sexta-feira, 6 de setembro de 2019

A ORIGEM DA FAMÍLIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO [Resenha]


ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade e do Estado. Rio de janeiro, RJ: BestBolso, 2014.


SINOPSE - Neste livro-referência para a compreensão da estrutura da sociedade – desde o estado selvagem, a barbárie até a chegada da civilização – Friedrich Engels (1820-1895) interpreta as investigações de Lewis Morgan (EUA, 1877) e enriquece os detalhados estudos de Karl Marx sobre a análise materialista da história. Uma obra fundamental para entender a concepção do materialismo, a filosofia marxista, a institucionalização da família e o aparecimento do Estado Capitalista Moderno. Atemporal para muitas gerações. Um dos clássicos fundamentais para o estudo do materialismo histórico. A tradução é do filósofo Leandro Konder, um dos mais respeitados intelectuais brasileiros e um dos maiores estudiosos do marxismo no Brasil. Engels é coautor, junto a Karl Marx, do Manifesto Comunista, e ajudou a desenvolver os ideais do socialismo científico. A edição BestBolso ganhou Posfácio com contextualização histórica da Profª. Draª. Aparecida Maria Abranches (UFRRJ). Pela Bertrand Brasil, a obra vendeu 17 edições.


O LIVRO [1] - A origem da família, da propriedade privada e do Estado, escrito por Friedrich Engels em 1884, apresenta uma análise crítica dos modos de organização da vida social. Levando em consideração as relações entre os sexos para além da biologia, Engels trata da opressão de gênero e do papel do casamento e da autoridade masculina na constituição da sociedade moderna, apontando, assim, para temas que hoje seriam chamados de antropológicos.

A obra desenvolve-se em nove capítulos: o primeiro é dedicado à análise e à constatação dos chamados estágios pré-históricos da civilização (o estado selvagem e a barbárie) e à dedução da existência de uma estrutura familiar primitiva de cunho comunitário e baseada em laços consanguíneos matrilineares; os capítulos 2, 3 e 4 analisam a formação da família e da gens; os capítulos 5 a 6 são dedicados ao estudo da formação do Estado a partir da sociedade gentílica na Grécia, em Roma e entre os germanos; e o último capítulo constitui uma reflexão crítica sobre a relação entre barbárie e civilização.

Baseando-se em um resumo detalhado de Karl Marx da obra de Lewis Henry Morgan, Ancient Society, or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization [Sociedade antiga, ou Pesquisas nas linhas do progresso humano, do estado selvagem até a civilização, passando pela barbárie], e em suas próprias investigações, Engels desnaturaliza a família patriarcal e monogâmica, mostrando sua origem histórica.


UMA ANÁLISE [2] - O que mais me chamou a atenção neste livro são os capítulos 2, 3 e 4 os quais analisam a formação da família. A visão que Engels (repitamos mais uma vez, apoiando-se quase que inteiramente no antropólogo americano Lewis Morgan) tem da história humana revela muito do que viria a ser o movimento comunista. Uma vez que a propriedade privada e a família foram se formando aos poucos à medida que a evolução darwinista empurrava os agrupamentos humanos rumo à civilização, a conclusão óbvia é que, sendo uma construção da sociedade (e, acrescento eu: da sociedade opressora), então é possível que nos livremos de ambas. Se nem uma nem outra são naturais ao homem, então, podem ser descartadas. E, na sua visão, inapelavelmente serão, pois os movimentos dialéticos da história nos conduzirão inapelavelmente para o próximo estágio de nosso desenvolvimento social: o comunismo.

Ora, Engels (mais uma vez escorando-se em Morgan) alega que as sociedades primitivas eram todas comunistas. Assim, partimos todos do comunismo primevo, afastamo-nos dele pelo pecado da acumulação de riquezas fomentado no interior das famílias e ao comunismo voltaremos, agora, pela revolução. O comunismo é o ponto de partida e o de chegada da história. O alfa e o ômega; o princípio e o fim de nossa caminhada. Engels consegue unir, numa única explicação da história, Hobbes a Rousseau: o bom selvagem primitivo que um dia caminhou por aqui voltará, de fato, a habitar a terra; porém, isso se dará com uma pequena ajuda de Leviatã.

Não é difícil de perceber, nessa visão ideológica, algo de messiânico; é mesmo como se a narrativa cristã da Queda e da Redenção tivesse sido imanentizada e projetada na história. A salvação dos homens, contudo, não vem da cruz dos novos salvadores da humanidade; antes, vem da revolução do proletariado, a última classe e aquela que nos redimirá pelo derramamento não de seu próprio sangue, mas pelo do seus opressores. O apelo emocional que tal discurso desperta no militante comum é, pois, algo semelhante a um apelo religioso, não sendo de se estranhar que muitos comunistas, mesmo que não crendo em vida após a morte, estão dispostos a sacrificar a que possuem pelo advento de uma sociedade livre de todo mal e de todo pranto. Mas, o advento desse paraíso requer, em primeiro lugar, a destruição da família. Como pontificou Kate Millett, célebre feminista americana radical, em sua obra de referência Sexual Politics (g.n.): “o resultado radical que surge da análise de Engels é que a família, como nós a temos hoje em dia, precisa desaparecer”.[3]

Mas, para isso, era necessário que se dessem determinados passos. Uma instituição tão antiga e tão enraizada no coração dos homens não é abolida senão mediante uma série de medidas destinadas a miná-la desde dentro. Engels pregava, por exemplo, que, para se chegar à destruição da família, era necessário que a mulher fosse inserida no mercado de trabalho: A ideia de que ela pertence mais ao lar do que à fábrica deveria ser absolutamente demonizada, incentivando-a a lutar por postos de trabalho ombreados com o dos homens. O problema óbvio que daí deriva é o de que, se elas adentrarem em massa no mercado de trabalho, não haverá quem cuide dos filhos em casa. Essa sempre foi uma das tarefas da mulher e, em virtude dela, é que a divisão sexual do trabalho acabou por levar ao acúmulo de propriedade privada nas mãos do homem e, via de consequência, à própria submissão da mulher na família monogâmica. Não é possível destruir-se a família, portanto, se a mulher continuar a cuidar de seus filhos, pois a imposição de tal tarefa ao sexo feminino é a causa primeira da estrutura familiar tal qual a conhecemos. É por isso necessário que, de um lado, a mulher possa escolher não ter filhos (aborto e contracepção livres são ideais a serem seguidos) e, de outro, que a educação e o cuidado das crianças que vierem a nascer passe das mãos da família para as do Estado. Nas palavras de Engels: “O trato e a educação das crianças vão se tornar assunto público; a sociedade cuidará, com o mesmo empenho, de todos os filhos, sejam legítimos ou naturais.”

Mais do que isso, é absolutamente necessário que o divórcio venha a ser introduzido nas sociedades ocidentais. O vínculo matrimonial não pode mais tender à indissolubilidade; antes, a relação entre homem e mulher deve acabar assim que a atração sexual entre ambos esfrie (as mulheres que me leem podem avaliar se isso realmente atende aos seus interesses), e a separação entre ambos deve ser a mais facilitada possível. Eis o que diz Engels (g.n.): “Se o matrimônio baseado no amor é o único moral, só pode ser moral o matrimônio em que o amor persiste. Mas a duração do acesso de amor sexual é muito variável, segundo os indivíduos, particularmente entre os homens. Em virtude disso, quando o afeto desaparece ou é substituído por um novo amor apaixonado, o divórcio será um benefício tanto para ambas as partes como para a sociedade. Apenas deverá poupar-se ao casal a passagem pelo lodaçal inútil de um processo de divórcio.” [4]

Até aqui, já se tem um cadinho de medidas bastante drásticas. E os líderes do movimento comunista assimilaram tais ideias desde logo. Assim que Lênin tomou o poder em Outubro de 1917, tratou de implementar as sugestões de Engels. Segundo a própria Kate Millett: “A União Soviética fez um esforço consciente na tentativa de eliminar o patriarcado e de reestruturar sua instituição mais básica – a família. Depois da revolução, toda possível lei foi aprovada para libertar os indivíduos das reivindicações da família: casamento e divórcios livres, contracepção e aborto a pedido.” [5]

Em sua obra A Revolução Traída, Trotsky descreve-o com cores vivas (g.n.): “A revolução (de Outubro de 1.917) tentou heroicamente destruir o velho “lar familiar” estagnado, instituição arcaica, rotineira, asfixiante, no qual a mulher das classes trabalhadoras era votada aos trabalhos forçados da infância até a morte. A família, considerada como uma pequena empresa fechada, devia ser substituída, no espírito dos revolucionários, por um sistema completo de serviços sociais (…) A absorção completa, por parte da sociedade socialista, das funções econômicas da mulher, ligando toda uma geração pela solidariedade e assistência mútua, devia levar a mulher, e portanto, o casal, a uma verdadeira emancipação do jugo familiar. E, enquanto essa obra não tiver sido realizada, quarenta milhões de famílias soviéticas se manterão vítimas dos costumes medievais, da sujeição e da histeria da mulher, das humilhações cotidianas da criança, das superstições deste e daquele. Sobre isto não há ilusões”. [6]

Trotsky, contudo, percebeu que a revolução não conseguiu lograr o objetivo de destruir a família. Para ele, não houve recursos suficientes para que o Estado soviético conseguisse tecer a rede assistencial que, em seus sonhos, tornariam a família irrelevante e, portanto, facilmente removível da sociedade. Quase que num suspiro de desânimo, na mesma obra acima, ele asseverou (g.n.): “Não se conseguiu tomar de assalto a velha família. E não foi por falta de boa vontade. Nem porque ela estivesse firmemente enraizada nos espíritos. Infelizmente, a sociedade mostrava-se demasiado pobre e pouco civilizada. A família não pode ser abolida. É preciso substituí-la.”

Substituí-la exatamente por quê? Trotsky não o diz. Talvez pelo próprio Estado assistencialista, conforme sugerido na primeira citação. Isso, contudo, não é claro.

Mas, coincidência ou não, a substituição da família tradicional por outros “modelos” é estratégia amplamente adotada nos dias de hoje, mostrando-se muito mais eficaz do que o combate direto, o “assalto” à velha família tal qual tentado no começo da implantação do Estado soviético.

De fato, aparentemente, Lênin foi ingênuo ao imaginar que bastava a força motivacional de sua ideologia semirreligiosa para que a nova sociedade perfeita se concretizasse. O enfraquecimento da família, por mais que não se gostasse disso, levava ao enfraquecimento da própria sociedade soviética. Stálin, por sua vez, nutria sonhos de uma campanha militar que o permitisse tomar ao menos boa parte da Europa, percebendo ele, desde logo, que, sem famílias sólidas, qualquer campanha militar seria suicida. Assim, teve ele de, em pouco tempo, não somente reverter os esforços de Lênin, mas tratar de agir em sentido oposto: o divórcio, a contracepção e o aborto foram abolidos da União Soviética e o governo passou a incentivar que a mulher voltasse a ocupar seu lugar tradicional. Famílias numerosas eram bem vindas e mesmo campanhas pela castidade entre os jovens passaram a fazer parte do discurso do Estado.

Ou seja, Stálin percebeu que uma sociedade forte depende de famílias fortalecidas. O sonho de Lênin e de Trotsky era exatamente isso: um sonho. E que provavelmente se tornaria um pesadelo caso o novo líder quisesse mantê-lo de pé. Daí que Stálin tratou logo de trazer a URSS de volta para a realidade, ao mesmo tempo em que tratou de exportar o pesadelo para as potências ocidentais de forma a enfraquecê-las.

Onde Lênin fora ingênuo, Stálin soube ser sagaz. Muitos, porém, acusaram-no de trair a revolução e de “aburguesar” o homo sovieticus. Para mentes envenenadas por ideologias, se a revolução falha (como sempre há de falhar) em mudar a realidade, isso se dá não porque a ideologia revolucionária é ela mesma falha, mas porque os que conduzem o processo da revolução é que se desviaram do bom caminho. A ideologia é sempre boa; falhos são os ideólogos que a põem em prática.

Porém, por mais que o comunismo tenha se mostrado uma tragédia sem precedentes em qualquer lugar em que tenha fincado os pés, o Ocidente, nas últimas décadas, resolveu seguir, exatamente os caminhos acima traçados. Tomemos, como exemplo, o nosso Brasil, país em que a maior parte da população sempre mostrou uma aversão completa ao comunismo.

Quem já estudou um pouco da evolução das legislação e jurisprudência brasileiras pode perceber, claramente, que elas vêm adotando, com exatidão notável, todos os elementos acima.

O divórcio, por exemplo, foi introduzido pela Lei 6.515/77. Pouco depois, a Constituição Federal de 1.988 introduz a ideia de união estável (que, conforme preconizara Engels, dura enquanto perdura o “acesso de amor sexual” entre os companheiros). A legislação que se segue vai aos poucos enfraquecendo o vínculo do matrimônio (tornando-o de dissolução cada vez mais célere ao ponto de “poupar o casal do processo de divórcio”) e incentivando “novas formas de família”. Uma vez que a legislação avança lentamente, a jurisprudência trata de dar saltos cada vez maiores em direção ao ideal de Trotsky: aceita-se um número cada vez maior de “modelos” de família, substituindo o modelo tradicional sem destruí-lo diretamente.

Ao mesmo tempo, a legislação pátria passou a minar as relações familiares, intoxicando-as com o veneno da judicialização dos conflitos. A autoridade dos pais sobre os filhos foi enfraquecida e o Estado passou a monopolizar, de direito e de fato, a educação das crianças. Legislações que garantem o acesso amplo e praticamente irrestrito à esterilização se impuseram, tomando o Estado para si a tarefa de distribuir contraceptivos fartamente aos que o desejam. E mesmo o aborto, em nosso país, avança via decisões judiciais apesar da franca resistência do povo brasileiro.

Eis aí todos os ingredientes da receita comunista: divórcio; contracepção; aborto; educação estatal obrigatória das crianças; reconhecimento de formas de família diversas do modelo tradicional. Como já dito, no Brasil segue-se com exatidão tão notável a cartilha comunista que pressupor que tudo não passa de mera coincidência é coisa de idiotas úteis.

Marx e Engels, Lênin e Trotsky ficariam orgulhosos dos brasileiros hodiernos. Já Stálin rir-se-ia de nossa burrice e ficaria feliz ao ver que nós, alegremente, e com ares de superioridade intelectual, vamos minando a família e, com ela, enfraquecendo a tal ponto a sociedade que nos tornaremos, em pouco tempo, incapazes de defender as conquistas civilizacionais de nossos antepassados.

Ao final de tudo, muito embora a maior parte dos brasileiros (talvez mesmo entre os magistrados) abomine o comunismo enquanto sistema econômico, o fato inconcusso é de que são muito poucos os que estariam dispostos a lutar contra todo o patrimônio cultural que os próceres comunistas nos legaram: divórcio, união estável, contraceptivos e outros. A quase totalidade de nós vê nisso tudo antes um avanço a ser celebrado.

Aos que assim pensam, lamento informar, mas, ao menos de coração, voi siete tutti comunisti. Podem ter vergonha da obra intelectual de Marx e de Engels; podem sentir horror ante a figura assustadora de Lênin ou ante a um tanto quanto patética de Trotsky. Mas isso não muda o fato de que os apoiadores de tais “avanços” são ou idiotas úteis ou companheiros de viagem. E, ao cabo de tudo, acabam importando para nosso país exatamente a fraqueza desejada por Stálin.

Com Marx, Engels, Lênin, Trotsky e Stálin como inspiradores secretos dos rumos do direito em nosso país, não há mesmo como a receita da destruição social falhar.

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[1] Disponível In <https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/a-origem-da-familia-da-propriedade-privada-e-do-estado-859>
[2] Disponível in < https://mmjusblog.wordpress.com/2018/06/08/a-receita-comunista-para-a-destruicao-da-familia/>
[3] No original: “The radical outcome of Engels’ analysis is that the family, as that term is presently understood, must go”.
[4] [2] Cf. ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Rio de Janeiro. Ed. Best Bolso, 2.014, E-book
[5] The Soviet Union did make a conscious effort to terminate patriarchy and restructure its most basic institution—the family. After the revolution every possible law was passed to free individuals from the claims of the family: free marriage and divorce, contraception, and abortion on demand.
[6] [4] TROTSKY, Leon. A Revolução Traída. Disponível In<http://lutasocialista.com.br/livros/TROTSKY/TROTSKY,%20Leon.%20A%20revolu%E7%E3o%20tra%EDda.pdf> Acesso em 06 Set 2019.

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