LUTERO,
Martinho. Nascido Escravo. São José dos Campos: Fiel, 2007. 101p.
Esta
obra é uma versão condensada do livro "A Escravidão da vontade",
escrito por Martinho Lutero e publicado pela primeira vez em 1525.
Erasmo
de Roterdã, o mais influente humanista, escreveu um pequeno livro, em 1524, com
o título De libero arbitrio Diatribe sive collatio. É uma obra de
Antropologia da perspectiva humanista carregada de premissas sinergistas da
teologia Católica Romana, da qual Erasmo apesar das muitas críticas nunca se
separou.
A obra é escrita num estilo de diatribe. Este é um recurso literário usado
desde a antiga filosofia grega, se caracteriza por ser um discurso ou
conversação filosófica, onde duas ou mais pessoas debatem por meio de perguntas
e respostas, argumentos, discordâncias e análise de implicações as teses do
locutor. A Diatribe ainda traz algumas comparações das opiniões
de Pais da Igreja como Orígenes, Ambrôsio e Jerônimo.
Neste livro o humanista holandês argumentou a favor de uma perspectiva
sinergista ou, libertariana de livre-arbítrio. Ele o define como sendo "a
potência, através da qual o ser humano se pode inclinar ou afastar ao/do que
leva à salvação eterna." Desta forma ele apresenta a sua principal discordância
e afastamento de Lutero e demais reformadores.
Portanto,
a questão central gira em torno da existência ou não do livre-arbítrio, ou
seja, poderia o ser humano voltar-se para Cristo de forma voluntária e, sem
qualquer ajuda, ser salvo de seus pecados? Martinho Lutero (1483-1546, monge
agostiniano, pastor, teólogo, estudioso fluente em grego e hebraico, ele
compreendia que quaisquer crenças e experiências precisavam ser testadas à luz
das escrituras). Erasmo defendia a ideia do livre-arbítrio, ao passo de que
Lutero refutava de forma vigorosa os argumentos lançados por ele.
A obra é
constituída de 4 capítulos divididas em argumentos, e são assim discriminados:
Capítulo 1 – O que ensinam as Escrituras
“Em Romanos 1.18, Paulo ensina que
todos os homens, sem qualquer exceção, merecem ser castigados por Deus. “A ira
de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm
a verdade pela injustiça”. Se todos os homens possuem “livre-arbítrio”, ao
mesmo tempo em que todos, sem qualquer exceção, estão debaixo da ira de Deus,
segue-se daí que o “livre-arbítrio” os está conduzindo a uma única direção — da
“impiedade e da iniquidade”. Portanto, em que o poder do “livre-arbítrio” os
está ajudando a fazer o que é certo? Se existe realmente o “livre-arbítrio”,
ele não parece ser capaz de ajudar os homens a atingirem a salvação, porquanto
os deixa sob a ira de Deus.” [p.19].
Este
capítulo contém 19 argumentos fundamentados nas Escrituras, que na visão de
Lutero, podem ser utilizados para discussões sobre a questão do livre-arbítrio.
Vários pontos são abordados, como a culpa universal da humanidade, a salvação
ocorre pela graça de Cristo e exclusivamente mediante a fé, o homem é incapaz
de crer no evangelho e por isso todos os seus esforços não podem salvá-lo,
dentre outros, mas tudo culminando na máxima de que o homem possui uma natureza
carnal e que as melhores obras da carne são hostis a Deus, ou seja, sendo o
livre-arbítrio uma obra carnal, não pode levar o homem a justificação perante
Deus.
Capítulo 2 – O que Erasmo ensinava
“Para ser justo, terei de citar a sua
própria definição de “livre arbítrio”. Você diz: “Compreendo o “livre-arbítrio”
como o poder da vontade humana mediante o qual uma pessoa pode aplicar ou
afastar-se das coisas que conduzem à eterna salvação”. Você pode realmente
chamar isso de definição? Uma definição precisa ser clara, e cada aspecto dessa
declaração precisa ser explicado para tornar-se claro. Além disso, você começa
definindo uma coisa, mas termina definindo algo inteiramente diferente. Quero
dizer que somente Deus tem a liberdade de vontade que você descreve e ainda
supõe que pertence aos homens. Entretanto, o homem é como um escravo, cuja única
liberdade consiste em obedecer a seu senhor. Os seres humanos só agem de acordo
com as determinações de Deus. Será isso “liberdade de arbítrio” como você a descreve?
[p.45]
Lutero elabora
16 argumentos e parte para o embate contra seu oponente, expondo as ideias de
Erasmo, mostrando as incoerências e contradições de suas conclusões, as falhas
de sustentação e interpretação bíblica, bem como refutando cada uma delas com
referências e comentários sobre a interpretação mais correta do texto sagrado.
Capítulo 3 – O que Lutero pensava sobre o
ensino de Erasmo
“Você procura infundir medo em seus
oponentes, reunindo um grande número de textos bíblicos que supostamente dão
apoio à ideia do “livre-arbítrio”. Em seguida, procura fazer-nos parecer tolos
ao sugerir que só dispomos de dois textos bíblicos para nos apoiarmos: Êxodo
9.12 e Malaquias l.2,3. Você não parece ter ficado, de modo algum,
impressionado pelo manuseio desses textos por Paulo, em Romanos 9! Entretanto,
tomarei esses dois textos para mostrar o fortíssimo apoio bíblico de que
dispomos.” [p.69]
Lutero vê na
concepção de Erasmo uma reversão ao ponto de vista de Pelágio, embora com menor
sofisticação. Ele condena o entendimento de Erasmo sobre as discussões
filosóficas anteriores sobre essa questão. Ele, então, discute as três visões
distintas de Erasmo do livre-arbítrio: "De uma visão sobre o
'livre-arbítrio' você desenvolve três! A primeira, aquela dos que negam que o
homem pode desejar o bem sem a graça especial, não começa, não progride e não
termina, etc. parece a você 'severa mas suficientemente provável'... A segunda,
aquela dos que afirmam que o 'livre-arbítrio' não é útil para nada exceto o
pecado, e que só a graça trabalha o bem em nós, etc, parece a você 'mais
severa'; e a terceira, a visão daqueles que dizem que o 'livre-arbítrio' é um
termo vazio e que Deus trabalha em nós tanto o bem quanto o mal, e que tudo o
que acontece, acontece por mera necessidade, parece a você 'a mais severa'. É
contra essas duas últimas que você declara estar escrevendo".
Capítulo 4 – Comentário de Lutero sobre o estudo
de Erasmo acerca de textos que negam o Livre Arbítrio.
O
reformador escreve 8 argumentos e realiza toda a sua defesa de forma ávida e vigorosa,
muitas vezes sendo até áspero em suas palavras para com Erasmo, mas em sua conclusão
ele expressa o seu verdadeiro anseio: "nesta controvérsia, não quero gerar
mais calor do que luz". Ao final, critica ainda o posicionamento de Erasmo
com relação aos textos bíblicos que negam a existência do livre-arbítrio.
Lutero de
forma irrefutável escreveu seu “Servum Arbitrum”. O arbítrio do homem não está
livre, mas é um escravo do pecado. O livro tinha um tamanho quatro vezes maior
que o livro de Erasmo. Isso quer dizer que Lutero deu uma resposta ampla ao seu
colega monge Erasmo. Lutero se importava com o livre arbítrio, porque ligada a
isso está a honra de Deus. A questão do livre arbítrio tem tudo a ver com a com
o arbítrio de Deus. A questão é: acontece o que Deus quer ou o que o homem
quer? Se acontecer o que o homem quer, não acontecerá o que Deus quer. Então, o
homem domina as coisas e Deus não é mais o Todo-poderoso. Deus depende do homem
e a Sabedoria e Poder dEle não são mais decisivos. O que está em jogo é a honra
e a majestade de Deus!
Através de uma leitura acurada podemos
observar os seguintes:
a) O
homem não pode nada por si mesmo. Em verdade, até para que o Evangelho faça
efeito em sua vida e ele seja justificado, o homem depende do toque do Espírito
Santo. Ninguém consegue voltar-se para Cristo e ter a consciência de seu pecado
sem que isso lhe seja revelado através do Evangelho. A visão que a Boa Nova dá
ao ser humano é muito mais abrangente e profunda – a qual não pode ser
alcançada através da simples consciência humana. Isso ficou bem expressado
quando Lutero diz que "as nossas fraquezas pertencem a nós mesmos e nossa
capacidade nos é dada através da graça de Deus" [p.61]
b) O
senso de dever não é evidência da capacidade de cumpri-lo, com isso o Lutero
mantém sua posição de que a lei revela o pecado (sem lei não há pecado), mas o
fato de o homem receber a lei não significa que ele tem a capacidade de cumpri-la.
Desta maneira, a lei não nos foi dada como um manual que nos mostra como
podemos fazer as coisas da maneira correta, mas sim para nos mostrar no que
consiste o pecado e quais são as suas consequências;
c) Todos
pecamos e merecemos a condenação, com base nas palavras de Paulo em Romanos
"todos pecaram e destituídos estão da graça de Deus". Lutero trabalha
muito a questão da "graça divina".
d) Deus
é bom, justo e soberano. Ele não pode fazer o mal – isso seria negar a sua
própria natureza.
No que
diz respeito a vontade revelada e a vontade secreta de Deus [p.56-60], acredito
que o esclarecimento de Lutero sobre este assunto não deixa mais margem para
questionamentos filosóficos sem base bíblica. O reformador diz que "de
acordo com a sua vontade secreta planejou aqueles que receberiam sua
misericórdia"[p.56]. Concordo com seu ponto de vista, pois afirma que não
cabe a nós questionar a vontade secreta de Deus, pelo contrário, devemos
adorá-lo reverentemente e nos interessar por aquilo que Ele nos tem revelado.
Outro
ponto diz respeito a uma linha de pensamento que é muito utilizada hoje nas
igrejas é a de se "fazer algo bom somente para que você tenha mais uma
esmeralda na sua coroa de glória". A linha de pensamento de Lutero, de que
"um cristão não faz algo para obter vantagens, mas o faz porque é correto
perante o Senhor" pode ser bem utilizada para corrigir este pensamento que
hoje assola boa parte das igrejas.
Também
deixamos de lado muitas vezes o princípio básico da graça divina constantemente
presente em nossa vida: todos pecamos e merecemos a condenação! Isso é algo
para ser relembrado a cada momento e foi bem expressado por Lutero: "se a minha
salvação fosse deixada ao meu encargo [...] eu jamais poderia ter certeza do
sucesso [...] por meio do livre-arbítrio, ninguém poderá ser salvo. Mas por
meio da livre graça muitos serão salvos". [p.39]
Algumas passagens importantes do livro:
1) "Tudo
o que não provém do Espírito é carnal; e as melhores atividades da carne são
hostis à Deus [...] isto está em harmonia com Romanos 1.17 que diz 'o justo
viverá pela fé', e Romanos 14.23 que diz 'tudo o que não provém da fé é
pecado'. Ou seja, aqueles que não têm fé não estão justificados; e aqueles que
não estão justificados são pecadores, nos quais o suposto livre-arbítrio só
pode produzir o mal. Portanto, o livre arbítrio nada é senão um escravo do
pecado, da morte e de Satanás. Tal liberdade, enfim não é liberdade
alguma!" [p.32]. O interessante neste trecho da defesa, ou melhor ainda,
do ataque, é como o monge agostiniano consegue fazer a ligação entre as coisas
carnais (tudo que não provém do Espírito) e a submissão do livre-arbítrio ao
pecado, a morte e a Satanás.
2) "[...]
a vontade humana por si mesma, é incapaz de fazer qualquer coisa para vir a
Cristo em busca de salvação. A própria mensagem do evangelho é ouvida em vão, a
menos que o próprio Pai fale ao coração e traga a pessoa a Cristo" [p.38].
Esta colocação de Lutero com certeza consola nosso coração, já que não somos
nós que convencemos, em consonância com Paulo, ele afirma que é o Espírito que
faz isso
3) "Você
criou uma nova maneira de perder de vista o significado óbvio de um texto. Você
insiste que os textos que se manifestam claramente contrários à ideia do livre arbítrio
devem ter alguma 'explicação' que traga à tona seu verdadeiro sentido." [p.69].
Existem muitos "profetas" atuais que deturpam o significado óbvio dos
textos bíblicos e distribuem "profetadas" por onde passam. Sempre que
algum trecho da Escritura contraria as suas ideias eles os ignoram ou tentam
encontrar algum tipo de explicação absurda para encaixá-los em suas ideias
hereges. Esta refutação de Lutero pode ser usada hoje para combater muitas ideias
teologicamente incorretas que foram inseridas no meio cristão.
4) "Algumas
pessoas talvez queiram saber como Deus produz em nós maus efeitos,
endurecendo-nos, entregando-os aos nossos desejos [...] Deus trata com os
homens em consonância com a natureza deles. Visto que a natureza deles é
maligna e pervertida, quando Deus os impulsiona para que entrem em ação, seus
atos são malignos e pervertidos [...] O próprio Deus, entretanto, não pode
fazer o mal." [p.73]. Para todos que desejam saber como "Deus
endureceu o coração de Faraó" e continua endurecendo o coração de muitas
pessoas em nossos dias, esta citação explica tudo.
5) "[...] quando
Deus salva aqueles que merecem condenação, ninguém reclama. Mas, quando Deus os
condena, ouve-se um grande protesto. Nisso se manifesta a perversidade do
coração humano. Quando os homens raciocinam desta maneira, eles deixam de
louvar à Deus como Deus. Estão furtando de Deus o seu direito soberano." [p.84].
Acredito que a maioria dos cristãos não tentou aplicar esta lógica reversa
quando pensa sobre a salvação e a condenação eterna. Este é um assunto sobre o
qual precisamos refletir mais – respeitar a soberania e a vontade de Deus não é
somente uma questão de lei divina, mas também de consciência de que Ele tem o
melhor para nós.
Na
conclusão deste excelente livro, Lutero abre o coração e com muita sinceridade
e humildade, mostrando o fato de que em alguns momentos ele pareceu rude. Ele
escreve: “ Nesta controvérsia, não quero gerar mais calor do que luz. Porém, se
cheguei a argumentar demasiadamente forte, reconheço a minha falta; se é que
houve falta. Mas, não! Tenho a certeza de que o meu testemunho é levado ao
mundo em defesa da causa de Deus. Que Deus confirme este testemunho no Último
Dia! Quem poderia sentir-se mais feliz do que eu — aprovado pelo testemunho de
outros, de haver defendido a causa da verdade, sem preguiça, nem de modo
enganoso, mas com vigor suficiente e de sobra! Se pareci por demais áspero
contra você, Erasmo, peço-lhe que me perdoe. Não agi assim movido por má
vontade, mas a minha única preocupação era que, devido à importância do seu
nome, você estivesse danificando a causa de Cristo. E quem pode governar sempre
a sua pena, especialmente na ocasião de demonstrar zelo? Você mesmo, frequentemente,
lança dardos inflamados contra mim. Mas essas coisas não pesam realmente no
debate, e nós, que participamos dele, devemos perdoarmo-nos mutuamente por
causa dessas coisas; somos apenas homens, e nada existe em nós que não faça
parte das características da humanidade. Que o Senhor, a quem pertence esta
causa, abra os seus olhos e o ajude a glorificá-Lo. Amém.” [p.98]
No
final do livro, temos um “Post Scriptum” que tem como tema: História posterior da controvérsia e sua importância
atual.
“Que
importância há para o leitor do século XXI a controvérsia por detrás do livro
de Lutero, “A Escravidão da Vontade”? Durante a leitura desta versão sumariada
e simplificada, é possível que você tenha ficado impressionado com a grande
habilidade de Lutero no debate. Porém, o que realmente deve nos interessar é se
a posição por ele defendida é mesmo ensinada pelas Escrituras. Se o que ele escreveu
é o ensino da Palavra de Deus, então precisamos dar-lhe atenção nestes nossos
dias.” [p.99]
Pois isso
afeta também a nossa fé. A nossa fé está baseada nas promessas de Deus. A nossa
fé está firme no fato de que Deus pode fazer o que ele prometeu. Deus é
onipotente, e fará o que prometeu. Mas se o homem pode resistir a vontade de
Deus e fazer o que quer de acordo com seu livre arbítrio, a segurança da nossa
fé diminui, ou desaparece! A doutrina do livre arbítrio leva uma pessoa à
insegurança e dúvidas a respeito da sua salvação; para aumentar a sua segurança,
ele procura uma vida com mais santidade e boas obras, que servem como
justificação e devem garantir a sua salvação.
O livro
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