sexta-feira, 26 de abril de 2019

TEOLOGIA PURITANA [Resenha]


BEEKE, Joel R.; JONES, Mark. Teologia Puritana: Doutrina para a VidaSão Paulo: Vida Nova, 2016, 1524p. [1]

Não é exagero afirmar que se tornou proverbial o dito de J. I. Packer, quando ele afirma que “os puritanos eram gigantes em comparação a nós, gigantes de cuja ajuda carecemos, se quisermos crescer”.[2] A afirmação é justificada a partir de diversas contribuições dos puritanos elencadas pelo próprio Packer, de maneira que a que merece destaque é: “os puritanos me fizeram perceber que toda teologia também é espiritualidade, no sentido de exercer influência, boa ou má, positiva ou negativa, no relacionamento ou na falta de relacionamento das pessoas com Deus”.[3]

A prova da afirmação de Packer pode ser vista naquela que, muito provavelmente, foi a maior publicação dentre todas as editoras brasileiras, no ano passado: Teologia Puritana: Doutrina para a Vida, de Joel R. Beeke e Mark Jones, dois dos maiores especialistas contemporâneos nos puritanos. Joel Beeke, já bastante conhecido do público brasileiro, é presidente e professor de Teologia Sistemática e Homilética do Puritan Reformed Theological Seminary, além de pastor na Heritage Reformed Congregation, em Grand Rapids, Michigan. Obteve seu doutorado (PhD), em Teologia da Reforma e Pós-Reforma, pelo Westminster Theological Seminary, na Filadélfia, Pensilvânia. Nas palavras do seu co-autor: “Ele é um puritano contemporâneo tanto no conhecimento quanto na piedade” (p. 21). Mark Jones, por sua vez, é ministro presbiteriano, pastor da Faith Presbyterian Church, uma congregação filiada à Presbyterian Church in America, em Vancouver, Colúmbia Britânica, no Canadá. Pesquisador Associado da Faculdade de Teologia da University of the Free State, em Bloemfontein, na África do Sul. Jones obteve o seu doutorado (PhD) pela Leiden Universiteit. Interessetantemente, sua tese de doutoramento tratou da Cristologia do puritano Thomas Goodwin.

A Teologia Puritana nada mais é do que uma Teologia Sistemática elaborada a partir dos escritos dos puritanos: “Este livro trata de teologia puritana. Seus capítulos examinam várias áreas da teologia sistemática do puritanismo” (p. 23). Possui um total de oito loci (Prolegômenos, Teontologia, Antropologia e Teologia do Pacto, Cristologia, Soteriologia, Eclesiologia, Escatologia e Teologia na Prática), que compreendem sessenta capítulos. É importante destacar algo da metodologia dos autores, a saber, muitos dos capítulos lidam com temas teológicos clássicos, como por exemplo, teologia natural, hermenêutica e exegese, a Trindade, a providência, a pecaminosidade do pecado, as alianças das obras, da redenção e da graça, lei e evangelho e a regeneração. Outros capítulos apresentam a maneira como um puritano em específico lidou com determinado tema: “Stephen Charnock e os atributos de Deus”, “Thomas Goodwin e Johannes Maccovius e a justificação desde a eternidade”, “Anthony Burgess e a intercessão de Cristo por nós”, “Thomas Goodwin e o amoroso coração de Cristo” e “Christopher Love e as glórias do céu e os pavores do inferno”, por exemplo. Os capítulos que abordam temas teológicos “apresentam um quadro daquilo que se pode chamar de ‘posição puritana’ ou ‘consenso puritano’” (p. 29). Já os capítulos que se concentram num único puritano possuem o objetivo de “oferecer uma ideia razoavelmente abrangente acerca do que um teólogo específico pensava sobre uma doutrina específica” (p. 29).

Logo na Introdução os autores fazem questão de destacar que o movimento não era caracterizado por uniformidade em termos de linha teológica. Nem todos eram reformados ou calvinistas, como se supõe (p. 24). Richard Baxter (1615–1691), por exemplo, era neonomiano; John Goodwin (1594–1665), arminiano; John Milton (1608–1674), provavelmente ariano; e John Eaton (c. 1575-c. 1631), antinomiano. Não obstante, “a imensa maioria dos puritanos fazia parte do movimento teológico mais amplo denominado ortodoxia reformada” (p. 25).

Em razão da vastidão a obra, torna-se contraproducente uma apresentação exaustiva do seu conteúdo. Ainda assim, alguns destaques devem ser feitos, como, por exemplo, a dupla “estrutura arquitetônica” da obra: 1. A Teologia do Pacto; e 2. Seu caráter trinitariano. Logo no primeiro capítulo, ao tratarem da revelação, os autores destacam o caráter pactual do conhecimento de Deus em Cristo. De acordo com eles, a revelação de Deus a Adão se deu no contexto de um pacto denominado “pacto das obras”. Se assim foi necessário com Adão no Jardim no Éden, quanto mais o seria no contexto da Aliança da Graça: “A doutrina da aliança foi importante para os teólogos reformados do século 17, pois permitia que expressassem a natureza relacional da teologia, que é o propósito da revelação” (p. 55). É a doutrina do Pacto que estabelece a ponte que transpõe o abismo ontológico entre o Criador infinito e onipotente, de um lado, e a criação finita e dependente, de outro. Essa revelação, todavia, é cristológica, ou seja, ela é dada em Cristo e por meio dele através das várias alianças pós-queda, alcançando o seu ápice na Nova Aliança. A teologia do pacto como estrutura arquitetônica do pensamento puritano também se faz evidente quando os autores analisam a hermenêutica e a exegese puritanas. Tanto o pacto das obras quanto o pacto da graça funcionam como categorias hermenêuticas do pensamento puritano. Toda a Escritura é interpretada em termos dos dois pactos e os puritanos se esforçavam por destacar as semelhanças e distinções entre as duas. Beeke e Jones destacam como em seu método interpretativo, os puritanos ressaltavam a maneira como em cada administração pactual a revelação acerca de Jesus Cristo progredia:

Thomas Adams (1583–1652) comenta que Cristo é a “soma de toda a Bíblia, profetizado, tipificado, prefigurado, exibido, demonstrado, a ser encontrado em cada página, quase em cada linha […] Cristo é a parte principal, o centro para onde todas essas linhas conduzem”. De modo semelhante, ao comentar sobre como Cristo é o alvo e a extensão das Escrituras, Richard Sibbes (1577–1635) observa: “Cristo é a perola daquele anel, Cristo é o tema, o centro em que convergem todas aquelas linhas: remova Cristo e o que sobra? Portanto, em todas as Escrituras cuidemos para que Cristo não nos escape; sem Cristo, tudo é nada”. Isaac Ambrose (1604–1664) afirma que antes da encarnação Cristo vinha sendo apresentado em “cerimônias, rituais, símbolos, tipos, promessas [e] alianças” […] Em cada dispensação da revelação de Deus a seu povo, mais e mais de Cristo é apresentado por meio dos vários meios relacionados por Ambrose (pp. 63–64).

Beeke e Jones demonstram como além de pactual, a teologia puritana possui uma forte ênfase trinitária. Em todos os loci teológicos o enfoque trinitário dos puritanos pode ser percebido. Explicitando a eclesiologia de John Owen e Thomas Goodwin, os autores dizem o seguinte: “À semelhança de John Owen, Thomas Goodwin insistia numa teologia totalmente trinitária, não apenas uma doutrina trinitária da salvação” (p. 909). Três conceitos específicos a respeito das opera ad extra trinitatis são mencionados em conexão a diversas doutrinas: imanentes, transientes e aplicadas:

1. Imanentes em Deus em seu relacionamento conosco, conforme seu amor eterno estabeleceu e nos concedeu, sendo que Deus, por causa desse amor, nos escolheu e determinou que recebêssemos essa e todas as demais bênçãos;

2. Transientes em Cristo naquilo que fez por nós, em tudo que fez ou sofreu ao nos representar e ao tomar o nosso lugar;

3. Aplicadas, isto é, operadas em nós e por nós, todas aquelas bênçãos que o Espírito nos outorga, como chamado, justificação, santificação, glorificação (p. 210).

Tais conceitos podem ser vistos como estando relacionados a diversas doutrinas, como por exemplo, os atributos de Deus, especialmente o seu amor (p. 130), a justificação (pp. 210–229), a eleição (p. 235), a ordem dos decretos (p. 240), o Pacto da Redenção (p. 361) e a união mística com Cristo (p. 690). O gênio da teologia dos puritanos está justamente na maneira coesa como todos os loci teológicos são unidos, possuindo a teologia do pacto como a sua estrutura arquitetônica e a doutrina da Trindade como seu elemento norteador.

Dentre os sessenta capítulos da obra, alguns podem ser destacados, uma vez que apresentam conceitos e detalhes bastante interessantes a respeito do pensamento teológico dos puritanos ou de algum deles, especificamente. Em primeiro lugar, o capítulo 9, que discute o supralapsarianismo cristológico de Thomas Goodwin. Esta designação advém do fato de Goodwin fundamentar o seu supralapsarianismo em sua cristologia, tendo em mente “a glória do Deus-homem, Jesus Cristo, que une a igreja consigo” (p. 233). O diferencial da posição de Goodwin está em como ele apresenta a glória de Cristo e o desejo do Pai de agradar o seu Filho, como o propósito supremo e principal da eleição. Na discussão acerca do infralapsarianismo versus o supralapsarianismo é comum entender a reconciliação com Deus como sendo o propósito principal da eleição. A ideia por trás deste pensamento é que Jesus Cristo foi dado pela igreja, ou ainda, que ele foi entregue para, acima de todas as coisas, operar a reconciliação entre Deus e o homem. Ainda que a obra de Cristo tenha tido tal propósito, Goodwin entendia que não se tratava do fim supremo nem da obra vicária de Cristo nem da eleição. Beeke e Jones sublinham que, para Goodwin, “Cristo é o objetivo da eleição e de todas as outras coisas” (p. 238). Isto quer dizer que o principal motivo da predestinação de Cristo para ser o Redentor, não foi que os pecadores pudessem ser salvos pelos benefícios da sua obra. Antes, o motivo primário foi que a suprema excelência da sua pessoa fosse contemplada pelos pecadores. Todos os benefícios advindos da obra redentora de Cristo possuem um valor bem inferior à dádiva da sua pessoa. No Conselho da Redenção, que teve lugar na eternidade, ao decretar que o Filho assumisse a natureza humana, Deus, o Pai, não levou em consideração apenas a necessidade do ser humano de um redentor. Ele levou em consideração, acima de tudo, nas palavras do próprio Goodwin, citadas pelos autores: “aquela glória infinita da segunda pessoa a ser manifesta naquela natureza mediante essa apropriação. Os dois objetivos o levaram a agir, e, dos dois, a glória da pessoa de Cristo naquela união e por meio daquela união teve maior peso na eleição, de modo que até mesmo a própria redenção esteve subordinada à glória da sua pessoa” (p. 239).

Desse modo o esquema supralapsariano adquire um fundamento mais forte, uma vez que o foco é mudado de Cristo sendo dado aos pecadores, para estes sendo levados pelo Pai àquele, a fim de que a sua glória seja mais plenamente exibida. Decretar a encarnação apenas para que pecadores fossem salvos, ainda que um objetivo belo, seria diminuir e rebaixar a pessoa do Filho. A glória de Cristo é mais preciosa que a salvação dos eleitos.

No capítulo 25 os autores abordam outro aspecto do pensamento de Thomas Goodwin, mais especificamente, o amoroso coração de Cristo para com o seu povo. Em 1645, ele publicou a obra The Heart of Christ in Heaven Towards Sinners on Earth (O Coração de Cristo no Céu Voltado para Pecadores na Terra). Nessa obra Goodwin tinha o propósito de refutar a ideia bastante divulgada de que os cristãos do período pós-apostólico viviam em desvantagem em relação aos cristãos que conheceram a Cristo aqui na terra. O argumento que apoiava tal ideia era o de que, uma vez que, agora, Cristo está glorificado, ele é menos afetado por sua humanidade. De acordo com Beeke e Jones, “Goodwin afirmou que, com base nas Sagradas Escrituras, Cristo tem sentimentos fortes, compaixão profunda e empatia cheia de emoções por seu povo sofredor, mesmo quando já está assentado à direita de Deus” (p. 563). O argumento é que a exaltação de Cristo, diferentemente do que era crido por muitos, não diminuiu as suas emoções, mas que, ao contrário, as aumentou. O problema enfrentado por Goodwin era que, se Cristo “depois de ter se livrado de sua fragilidade aqui na carne e depois de ter vestido sua natureza humana com uma glória tão magnífica” se lembra de nós no céu, “ele é incapaz de se compadecer de nós da mesma maneira que fazia quando habitou conosco aqui embaixo; tampouco podem seus sentimentos ser afetados e tocados pelas nossas fraquezas”. Com certeza, ele deixou para trás todas as lembranças de fraqueza e dor (p. 564).

Uma vez que as Escrituras afirmam, de modo inequívoco, que “não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas” (Hb 4.15), é legítimo e correto inferir que as fraquezas do seu povo inspiram a compaixão de Cristo. Esclareça-se que, o termo “fraquezas” envolve tanto as dificuldades de cunho geral quanto pecados específicos: “Até mesmo nossa tolice e nossas escolhas pecaminosas despertam a compaixão de Cristo” (p. 565). As palavras de Goodwin citadas pelos autores são belas: “Vossos próprios pecados levam [Cristo] mais à compaixão do que à ira […] da mesma maneira como acontece com o coração de um pai para com o filho que tem alguma doença repugnante. Ou, de semelhante maneira, a atitude de alguém que tem uma parte do corpo com lepra não é odiar aquela parte, pois é sua carne, mas a doença, e isso o leva a ter ainda mais compaixão da parte afetada” (p. 565).

O compassivo coração de Cristo o leva a se inclinar com bondade em direção ao seu povo, ainda que sentindo repulsa pela imundícia inerente a tais pecados. Deve ser compreendido, porém, que o fato de Cristo reagir com compaixão aos pecados do seu povo, isso não implica em que ele ainda experimente qualquer tipo de sofrimento, visto a sua humilhação ter se completado na crucificação e no sepultamento. Ao questionamento sobre como é possível, então, que ele se sinta tocado pelos sentimentos gerados pelas debilidades humanas, Goodwin respondia que esse não é um ato de fraqueza, mas do poder do amor celestial. Embora Cristo não esteja mais sujeito a nenhum tipo de fragilidade, ele continua sendo alguém plenamente humano, com emoções, corpo e alma humanos: “Assim, nossos sofrimentos não ferem a Cristo, mas sua alma humana reage a nossos sofrimentos com ternura gloriosa e admirável” (p. 567).

Por fim, é importante destacar o capítulo 57, que aborda a casuística puritana. Primeiramente, o termo casuística, conforme definido pelos puritanos, não trata da “técnica desenvolvida pelos jesuítas para encontrar pretextos pata não fazer o que você deve fazer” (p. 1309). Antes, para os puritanos, a casuística era arte da teologia moral aplicada com integridade bíblica a diversos casos de consciência. Em outras palavras, a casuística puritana tratava de como casos de consciência eram tratados de acordo com as Sagradas Escrituras, algo bem próximo do que hoje é chamado de aconselhamento bíblico e pastoral. O capítulo é dividido em: 1. O início da casuística puritana, ainda no século 16, com Richard Greenham (1542–1594). Nesse período, as anotações dos casos de consciência tratados eram abundantes, indo “desde se as pessoas podiam deixar de ir ao culto de sua igreja para ouvir um pastor pregar em uma igreja vizinha até se alguém que havia admitido ter mentido aos amigos sobre um pecado de ordem pessoal devia agora confessá-lo em público” (p. 1312). 2. Uma apresentação de William Perkins como o pai da casuística puritana, visto ter ele estabelecido o “padrão para toda a obra posterior de teologia moral protestante” (p. 1315). 3. O florescimento da casuística puritana, nas obras de William Gouge (1575–1653), William Whately (1583–1639), Robert Bolton (1572–1631) e o discípulo mais famoso de Perkins, William Ames (1576–1633), que escreveu uma das mais importantes obras da casuística puritana: Conscience, with the Power and Cases Thereof (A Consciência, seu Poder e seus Casos), publicada em 1630, primeiramente em latim, e, posteriormente, em inglês, em 1639. 4. O apogeu da casuística puritana, com destaque para o trabalho de Thomas Brooks (1608–1680). 5. O desaparecimento da casuística puritana durante as últimas duas décadas do século 17. De acordo com Beeke e Jones, isso aconteceu em virtude do surgimento do deísmo, do embate com o socinianismo e com o arminianismo e dos ataques de Thomas Hobbes e John Locke à validade da ideia de consciência.

Não há dúvidas de que Teologia Puritana foi o grande lançamento editorial do ano de 2016. Numa época de redescobrimento do pensamento dos teólogos puritanos, uma teologia sistemática que apresenta o seu pensamento teológico é bem-vinda. Certamente, todos os amantes dos puritanos devem ler essa obra. Além disso, o livro é uma ferramenta indispensável para todos aqueles que desejam compreender, de fato, o que era ensinado pelos puritanos. Pesquisadores e estudantes em Teologia Sistemática muito se beneficiarão dessa obra. Algo interessante é que os autores deixaram de fora tópicos considerados difíceis em nossos dias, como Princípio Regulador do Culto e salmodia exclusiva. Por fim, destaca-se o caráter devocional com que as doutrinas e os tópicos são apresentados pelos autores.


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[1] Resenha de autoria do Rev. Alan Rennê, publicado originalmente no seguinte link: <https://medium.com/@alanrenn/teologia-puritana-resenha-365d26661152> Esta publicação é feita com a devida autorização.
[2] PACKER, J. I. Entre os Gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã. 2.ed. São José dos Campos: Fiel, 2016. p. 22.
[3] Ibid. p. 20.

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