qualquer outra coisa – para a glória de Deus, é o ponto central da ideia de aliança. E esta ideia é abrangente” [p.52].


CAPÍTULO 3 – O PONTO DE CONTATO. O terceiro capítulo é uma exposição de como se dá a ponte para o diálogo entre cristãos e incrédulos. Uma vez definida a cosmovisão cristã como a única interpretação verdadeira da realidade criada, Van Til pondera sobre como fazer para defender essa cosmovisão diante dos incrédulos. Para tanto, perscruta e analisa o “ponto de contato” adotado por outras teologias e conclui com a posição cristã reformada. 

As outras teologias analisadas por Van til, trata-se daquilo que ele propriamente rejeitou. Van Til rejeitou o Catolicismo Romano, o Protestantismo liberal, e qualquer ramo do Cristianismo que assume que o conhecimento e a razão humana são independentes da autoridade revelada de Deus. 

Sobre o Catolicismo Romano ele escreve: “É com o Romanismo que estamos primeiramente preocupados. Por conseguinte, o Romanismo deveria ser considerado como uma deformação do Cristianismo, na verdade, como a sua mais baixa deformação. Essa deformação expressa-se não apenas em alguns mas em todos os pontos de doutrina. As diferenças entre o Protestantismo e o Romanismo não são adequadamente indicadas se dizemos que Lutero restaurou à Igreja as verdadeiras doutrinas bíblicas da justificação pela fé e do sacerdócio de todos os crentes. A diferença é que o Protestantismo é mais e o Romanismo menos consistentemente cristão em todos os pontos de doutrina. Não poderia ser de outra forma. Ter inconsistência em um ponto de doutrina é ter necessariamente inconsistência em todos os pontos de doutrina. Roma tem sido consistentemente inconsistente na confusão de elementos de ensino não cristãos com cristãos, em toda a gama de expressão doutrinária” [p.71-72] 

Com respeito ao Protestantismo Liberal ele, escreve: “Contudo, nem todo o Protestantismo tem sido inteiramente fiel ao princípio protestante. Foi apenas no Calvinismo que o princípio protestante de que a salvação depende exclusivamente de Deus chegou a sua expressão consistente. Os protestantes não calvinistas, frequentemente chamados de “Evangélicos”, conceberam “as operações salvíficas de Deus de forma universalista” a fim de deixar espaço para uma decisão final por parte do ser humano individual. Portanto, o Calvinismo é a única forma de Protestantismo “não influenciada por elementos intrusos externos”. A ação de Deus é a fonte última de todo ser específico” [p.78].

O autor recorre à afirmação bíblica acerca do conhecimento de Deus disponibilizado na criação e também implantado no homem natural. Esse “senso da divindade” é indelével, visto que o homem foi criado à imagem de Deus e, por isso, é postulado como o ponto de contato por excelência. Esse ponto de contato é o único que “escapa ao dilema da ignorância absoluta ou onisciência absoluta”. A mente do homem não é autossuficiente nem totalmente incapaz de conhecer; ao contrário, a sua mente é derivativa e, assim, é permeada pela revelação de Deus. Para Van Til, a mente humana é “inerentemente revelacional”. Tendo o conhecimento de Deus como ponto de contato, a apologética reformada visa alcançar e desafiar os pressupostos básicos do incrédulo, especialmente a sua visão de si mesmo como ponto de referência último.

Concluindo este capítulo, a ênfase na posição reformada contrariando o catolicismo romano e a visão romana. Está evidente agora que o único conceito de ponto de contato capaz de escapar ao dilema da ignorância absoluta é o conceito totalmente bíblico. O grande defeito da visão católico-romana e da visão arminiana é, como já observado, que elas atribuem à mente humana autossuficiência ou a supremacia. O romanismo e o arminianismo fazem isso em suas visões do homem, tal como expresso em suas obras em teologia sistemática. É, portanto, consistente para eles não desafiar as pressuposições de supremacia feitas pelos incrédulos. Mas a Teologia reforma, conforme trabalhada por Calvino e alguns de seus intérpretes recentes, tais como Hodge, Warfield, Kuyper e Bavinck, sustenta que a mente do homem é derivativa e, dessa forme, encontra-se, naturalmente, em contato com a revelação de Deus. Ela não está cercada por nada exceto a revelação. Ela é inerentemente revelacional. Não pode ser naturalmente cônscia de si mesma, sem que seja cônscia de sua condição de criatura. Para o homem, a autoconsciência pressupõe a consciência de Deus. Calvino trata disso como o senso da divindade inescapável ao homem.


CAPÍTULO 4 – O PROBLEMA DO MÉTODO. No capítulo quatro, Van Til descreve a sua abordagem apologética, por conseguinte, a maneira para conduzir o homem ao conhecimento da verdade. 

“Nossa preocupação neste capítulo será indicar a natureza de uma apologética reformada. Um método reformado de apologética deve buscar defender a cosmovisão reformada como o cristianismo realmente é. Já foi claramente exposto que isso implica uma recusa na aceitação de que qualquer fato ou lei da natureza ou da história, possa ser corretamente interpretado, exceto se for visto à luz das principais doutrinas do cristianismo” [p.95].

Portanto, para o autor, não há como o apologeta reformado assentir com os princípios de metodologia do incrédulo, pois o método cristão-reformado defende a cosmovisão proveniente do cristianismo como realmente é. 

Assim, a questão da metodologia não é um assunto neutro. O método empregado no cristianismo reformado é o de argumentação por pressuposição, ou seja, argumentação tem como pressuposição a verdade de que todos os fatos da existência criada estão sob, são regulados e dirigidos pelo conselho soberano de Deus. Com efeito, o ponto de contato entre cristãos e incrédulos, no que tange ao método para adquirir conhecimento, tem “a natureza de uma colisão frontal”. 

“O apologeta reformado admitirá abertamente que sua própria metodologia tem como pressuposição a verdade do teísmo cristão. Fundamental a todas as doutrinas do teísmo cristão está a ideia do Deus absoluto, ou, se preferirmos, a ideia da trindade ontológica. É esta noção da trindade ontológica que, em última instância, controla uma metodologia verdadeiramente cristã. Baseado nessa noção da trindade ontológica, e consistente com ela, está o conceito do conselho de Deus por meio do qual todas as coisas no mundo criado são reguladas” [p.98-99].

O apologeta calvinista reconhece a sua condição como criatura de Deus e que o único método para a aquisição real do conhecimento é o que busca “pensar os pensamentos de Deus após ele”. Van Til, pois, destaca que esse método é o “indireto de raciocínio por pressuposição”, uma vez que discorda do homem natural e não recorre a uma discussão direta de “fatos” e “leis”. No método indireto, quaisquer “fatos” ou “leis” são pré-interpretados e, consequentemente, jamais são admitidos como “supostamente neutros”.


CAPÍTULO 5 – AUTORIDADE E RAZÃO. O capítulo final é sobre autoridade e razão, especialmente o debate com o incrédulo a respeito do conceito de autoridade. Para Roma a autoridade da igreja, e em particular a autoridade do papa quando este fala ex-cathedra, é final; para o protestantismo a Escritura está acima de qualquer afirmação da igreja e de seus mestres. Primeiramente, Van Til define como o homem natural compreende e posiciona a autoridade. Para o homem natural, é o especialista, no uso da razão, que impõe os limites do que é reconhecido como autoridade. 

Noção de autoridade católica - “A noção de autoridade católico-romana possa parecer, à primeira vista, bem absoluta – até mesmo mais absoluta do que a do protestantismo – ela não é, de fato, em nada absoluta. Sua ideia de autonomia acaba vencendo em todo os casos. E como resultado, as doutrinas de fé católico-romanas são, em cada caso, ajustadas à ideia da autonomia humana. Certamente ela concebe que o homem natural é caído, contudo, ele é caído apenas por um pouco; mesmo em seu estado de retidão ele insistia corretamente na autonomia. Consistiria o estado caído do homem de sua autonomia de forma insensata? Decerto o homem cristão é curado pela graça; mas mesmo curado ele ainda é aconselhado a, de certa forma, exercitar sua vontade autônoma em contraposição ao plano de Deus. O conceito de obediência pactual não se encaixa na teologia ou filosofia católico-romana. Nossa conclusão, portanto, deve ser a de que Roma não oferece nada, em termos de autoridade, que seja claramente diferente da ideia do especialista, da forma como está é aceita, de boa vontade, pelo homem natural” [134-135].

Noção de autoridade arminiana – “pode soar para muitos como uma ideia muito estranha afirmar que a teologia arminiana é similar à do romanismo no que diz respeito à questão da autoridade. Entretanto, isso é realmente o caso. É claro que é verdade que os evangélicos arminianos rejeitam o ritualismo e a hierarquia de Roma. É também verdadeiro que os indivíduos arminianos são bem mais virtuosos em sua atitude prática em relação à Escritura do que seu sistema de teologia permite. É apenas acerca desse sistema de teologia que estamos falando. E acerca dele – e não há como escapar – deve-se afirmar que sua concepção de razão é semelhante à de Roma e, portanto, seu conteúdo de autoridade não pode ser diferente. Não existe nada mais insistente na teologia arminiana do que a afirmação de que a doutrina reformada da eleição é injusta para com a responsabilidade do homem. Entretanto, a doutrina reformada da eleição nada mais é do que a expressão consistente, no campo do relacionamento do homem com Deus, do ensino geral das Escrituras de que todas as coisas na história acontecem através do plano de Deus” [136].

Em seguida, o autor discorre sobre o princípio de autoridade conforme as Escrituras, o qual pressupõe que, “em tudo o que faz, o homem encontra-se face a face com as condições de Deus”; assim, é a ideia do plano abrangente de Deus que sustenta o conceito cristão de autoridade. 

Para Van Til, a Escritura afirma a sua autoridade absoluta como a única luz para interpretar os fatos da realidade e fornecer a sua real relação com a totalidade da existência. Por conseguinte, não se pode sujeitar a autoridade da Escritura à razão. Em contrapartida, é a própria razão que deve achar a sua função à luz das Escrituras. Afinal, conforme a teologia reformada, o homem não é um ser autônomo e sua razão, a despeito de ser naturalmente limitada, sofreu os efeitos noéticos da queda, condição que obriga o ser humano a sujeitar-se às Escrituras, à revelação sobrenatural de Deus.


POR QUE LER UM LIVRO DE APOLOGÉTICA VANTILIANA? Além das muitas contribuições no campo da abordagem apologética reformada, destacamos algumas que se dirigem ao contexto teológico brasileiro. 

PRIMEIRAMENTE, o texto faz uso da teologia para preconizar a apologética. Van Til é, de fato, um teólogo reformado comprometido com a centralidade e a autoridade das Escrituras reveladas. Na atualidade, notamos que não há uma preocupação deliberada com a correta teologia na concepção de um modo de vida cristão. No texto de Van Til, no entanto, a teologia assume uma função determinante na formação da verdadeira cosmovisão cristã, de modo que a Escritura é a autoridade final para gerir todas as dimensões da vida. Uma teologia incorreta e inconsistente compromete todo o sistema cristão, o que facilmente é verificado na teologia católico-romana e na arminiana. Enfim, diante do recente avanço de teologias distorcidas, relativistas e antropocêntricas, uma apologética centrada em Deus e dotada de correta teologia é um instrumento muito útil para desafiar a mentira e vindicar a verdade revelada nas Escrituras.

Em SEGUNDO LUGAR, observamos que o academicismo brasileiro tem preterido a fé em favor de uma interpretação da realidade pautada em um modelo científico que pressupõe autonomia da razão e neutralidade e, por conseguinte, é de orientação religiosa apóstata. É sintomática a insistência de que a fé cristã deve ser incorporada à mera manifestação cultural, ou na melhor das hipóteses, ao fenômeno religioso circunscrito à ciência da religião. A verdade das Escrituras, bem como a cosmovisão cristã reformada necessitam reencontrar o seu “status” na atividade acadêmica. É impossível achar significado para a realidade sem total submissão à Escritura. Entrementes, fazer menção à Palavra de Deus para compor um pensamento não é o mesmo que “tomá-la como a única base” do pensamento. A apologética vantiliana é um convite à reintegração da cosmovisão cristã de modo que a Escritura torna-se a única via para o conhecimento pleno da realidade. Tal apologética estimula o cristão a conhecer, argumentar e contrapor-se às bases que constroem o pensamento incrédulo do homem natural e, a partir da impossibilidade de achar sentido real à vida, anunciar a verdade da revelação das Escrituras.

Portanto, o livro Apologética Cristã é recomendado para aqueles que estão sinceramente interessados não apenas na defesa da fé – ainda que se necessária –, mas também em uma exposição persuasiva da verdade do evangelho. Ainda, é dirigido a cristãos intrépidos que não pretendem se calar diante das imposições do cientificismo moderno e da incredulidade. Ao mesmo tempo, é um livro orientado para aqueles que procuram um diálogo inteligível e franco com o descrente a partir de uma abordagem que não se limita à mera discussão de “fatos” ou “leis” – aliás, que desconsidera a existência de fatos brutos – e, assim, está confinada à exploração racional de argumentos. O livro de Van Til, enfim, é para os que buscam um exame crítico do pensamento, dirigido às pré-condições do homem natural. A abordagem apologética vantiliana é adequada para alcançar e desvendar os compromissos fundamentais responsáveis pela formação da cosmovisão não cristã e mostrar que, sendo o homem dependente de Deus, à parte do evangelho não há coerência para os fatos da existência humana.

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[1] O pressuposicionalismo enfatiza que porque Deus é Senhor e Criador do Mundo, a humanidade não está livre para raciocinar longe de Deus, e que não existe território neutro para raciocinar com um incrédulo. Todo conhecimento depende da revelação de Deus, e assim, à medida que nos envolvemos com incrédulos, nós devemos pressupor o Triúno Deus redentor Bíblia, mais do que simplesmente levar o incrédulo a supor que ele é livre para acreditar ou desacreditar. O pressuposicionalismo também argumenta transcendentalmente- i.e, que o Cristianismo é verdade por causa da impossibilidade do contrário. Finalmente, o apologista pressuposicionalista procura ser consistente com a antropologia bíblica e reconhece que apenas a regeneração do Espírito por meio da pregação do Evangelho pode mudar o coração de um incrédulo.

[2] O pacto é um acordo estabelecido por Deus com seu povo no qual ele promete graça a eles, e espera a fé e a obediência em retorno. Van Til usa essa ideia aqui em um sentido mais amplo, como o relacionamento soberano de Deus com a humanidade através do qual alguns são fiéis (os cumpridores do pacto) e alguns infiéis (os quebradores do pacto). Na cosmovisão cristã, o pacto se torna a estrutura central do relacionamento de deus, o revelador, à humanidade, receptora da revelação.

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