sábado, 14 de julho de 2018

NASCIDO ESCRAVO [Resenha Analítica]


LUTERO, Martinho. Nascido Escravo. São José dos Campos: Fiel, 2007. 101p.


Esta obra é uma versão condensada do livro "A Escravidão da vontade", escrito por Martinho Lutero e publicado pela primeira vez em 1525.

Erasmo de Roterdã, o mais influente humanista, escreveu um pequeno livro, em 1524, com o título De libero arbitrio Diatribe sive collatio. É uma obra de Antropologia da perspectiva humanista carregada de premissas sinergistas da teologia Católica Romana, da qual Erasmo apesar das muitas críticas nunca se separou.

A obra é escrita num estilo de diatribe. Este é um recurso literário usado desde a antiga filosofia grega, se caracteriza por ser um discurso ou conversação filosófica, onde duas ou mais pessoas debatem por meio de perguntas e respostas, argumentos, discordâncias e análise de implicações as teses do locutor. A Diatribe ainda traz algumas comparações das opiniões de Pais da Igreja como Orígenes, Ambrôsio e Jerônimo.

Neste livro o humanista holandês argumentou a favor de uma perspectiva sinergista ou, libertariana de livre-arbítrio. Ele o define como sendo "a potência, através da qual o ser humano se pode inclinar ou afastar ao/do que leva à salvação eterna." Desta forma ele apresenta a sua principal discordância e afastamento de Lutero e demais reformadores.

Portanto, a questão central gira em torno da existência ou não do livre-arbítrio, ou seja, poderia o ser humano voltar-se para Cristo de forma voluntária e, sem qualquer ajuda, ser salvo de seus pecados? Martinho Lutero (1483-1546, monge agostiniano, pastor, teólogo, estudioso fluente em grego e hebraico, ele compreendia que quaisquer crenças e experiências precisavam ser testadas à luz das escrituras). Erasmo defendia a ideia do livre-arbítrio, ao passo de que Lutero refutava de forma vigorosa os argumentos lançados por ele.


A obra é constituída de 4 capítulos divididas em argumentos, e são assim discriminados:


Capítulo 1 – O que ensinam as Escrituras

“Em Romanos 1.18, Paulo ensina que todos os homens, sem qualquer exceção, merecem ser castigados por Deus. “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça”. Se todos os homens possuem “livre-arbítrio”, ao mesmo tempo em que todos, sem qualquer exceção, estão debaixo da ira de Deus, segue-se daí que o “livre-arbítrio” os está conduzindo a uma única direção — da “impiedade e da iniquidade”. Portanto, em que o poder do “livre-arbítrio” os está ajudando a fazer o que é certo? Se existe realmente o “livre-arbítrio”, ele não parece ser capaz de ajudar os homens a atingirem a salvação, porquanto os deixa sob a ira de Deus.” [p.19].

Este capítulo contém 19 argumentos fundamentados nas Escrituras, que na visão de Lutero, podem ser utilizados para discussões sobre a questão do livre-arbítrio. Vários pontos são abordados, como a culpa universal da humanidade, a salvação ocorre pela graça de Cristo e exclusivamente mediante a fé, o homem é incapaz de crer no evangelho e por isso todos os seus esforços não podem salvá-lo, dentre outros, mas tudo culminando na máxima de que o homem possui uma natureza carnal e que as melhores obras da carne são hostis a Deus, ou seja, sendo o livre-arbítrio uma obra carnal, não pode levar o homem a justificação perante Deus.


Capítulo 2 – O que Erasmo ensinava

“Para ser justo, terei de citar a sua própria definição de “livre arbítrio”. Você diz: “Compreendo o “livre-arbítrio” como o poder da vontade humana mediante o qual uma pessoa pode aplicar ou afastar-se das coisas que conduzem à eterna salvação”. Você pode realmente chamar isso de definição? Uma definição precisa ser clara, e cada aspecto dessa declaração precisa ser explicado para tornar-se claro. Além disso, você começa definindo uma coisa, mas termina definindo algo inteiramente diferente. Quero dizer que somente Deus tem a liberdade de vontade que você descreve e ainda supõe que pertence aos homens. Entretanto, o homem é como um escravo, cuja única liberdade consiste em obedecer a seu senhor. Os seres humanos só agem de acordo com as determinações de Deus. Será isso “liberdade de arbítrio” como você a descreve? [p.45]

Lutero elabora 16 argumentos e parte para o embate contra seu oponente, expondo as ideias de Erasmo, mostrando as incoerências e contradições de suas conclusões, as falhas de sustentação e interpretação bíblica, bem como refutando cada uma delas com referências e comentários sobre a interpretação mais correta do texto sagrado.


Capítulo 3 – O que Lutero pensava sobre o ensino de Erasmo

“Você procura infundir medo em seus oponentes, reunindo um grande número de textos bíblicos que supostamente dão apoio à ideia do “livre-arbítrio”. Em seguida, procura fazer-nos parecer tolos ao sugerir que só dispomos de dois textos bíblicos para nos apoiarmos: Êxodo 9.12 e Malaquias l.2,3. Você não parece ter ficado, de modo algum, impressionado pelo manuseio desses textos por Paulo, em Romanos 9! Entretanto, tomarei esses dois textos para mostrar o fortíssimo apoio bíblico de que dispomos.” [p.69]

Lutero vê na concepção de Erasmo uma reversão ao ponto de vista de Pelágio, embora com menor sofisticação. Ele condena o entendimento de Erasmo sobre as discussões filosóficas anteriores sobre essa questão. Ele, então, discute as três visões distintas de Erasmo do livre-arbítrio: "De uma visão sobre o 'livre-arbítrio' você desenvolve três! A primeira, aquela dos que negam que o homem pode desejar o bem sem a graça especial, não começa, não progride e não termina, etc. parece a você 'severa mas suficientemente provável'... A segunda, aquela dos que afirmam que o 'livre-arbítrio' não é útil para nada exceto o pecado, e que só a graça trabalha o bem em nós, etc, parece a você 'mais severa'; e a terceira, a visão daqueles que dizem que o 'livre-arbítrio' é um termo vazio e que Deus trabalha em nós tanto o bem quanto o mal, e que tudo o que acontece, acontece por mera necessidade, parece a você 'a mais severa'. É contra essas duas últimas que você declara estar escrevendo".


Capítulo 4 – Comentário de Lutero sobre o estudo de Erasmo acerca de textos que negam o Livre Arbítrio.

O reformador escreve 8 argumentos e realiza toda a sua defesa de forma ávida e vigorosa, muitas vezes sendo até áspero em suas palavras para com Erasmo, mas em sua conclusão ele expressa o seu verdadeiro anseio: "nesta controvérsia, não quero gerar mais calor do que luz". Ao final, critica ainda o posicionamento de Erasmo com relação aos textos bíblicos que negam a existência do livre-arbítrio.

Lutero de forma irrefutável escreveu seu “Servum Arbitrum”. O arbítrio do homem não está livre, mas é um escravo do pecado. O livro tinha um tamanho quatro vezes maior que o livro de Erasmo. Isso quer dizer que Lutero deu uma resposta ampla ao seu colega monge Erasmo. Lutero se importava com o livre arbítrio, porque ligada a isso está a honra de Deus. A questão do livre arbítrio tem tudo a ver com a com o arbítrio de Deus. A questão é: acontece o que Deus quer ou o que o homem quer? Se acontecer o que o homem quer, não acontecerá o que Deus quer. Então, o homem domina as coisas e Deus não é mais o Todo-poderoso. Deus depende do homem e a Sabedoria e Poder dEle não são mais decisivos. O que está em jogo é a honra e a majestade de Deus!


Através de uma leitura acurada podemos observar os seguintes:

a) O homem não pode nada por si mesmo. Em verdade, até para que o Evangelho faça efeito em sua vida e ele seja justificado, o homem depende do toque do Espírito Santo. Ninguém consegue voltar-se para Cristo e ter a consciência de seu pecado sem que isso lhe seja revelado através do Evangelho. A visão que a Boa Nova dá ao ser humano é muito mais abrangente e profunda – a qual não pode ser alcançada através da simples consciência humana. Isso ficou bem expressado quando Lutero diz que "as nossas fraquezas pertencem a nós mesmos e nossa capacidade nos é dada através da graça de Deus" [p.61]

b) O senso de dever não é evidência da capacidade de cumpri-lo, com isso o Lutero mantém sua posição de que a lei revela o pecado (sem lei não há pecado), mas o fato de o homem receber a lei não significa que ele tem a capacidade de cumpri-la. Desta maneira, a lei não nos foi dada como um manual que nos mostra como podemos fazer as coisas da maneira correta, mas sim para nos mostrar no que consiste o pecado e quais são as suas consequências;

c) Todos pecamos e merecemos a condenação, com base nas palavras de Paulo em Romanos "todos pecaram e destituídos estão da graça de Deus". Lutero trabalha muito a questão da "graça divina".

d) Deus é bom, justo e soberano. Ele não pode fazer o mal – isso seria negar a sua própria natureza.

No que diz respeito a vontade revelada e a vontade secreta de Deus [p.56-60], acredito que o esclarecimento de Lutero sobre este assunto não deixa mais margem para questionamentos filosóficos sem base bíblica. O reformador diz que "de acordo com a sua vontade secreta planejou aqueles que receberiam sua misericórdia"[p.56]. Concordo com seu ponto de vista, pois afirma que não cabe a nós questionar a vontade secreta de Deus, pelo contrário, devemos adorá-lo reverentemente e nos interessar por aquilo que Ele nos tem revelado.

Outro ponto diz respeito a uma linha de pensamento que é muito utilizada hoje nas igrejas é a de se "fazer algo bom somente para que você tenha mais uma esmeralda na sua coroa de glória". A linha de pensamento de Lutero, de que "um cristão não faz algo para obter vantagens, mas o faz porque é correto perante o Senhor" pode ser bem utilizada para corrigir este pensamento que hoje assola boa parte das igrejas.

Também deixamos de lado muitas vezes o princípio básico da graça divina constantemente presente em nossa vida: todos pecamos e merecemos a condenação! Isso é algo para ser relembrado a cada momento e foi bem expressado por Lutero: "se a minha salvação fosse deixada ao meu encargo [...] eu jamais poderia ter certeza do sucesso [...] por meio do livre-arbítrio, ninguém poderá ser salvo. Mas por meio da livre graça muitos serão salvos". [p.39]


Algumas passagens importantes do livro:

1) "Tudo o que não provém do Espírito é carnal; e as melhores atividades da carne são hostis à Deus [...] isto está em harmonia com Romanos 1.17 que diz 'o justo viverá pela fé', e Romanos 14.23 que diz 'tudo o que não provém da fé é pecado'. Ou seja, aqueles que não têm fé não estão justificados; e aqueles que não estão justificados são pecadores, nos quais o suposto livre-arbítrio só pode produzir o mal. Portanto, o livre arbítrio nada é senão um escravo do pecado, da morte e de Satanás. Tal liberdade, enfim não é liberdade alguma!" [p.32]. O interessante neste trecho da defesa, ou melhor ainda, do ataque, é como o monge agostiniano consegue fazer a ligação entre as coisas carnais (tudo que não provém do Espírito) e a submissão do livre-arbítrio ao pecado, a morte e a Satanás.

2) "[...] a vontade humana por si mesma, é incapaz de fazer qualquer coisa para vir a Cristo em busca de salvação. A própria mensagem do evangelho é ouvida em vão, a menos que o próprio Pai fale ao coração e traga a pessoa a Cristo" [p.38]. Esta colocação de Lutero com certeza consola nosso coração, já que não somos nós que convencemos, em consonância com Paulo, ele afirma que é o Espírito que faz isso

3) "Você criou uma nova maneira de perder de vista o significado óbvio de um texto. Você insiste que os textos que se manifestam claramente contrários à ideia do livre arbítrio devem ter alguma 'explicação' que traga à tona seu verdadeiro sentido." [p.69]. Existem muitos "profetas" atuais que deturpam o significado óbvio dos textos bíblicos e distribuem "profetadas" por onde passam. Sempre que algum trecho da Escritura contraria as suas ideias eles os ignoram ou tentam encontrar algum tipo de explicação absurda para encaixá-los em suas ideias hereges. Esta refutação de Lutero pode ser usada hoje para combater muitas ideias teologicamente incorretas que foram inseridas no meio cristão.

4) "Algumas pessoas talvez queiram saber como Deus produz em nós maus efeitos, endurecendo-nos, entregando-os aos nossos desejos [...] Deus trata com os homens em consonância com a natureza deles. Visto que a natureza deles é maligna e pervertida, quando Deus os impulsiona para que entrem em ação, seus atos são malignos e pervertidos [...] O próprio Deus, entretanto, não pode fazer o mal." [p.73]. Para todos que desejam saber como "Deus endureceu o coração de Faraó" e continua endurecendo o coração de muitas pessoas em nossos dias, esta citação explica tudo.

5) "[...] quando Deus salva aqueles que merecem condenação, ninguém reclama. Mas, quando Deus os condena, ouve-se um grande protesto. Nisso se manifesta a perversidade do coração humano. Quando os homens raciocinam desta maneira, eles deixam de louvar à Deus como Deus. Estão furtando de Deus o seu direito soberano." [p.84]. Acredito que a maioria dos cristãos não tentou aplicar esta lógica reversa quando pensa sobre a salvação e a condenação eterna. Este é um assunto sobre o qual precisamos refletir mais – respeitar a soberania e a vontade de Deus não é somente uma questão de lei divina, mas também de consciência de que Ele tem o melhor para nós.

Na conclusão deste excelente livro, Lutero abre o coração e com muita sinceridade e humildade, mostrando o fato de que em alguns momentos ele pareceu rude. Ele escreve: “ Nesta controvérsia, não quero gerar mais calor do que luz. Porém, se cheguei a argumentar demasiadamente forte, reconheço a minha falta; se é que houve falta. Mas, não! Tenho a certeza de que o meu testemunho é levado ao mundo em defesa da causa de Deus. Que Deus confirme este testemunho no Último Dia! Quem poderia sentir-se mais feliz do que eu — aprovado pelo testemunho de outros, de haver defendido a causa da verdade, sem preguiça, nem de modo enganoso, mas com vigor suficiente e de sobra! Se pareci por demais áspero contra você, Erasmo, peço-lhe que me perdoe. Não agi assim movido por má vontade, mas a minha única preocupação era que, devido à importância do seu nome, você estivesse danificando a causa de Cristo. E quem pode governar sempre a sua pena, especialmente na ocasião de demonstrar zelo? Você mesmo, frequentemente, lança dardos inflamados contra mim. Mas essas coisas não pesam realmente no debate, e nós, que participamos dele, devemos perdoarmo-nos mutuamente por causa dessas coisas; somos apenas homens, e nada existe em nós que não faça parte das características da humanidade. Que o Senhor, a quem pertence esta causa, abra os seus olhos e o ajude a glorificá-Lo. Amém.” [p.98]


No final do livro, temos um “Post Scriptum” que tem como tema: História posterior da controvérsia e sua importância atual.

“Que importância há para o leitor do século XXI a controvérsia por detrás do livro de Lutero, “A Escravidão da Vontade”? Durante a leitura desta versão sumariada e simplificada, é possível que você tenha ficado impressionado com a grande habilidade de Lutero no debate. Porém, o que realmente deve nos interessar é se a posição por ele defendida é mesmo ensinada pelas Escrituras. Se o que ele escreveu é o ensino da Palavra de Deus, então precisamos dar-lhe atenção nestes nossos dias.” [p.99]

Pois isso afeta também a nossa fé. A nossa fé está baseada nas promessas de Deus. A nossa fé está firme no fato de que Deus pode fazer o que ele prometeu. Deus é onipotente, e fará o que prometeu. Mas se o homem pode resistir a vontade de Deus e fazer o que quer de acordo com seu livre arbítrio, a segurança da nossa fé diminui, ou desaparece! A doutrina do livre arbítrio leva uma pessoa à insegurança e dúvidas a respeito da sua salvação; para aumentar a sua segurança, ele procura uma vida com mais santidade e boas obras, que servem como justificação e devem garantir a sua salvação.

O livro está disponível em

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