O primeiro deles é o drama vivido pelo vaticanista americano George Faber com a letargia apresentada do Tribunal da Rota Romana e os processos de anulação de casamento. Ainda hoje, o mesmo tribunal é responsável por esses julgamentos e a morosidade em suas decisões permanece.
Pior, não são somente os casos italianos que vão até o Vaticano, mas são as causas de todo o mundo. O que é, além de demorado, dispendioso, pois é exigido o envio e tradução dos documentos. Na história, Faber tem ainda um agravante em sua situação, sua amada Chiara é casada pela Igreja com Corrado Calitri, influente ministro italiano e de duvidosa conduta moral. Calitri alimenta pretensões de assumir o cargo máximo da Itália, condição que o coloca em relação de intimidade com o Vaticano.
Entretanto, os retratos mais eloquentes da dinâmica do governo da Igreja são protagonizados por Kiril Lakota, o papa Kiril. Logo após o Conclave que o elegeu, ele decide manter seu primeiro nome, as insígnias orientais e a vasta barba. Decisões que o colocam diante de suas primeiras resistências na Cúria. O livro retrata com perspicácia os entraves impostos pelo tradicionalismo e a complicada relação do papa com os seus cardeais em momentos importantes como nos preparativos de uma viagem e até em importantes reformas como da língua utilizada nas celebrações, na época o latim. Além da conflituosa relação entre a pessoa e o cargo que ocupa, retratado na amizade entre Kiril e Télémond, padre jesuíta e arqueólogo censurado pelo Santo Ofício.
É impossível ler a história sem repetir o ditado em que a vida imita a arte. Não há como negar as aproximações entre o fictício Lakota e o real Wojtyla, papa eleito 15 anos após o livro. A personagem do livro é um cardeal ucraniano que, após intensa batalha contra os nazistas, torna-se perseguido e encarcerado pelos soviéticos. Consegue fugir da pena imposta pelos russos, mas carrega as marcas de seu sofrimento na memória, na alma e no rosto com uma notável cicatriz. Também vindo do leste europeu, o polonês João Paulo II enfrentou os mesmos regimes totalitários, mas sem o cárcere. Assim como Lakota intermediou negociações com Kamenev (chefe do Kremlin no romance), Wojtyla negociou e atendeu Gorbachev.
West é um escritor reconhecido e As sandálias do pescador é um romance com tudo que tem direito: conspiração, intrigas, paixões, traição. Uma perspectiva de um jornalista que cobriu o Vaticano e conhece seus meandros e personagens. Sua obra retrata com afável delicadeza os homens ligados ao comando da Igreja, apresentando-os como homens de fé e boa vontade, por vezes incompreendidos e expostos ao exame de consciência de uma longa velhice. Até mesmo os cardeais mais duros são mostrados como pessoas de boa vontade no cumprimento daquilo que julgam ser o correto. Por fim, ao enxergarmos um panorama tão parecido mais de 50 anos depois, acende o alerta para a urgência nas reformas debatidas pelo conselho instalado pelo papa Francisco, mas ainda sem muita efetividade.
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WEST, Morris. As sandálias do Pescador. Rio de Janeiro, RJ: Editora Record. 2014. 1ª Edição. 264p.
Publicado originalmente
https://olharvaticano.wordpress.com/2015/06/25/resenha-as-sandalias-do-pescador-de-morris-west/
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