sexta-feira, 5 de outubro de 2018

CONTRA A IDOLATRIA DO ESTADO [Resenha]


O Livro e seu autor

O livro apresenta a seguinte estrutura: Agradecimentos, Introdução e 8 capítulos divididos em 4 seções. Por fim, a Declaração Teológica de Barmen é colocada como apêndice. O conteúdo e o contexto histórico da declaração supracitada são trabalhados dentro dos capítulos, todavia, é publicada na íntegra após o capítulo que conclui a obra. Deixando de lado a introdução e o apêndice, esta resenha - em sua abordagem – contemplará apenas a substância dos capítulos desenvolvidos por Ferreira.

Franklin Ferreira é Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e Mestre em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil. É diretor e professor de teologia sistemática e história da igreja no Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos, São Paulo, e consultor acadêmico de Edições Vida Nova. Autor de vários livros, entre eles Teologia Sistemática (este em coautoria com Alan Myatt), A Igreja Cristã na História, Avivamento para a Igreja, Contra a Idolatria do Estado e Pilares da fé, publicados por Edições Vida Nova, e Servos de Deus e O Credo dos Apóstolos, publicados pela Editora Fiel.


PRIMEIRA PARTE: FUNDAMENTOS BÍBLICOS

A primeira parte deste livro é constituído por dois capítulos (1) O livro de Ester: o povo de Deus sob o risco de extermínio. (2) A Carta de Paulo aos Romanos: o poder do Evangelho e os limites das autoridades estabelecidas. Estes dois livros das Escrituras oferecem importantes subsídios e orientações divinas de como o povo de Deus deve se comportar diante das opressões do mundo tanto física como ideológicas

Capítulo 1 - O livro de Ester: o povo de Deus sob o risco de extermínio.

Neste primeiro capítulo, o autor nos leva ao contexto histórico do livro de Ester. Ferreira faz um resumo da situação de opressão em que o povo da Aliança vivia. O povo vivia sob o signo da angustia provocada pela ameaça do extermínio, liderado pelo perverso Hamã, que desejava aniquilar o povo de Deus. Diante deste quadro de perversidade, Ferreira nos mostra como a atuação política de Ester e a sabedoria de Mardoqueu foram importantes para a mudança do contexto histórico e um exemplo para a atuação política dos cristãos no momento crítico de nossa conjuntura sociopolítica.  E nesta situação, esse capítulo nos oferece importantes lições:

(1) Confiança na Providência de Deus – A exortação de Mardoqueu a Ester demonstra que ambos estavam cônscios da providência divina (4.14);

(2) A espiritualidade fervorosa de Ester, manifesta uma atitude disciplinada e centrada no Deus vivo (4.16). Humildade ao suplicar o sustento e a comunhão de outras pessoas. Confiança em apresentar-se diante do rei de forma inusitada e correndo risco de vida (5.1-8).

(3) A Soberana providência de Deus que escreve e determina a história do seu povo, providenciou o livramento dos judeus (8.1-17), o cumprimento do livramento (9.1-15) e mostra o apogeu da história.

Quais foram os resultados da atuação de Ester?
(1) Deus mudou a história como havia sido planejada pelos homens maus e abençoou seu povo (9.25; 10.2)
(2) Tal libertação trouxe alegria ao povo, que outrora vivia na escuridão da angústia (9.19)
(3) Surgiu uma sociedade marcada por alegria, partilha e justiça (9.19,22)
(4) Deus transformou um símbolo do mal em símbolo de sua providência, para ser festejado para sempre (9.26)
(5) Deus exaltou seus servos (10.3)

Na conclusão deste capítulo, Ferreira recomenda para àqueles que estão “servindo nos palácios hoje”.
(1) O cristão que pretende servir na esfera pública deve ter uma vida moldada pelo conhecimento da Escritura e firmada na prática da oração.
(2) O político cristão deve ter capacidade e coragem para criticar a cultura, questionando suas motivações, mensagens e propostas.
(3) O político cristão deve procurar cercar-se de líderes que reúnam as qualidades de servo, encorajador e visionário, assim como Mardoqueu.
(4) O político cristão deve trabalhar em prol da mobilização da população visando a reivindicação justificadas, especialmente aquelas que promovam a valorização da vida.
(5) Os cristãos que almejam servir na esfera pública devem trabalhar para moldar a opinião pública, com o objetivo de aumentar o alcance e a eficácia da cosmovisão cristã.

Capítulo 2 - A Carta de Paulo aos Romanos: o poder do Evangelho e os limites das autoridades estabelecidas.

Para melhor entender este capítulo, estabeleci dois pontos: 

(1) Poder - O que é “o poder” de acordo com a interpretação do apóstolo Paulo. Paulo instrui a igreja que o termo “poder”, em nenhum momento se refere as autoridades governamentais do império romano. “Lendo com atenção a Carta aos Romanos, percebemos que Paulo nunca usa a palavra “poder” em referência à estrutura imperial e às autoridades constituídas. Essa palavra é empregada exclusivamente em relação a Jesus Cristo e à mensagem revelada desse único Salvador” [p.67]. Apenas Cristo é o detentor do poder e, por isso, toda e qualquer autoridade política está debaixo do seu senhorio. Para Ferreira, embasado em outros comentaristas, o conteúdo da epístola paulina traz em seu bojo uma teologia subversiva, negando aos imperadores de Roma a deificação. A mensagem da carta é, em resumo, um encorajamento para que os crentes romanos mantenham a sua devoção exclusivamente à pessoa de Cristo e sejam leais ao evangelho.

(2) O Cristão e as autoridades – “Um aspecto importante a destacar, antes de analisarmos toda a passagem, é que Paulo não usa os títulos honoríficos tradicionalmente empregados para as figuras políticas do mundo romano. Ele não diz: “Todo homem esteja sujeito aos imperadores, cônsules, senadores e assim por diante”, mas usa uma palavra genérica, “autoridade”, empregada no plural. Assim, essa afirmação não se limita às autoridades superiores, como imperadores ou reis, mas abrange todos os tipos de autoridades. [p.72]

A parte didática deste livro acerca desse assunto é muito importante: Como saber se uma autoridade é legítima, a luz de Romanos 13? Paulo estabelece e define a autoridade ideal: ela é serva de Deus para o bem dos súditos; recompensa o bem que é feito pelos súditos; é agente de punição contra o mal – e, por cumprir tais prerrogativas, os súditos cristãos se sujeitam à autoridade e pagam tributos e impostos. Essa autoridade é legitima, então, quando afirma e recompensa aqueles que fazem o bem, servindo-os e protegendo-os contra os maus. Portanto, como sabemos se um governo ou autoridade é legitima? Será legítima se premia aquele que faz o bem e, em contrapartida, pune os facínoras criminosos. Ferreira entende que, quando uma autoridade se desvia desse alvo, perde a legitimidade e deixa de ser autoridade constituída por Deus. Nesse momento, então, o cristão pode confrontá-la, exortá-la e, com outras autoridades ligadas ao governo, poderá retirar o governante corrupto, como já aconteceu aqui no Brasil (no caso do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo, em 1992). Portanto, a passagem de Romanos 13.1-7 não pode ser usada, sob hipótese alguma, para justificar passividade ou omissão diante de uma autoridade que trai seu chamado.

Qual a fundamentação teológica para tal interpretação?
(1) A mensagem do evangelho tem implicações para todas as esferas da criação, incluindo as questões políticas – à medida que Deus criou o set humano e o dotou com a capacidade de se organizar e estabelecer alguns mecanismos de organização.
(2) O evangelho ensina que igreja e Estado são esferas distintas, igualmente estabelecidas por deus, mas com tarefas diferenciadas na criação. Como já vimos, o Estado recompensa e pune, a igreja anuncia a redenção.
(3) Precisamos lembrar que Deus instituiu as autoridades, mas delimita sua esfera de influência. Há limites para o Estado que são estabelecidos por Deus na criação.
(4) Devem-se respeitar as autoridades, mas não quando se tornam a “besta que subiu do mar” (Ap 13.1).
(5) O evangelho está cima das ideologias políticas e não pode, sob hipótese alguma, ser confundido com estas. Como diz a Declaração Teológica de Barmen, subscrita por cristãos reformados e luteranos que resistiram ao nazismo pouco antes da Segunda Guerra Mundial: “Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel-prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes”.


SEGUNDA PARTE: QUESTÕES CONCEITUAIS

Como na primeira parte temos dois capítulos (3) Totalitarismo, o culto do Estado e a liberdade do Evangelho. (4) Espectro político, mentes cativas e idolatria.

Capítulo 3 - Totalitarismo, o culto do Estado e a liberdade do Evangelho.

Neste capítulo, o autor assenta as bases do totalitarismo. Primeiramente apresenta dois modelos políticos: 

(1) O estatismo – e assim conceitua: O estatismo é o cerne da esquerda; e esse conceito é mais amplo que a mera ausência de eleições livres e democracia. O estatismo preconiza a intervenção e a atuação intensas do Estado nas várias esferas da sociedade e se impõe sobre esta sem considerar se as pessoas não aprovam sua estrutura ou não votarem a favor dela. Tendo em mente o fato de que Marx e Engels identificaram diferentes tipos de socialismo, pode-se concluir que anto o comunismo quanto o nazismo são socialismo, sendo o primeiro um socialismo de classe e internacional e o segundo um socialismo étnico e nacionalista.

(2) As liberdades individuais – é o segundo modelo político que resume os ideários político associados à posição direitista, em que se privilegiam a liberdade individual e econômica e a garantia dos direitos individuais, sendo os limites o respeito à vida, à propriedade e à liberdade dos demais. Ferreira, chega afirmar que dos 35 partidos existentes, somente o Partido Novo, de fato, pertence a este último modelo.

O tema é seguinte, o autor trata com esmero dos dois principais regimes totalitários: comunismo e nazismo e suas semelhanças. 

Os nazistas viam-se como legítimos socialistas, desprezando a aristocracia, o livre mercado, o capitalismo e a democracia liberal, abolindo a liberdade de imprensa, praticando a censura e apregoando uma teoria política com suposta fundamentação científica. Para apresentar outras semelhanças, entre o nazismo e comunismo, Ferreira faz referências ao exame de fontes primárias (como os Arquivos Públicos da Antiga União Soviética) e acrescenta: ódio a burguesia, a rejeição de toda a estrutura do Estado liberal e representação partidária; a coletivização que almeja suprimir a individualidade, a propaganda totalitária, o culto do líder pelo uso da imagística religiosa, o direito de extirpar por meio da violência política o “princípio maligno” que impede a chegada da sociedade perfeita, o uso dos campos de concentração, que eram lugares de “terror absoluto”, a criação do “novo homem” por meio de reeducação ideológica, o militarismo, o nacionalismo, o neopaganismo e o antissemitismo. E conclui: “O comunismo é um socialismo de classe e internacional, ao passo que o nazismo é um socialismo étnico e nacionalista” (p. 103). Ao longo do capítulo, Franklin Ferreira se preocupa em justificar o esquerdismo do Nazismo, dando-nos amplas indicações sobre o totalitarismo (p. 113): Arthur Koestler, George Orwell, Aleksandr Soljenitsyn e Vaclav Havel.

Para mim, o auge deste capítulo é a seção “os teólogos cristãos em relação ao nazismo e ao comunismo”, aonde, de forma resumida, mas com uma grande riqueza de detalhes, o autor relata o esforço de homens valorosos como Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer, Emil Brunner entre outros para proteger a igreja evangélica alemã das intenções de Adolf Hitler. Uma resistência política e teológica ao mesmo tempo, e que resultou no exílio de Barth e na morte de Bonhoeffer, enforcado por ordem direta de Hitler em 09 de abril de 1945.

Para concluir este capítulo, Ferreira afirma que mesmo em suas representações ideais, nenhuma corrente política, de esquerda ou de direita, liberal ou antiliberal, pode ser associada à posição bíblica. E recomenda: O socialismo, visão do mundo rival do cristianismo, exerceu e continua a exercer forte sedução em milhares de cristãos, conseguindo até mesmo perturbar a pureza da fé cristã. E só cresceu “graças a uma maciça apostasia dos cristãos”. No entanto, como é possível aprender com Barth, a mensagem do Evangelho está acima de todas as ideologias ou possibilidades do espectro político, as quais, por sinal, algumas vezes não passam de pobres perversões e caricaturas da mensagem cristã. [p.121,123]

Capítulo 4 - Espectro político, mentes cativas e idolatria.

Neste capítulo, temos conceitos exatos que distingue direita de esquerda. No Brasil, convencionou-se tratar como “direita” o regime militar, que tomou o poder no país entre 1964 e 1985, e como “esquerda” os grupos que se opuseram às Forças Armadas e almejavam um regime socialista. 

(1) A esquerda pode ser definida como aquele modelo do espectro político e que há pouca ou nenhuma liberdade pessoal e econômica, em que o Estado ou partido ganha uma dimensão transcendente, agindo para estender seu domínio sobre todas as esferas da sociedade. A esquerda caracteriza-se pela crença na igualdade de poder. As diferenças econômicas seriam a manifestação de uma distribuição injusta de poder social e político na sociedade. De modo geral, a esquerda postula que a liberdade deve ser sacrificada em nome de igualdade. A liberdade está diretamente relacionada à liberdade econômica ou iniciativa dos indivíduos e propriedade privada.

(2) A direita privilegia a liberdade pessoal e econômica e a garantia dos direitos individuais, sendo os limites a respeito à vida, à propriedade e à liberdade dos demais. A direita, sobretudo o liberalismo clássico, enfatiza que a igualdade se encontra no estado de liberdade que os indivíduos têm de agir, empreender e seguir seus objetivos. Para este, a diferença material ou de poder é o resultado do sucesso de cada indivíduo e não sua causa.

No que diz respeito a importância do Estado, profissionais políticos e ativistas ligados a partidos de esquerda e extrema esquerda como PT, PSOL e PSTU defendem que o país precisa de mais Estado. Contudo, a direita através do “liberalismo” preconiza a necessidade de menos Estado, com seu consequente enxugamento e maior eficácia; a redução da interferência do Estado na economia ao mínimo necessário; a defesa da propriedade privada; a privatização das empresas estatais e de serviços públicos que possam se oferecidos pela iniciativa privada; o livre mercado; e a redução das despesas do governo, com a consequente redução da carga tributária. Além disso, o liberalismo afirma o respeito ao império da lei, as liberdades individuais, à iniciativa privada e às diversas esferas que compõem a sociedade, além de defender o fomento às estruturas mediadoras. 

O que se convencionou chamar de “extrema direita” (regime militares, fascismo, nazismo) na verdade são expressões do autoritarismo ou da extrema esquerda. Por esta razão, a esquerda nunca é comparada à direita. Com isso, a armadilha do discurso da esquerda é comparar uma ideia “perfeita” com a realidade, como se isso fosse prova da superioridade da esquerdista. Contudo, a honestidade intelectual exige que se compare o socialismo real com o capitalismo real. Nesse caso, fica escancarada a inferioridade da esquerda. 

Ferreira, conclui: Os cristãos, que buscam confessar sua fé em submissão às Escrituras, creem que há um só Senhor e Rei, o único Deus todo-poderoso. Eles são súditos do “bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores” (1 Tm 6.15). E esperam a “pátria [que] está nos céus”, de onde aguardam “o Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Fp 3.20), o único que traz o juízo e a salvação para toda sociedade. Os cristãos não dividem sua lealdade com um Estado, partido ou governo que requer fidelidade religiosa, pois eles sabem que tal lealdade é idolatria, uma quebra do primeiro mandamento. Eles têm liberdade – que mesmo os melhores ímpios não têm – de criticar qualquer sistema político, qualquer ideologia, pois o fazem com base na crença de que somente o Senhor Deus tem o direito de comandar todas as esferas da sociedade. Nenhum governo ou partido recebeu esse direito. E os cristãos também creem que governos e partidos que anseiam ser totais deixam de ser a “autoridade ordenada por Deus” (Rm 13.1-7) para se tornar “uma besta” que recebeu “seu trono e grande a autoridade” do dragão (Ap 13.1-18). E diante dela, a resposta cristã é: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5.29). [p.125-144].


TERCEIRA PARTE: DIREÇÕES TEOLÓGICAS

A terceira parte deste livro é constituído por dois capítulos (5) A Igreja Confessante e a “disputa pela igreja” na Alemanha (1933-1937). (6) A relação entre a igreja e o Estado na perspectiva reformada.

Capítulo 5 - A Igreja Confessante e a “disputa pela igreja” na Alemanha (1933-1937).

O capítulo 5, que dá início a terceira parte do livro, é uma recapitulação da “disputa pela igreja”, como ficou conhecido o embate entre os líderes da Igreja Alemã, que estavam cedendo aos postulados nazistas e a tutela estatal dentro das igrejas, e os teólogos e pastores que resistiram a esta interferência e fundaram o que veio a ser chamado de Igreja Confessante. Dois nomes se destacam entre os que resistiram, são eles o de Barth e o de Bonhoeffer, o primeiro exilado e o segundo sentenciado a morte. 

Ferreira conclui este capítulo dizendo que o alvo deste capítulo não é apenas relembrar a história da Igreja Confessante, mas principalmente aprender com ela. Como avaliar a “disputa pela igreja” especialmente no período de 1933 a 1937, e o que aprender com ela?

(1) É necessário afirmar que a mudança da mensagem evangélica operada pelos cristãos alemães foi uma heresia que escancarou as portas da Alemanha para o paganismo. Este movimento herético foi corretamente rejeitado pela Igreja Confessante, que se percebia a única igreja verdadeira na Alemanha nos anos críticos de 1933 a 1945.

(2) Por que a teologia e o interesse por Barth e Bonhoeffer, que testemunharam do evangelho com tanta coragem na “disputa pela Igreja”, entraram em declínio ou foram reinterpretados depois da Segunda Guerra Mundial? Nossa hipótese é que tal transitoriedade reside justamente na falta de uma firme base epistemológica, a revelação de deus nas Escrituras infalíveis, dadas objetivamente para todos os homens e mulheres. Essa incoerência já está presente na primeira tese da Declaração Teológica de Barmen, na qual há uma distinção entre Cristo e as Escrituras: “Jesus Cristo, tal como nos atestam as Escrituras, é a única Palavra de Deus” (8.11).

(3) Um dado constrangedor que chama a atenção na “disputa pela igreja” é a falta de uma condenação mais vigorosa do antissemitismo – sendo uma das poucas exceções a postura e o discurso de Bonhoeffer sobre “A igreja e a questão judaica”. O antissemitismo deve ser combatido implacavelmente.

(4) Os fatos ligados à “disputa pela igreja” são exemplo mais evidente de uma identificação precipitada dos acontecimentos históricos com a vontade de Deus, por meio do endosso dos “cristãos alemães” às ações de Hitler, considerando-as uma revelação de Deus na história.

(5) Numa situação limite, como a vivida pela Igreja Confessante, não importa uma aparente unidade da igreja, mas o cerne da fé evangélica. Dois modelos eclesiásticos foram testados nesse período. E foi a partir da tradição reformada que nasceu não apenas um movimento de contestação, mas uma igreja verdadeira. A força profética de alguns, e de Barth em particular, fez compreender às comunidades confessionais que, além das estruturas e das instituições, encontravam-se verdade evangélicas que era proibido calar ou cochilar.

(6) A história do confronto da igreja com o nazismo ensina mais uma vez que Deus purifica sua igreja por meio da perseguição. Por meio do retorno às Escrituras, às confissões da Reforma e à pregação bíblica, os evangélicos alemães aprenderam a resistir à falsa religião e a um governo demoníaco. [p.187-193]

Capítulo 6 - A relação entre a igreja e o Estado na perspectiva reformada.

O capítulo 6 temos uma perspectiva reformada da Soberania das Esferas, conceito desenvolvido pelo teólogo, jornalista e político holandês Abraham Kuyper, como temos uma fundamentação bíblica de como Deus estabelece na criação várias instituições para ordem social, cada qual com sua esfera de atividade e missão e com uma responsabilidade diante dele.

A visão reformada da sociedade não é centrada no indivíduo nem na instituição, mas na soberania de Deus sobre as esferas da Criação, nas quais diferentes instituições se acham debaixo do reinado de Deus. Essa posição é uma afirmação não hierárquica da sociedade civil, à medida que (1) a soberania derradeira pertence somente a Deus; (2) toda soberania terrena é subsidiária da soberania de Deus e (3) não há nenhum foco último (ou penúltimo) de soberania neste mundo do qual todas as demais soberanias sejam derivadas. 

Abraham Kuyper afirma que a soberania de Deus “é primordial [e] irradia na humanidade numa tríplice soberania, a saber: (1) a Soberania no Estado, (2) a Soberania na Sociedade, e (3) a Soberania na Igreja”. O estado é a expressão da natureza social do ser humano, de sua disposição gregária, que antecipa os domínios econômicos, estético, jurídico e ético. A família, o indivíduo e a igreja são esferas independentes do Estado, pois existem sem este, extraindo sua autoridade somente de Deus. O papel do estado é de mediador, intervindo quando as diferentes esferas entram em conflito entre si ou para defender os fracos contra o abuso dos demais. Desse modo, a convicção que embassa essa posição foi assim expressa por Kuyper: “Na extensão total da vida humana não há nenhum centímetro quadrado acerca do qual Cristo, que é o único soberano não declare: Isto é meu”.

A seguir, nos é oferecido um desenvolvimento dessa posição por meio de algumas premissas que podem guiar o entendimento evangélico da relação entre o cristão e a política.

(1) Há uma distinção entre Igreja e Estado lembrando que toda autoridade procede de Deus. As tarefas da Igreja e do Estado são de dois tipos e são distintas, não podendo ser confundidas. Deus instituiu o governo civil para nosso benefício, a fim de refrear o mal e promover o bem (Rm 13.1-7; 1 Pe 2.13-17), e deve haver distinção entre aquilo que é governado pela Igreja e aquilo que está sob autoridade do governo civil (Mt 22.21). 

(2) Rejeita-se o conceito de soberania absoluta do Estado e o conceito de soberania absoluta do povo. Para a fé cristã, o poder reside em Deus e em Cristo, que é o Senhor de todo poder e autoridade (Ef 1.21-22), “soberano dos reis da terra”, “Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Ap 1.5; 19.16), comandando todas as esferas sociais. Somente Deus detém o poder absoluto: “Porque o Senhor é o nosso juiz; o Senhor é o nosso legislador; o Senhor é o nosso rei; ele nos salvará” (Is 33.22).

(3) Deus delega autoridade tanto ao governante quanto as pessoas. Ao ocupar um cargo de autoridade, nenhum ser humano tem poder sobre o outro, a não ser quando essa capacidade for delegada por Deus. Mas essa autoridade é relativa e revogável. Por isso, os cristãos devem se opor a todo sistema político e totalitário. Mas do que um direito, isso é um dever (Ex 1.17,21; Dn 3.18; 6.10; Et 4.16; Mt 2.8,12; At 4.18,20; 5.29).

(4) Nenhuma ideologia é absoluta nem pode ser confundida com o evangelho. Com acerto, a Declaração Teológica de Barmem afirma: “Rejeitamos a falsa doutrina de que à igreja seria permitido substituir a forma de sua mensagem e organização, a seu bel-prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes”. Sempre que cristãos identificam determinadas ideologia com o reino de Deus ou com a mensagem bíblica, essa mensagem não apenas foi distorcida, mas também acabou sendo obliterada.

(5) O realismo cristão ressalta que a corrupção na política tem origem sobretudo no coração dos seres humanos. Se a doutrina da Criação afirma a dignidade humana, o ensino bíblico sobre a Queda afirma sua corrupção. Os pecados individuais tornam-se pecados estruturais, como idolatria, egoísmo, violência, despotismo, corrupção, e acabam por afetar as estruturas do poder constituído. Por isso, a igreja cristã “prega uma conversão interior dos governantes e dos governados a Deus”, crendo que, por meio do arrependimento e quebrantamento pessoal, as estruturas serão limpas de iniquidades.

(6) Por causa do pecado na sociedade, a república se torna não apenas o melhor sistema, mas o mais viável. A forma de governo que mais se aproxima do modelo bíblico é a república, na qual a não é governada pela lei constitucional e administrada por representantes eleitos pelo povo. Uma vez que somente Deus concentra em si todo o poder (Is 33.22), deve haver divisão e a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, de modo que nenhum governo ou ramo do governo monopolize o poder. Assim, a república apresenta-se como o melhor sistema, pois é a salvaguarda das liberdades individuais, “designada para fragmentar o poder político, de modo que ele não possa ameaçar as vidas, liberdades e propriedades. [p.197-211]


QUARTA PARTE: APLICAÇÕES PRÁTICAS

A quarta e última parte deste livro como todos os demais, também é constituído por dois capítulos (7) “Era a voz”: a violência, a ideologização do debate e uma oportunidade para igreja. (8) Uma agenda para o voto consciente.

Capítulo 7 - “Era a voz”: a violência, a ideologização do debate e uma oportunidade para igreja.

Neste capítulo lemos sobre a ineficiência estatal, sobretudo do governo petista em zelar pela segurança dos cidadãos brasileiros. Ferreira nos mostra números alarmantes do aumento da violência. Ele critica os altos impostos que não são revertidos para a segurança e nem para o deleite da sociedade. Outra questão bastante criticada é a ideologização promovida pela esquerda no debate sobre a violência. Ao dizer que o bandido é vítima da sociedade, esta ideologia vitimiza o criminoso ao invés de puni-lo. Ferreira expõe a deficiência do sistema prisional brasileiro e a instrumentalização dos Direitos Humanos pela inteligência a serviço do Estado.

Diante desse quadro, deve-se perguntar: “Em casos como este, os cristãos devem agir individualmente ou por meio da igreja local? Qual é exatamente o papel da igreja diante da violência?”

À igreja cristã é exigido dar uma palavra sobre a violência – especialmente quando se leva em conta quanto as Escrituras tratam desse pecado: “Assim diz o Senhor: Exercei o direito e a justiça, e livrai da mão do opressor aquele que está sendo explorado por ele. Não façais nenhum mal e nenhuma violência ao estrangeiro, nem ao órfão, nem a viúva; não derrameis sangue inocente neste lugar” (Jr 22.3). Mas a igreja só conseguirá fazer isso com fidelidade à palavra de Deus se ela voltar a ser igreja cristã – e pastores precisam voltar a ser pastores, edificando o corpo de Cristo (cf Ef 4.11-16), para que este de fato expanda o reino de Deus neste país.

A igreja cristã, se quer ser cristã, precisa reintroduzir convicções bíblicas, como o pecado original e pecado pessoal, no discurso público, ao mesmo tempo que fala do pecado nas estruturas sociais e políticas, assim como da responsabilidade moral que toda pessoa criada a imagem de Deus (cf Gn 1.26,27) tem diante dele e de seus semelhantes.

As igrejas cristãs devem, em cultos públicos, confessar seus pecados e iniquidades, assim com as transgressões cometidas no país, suplicando pelo derramamento do Espírito Santo sobre o corpo de Cristo. De acordo com as Escrituras, Deus tem prazer em atender às orações de seu povo, mesmo aquelas em que se pede mudança de rumos de um país ou região (cf 2 Cr 7.13,14).

Por fim, diante de Deus, o Juiz Justo, deve-se reintroduzir o ensino de que haverá descanso e conforto eterno para aqueles que estão em Cristo pela fé somente e punição eterna para aqueles que permanecem em seus pecados, entre os quais o uso da violência: “Quanto porém, [...] aos assassinos, [...] a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte”. [p.234-241]

Capítulo 8 - Uma agenda para o voto consciente.

O livro é finalizado com dez pontos elencados a respeito de uma agenda cristã para um voto consciente.

1. Conheça bem o candidato que receberá o seu voto. Pesquise seu histórico pessoal, seus feitos, seus valores e suas propostas. Pesquise também suas promessas durante a campanha eleitoral, analisando se são plausíveis. Se ele se identifica como cristão, é importante saber a que igreja ou comunidade ele está filiado e se ele a frequenta regularmente, buscando conselho e prestando-lhe contas. 

2. Também considere se os projetos do candidato estão de acordo com os do partido ao qual ele está filiado, pois ao votar em um candidato você ao mesmo tempo vota num partido, ajudando a eleger candidatos do mesmo partido. Por isso, é preciso conhecer os programas e a filosofia do partido. No caso de candidatos evangélicos, é bom averiguar se estes e seus partidos não somente afirmam, mas estão comprometidos com a separação entre a Igreja e o Estado, lembrando que toda autoridade procede de Deus.

3. Lute contra todas as formas de corrupção, apoiando mecanismos de controle do uso do dinheiro público e das prioridades do governo; colaborando para que projetos tais como o Ficha Limpa, que tratem sobre a ética nas eleições, sejam conhecidos e aplicados; denunciando o uso da máquina administrativa federal, estadual ou municipal para favorecer determinados candidatos; em conformidade com a lei N.º 9.840/99, denunciando a compra de votos através de dinheiro, programas assistenciais ou promessas de vantagens pessoais, assim como quem obrigue os eleitores a votar em determinados candidatos, seja por meio de ameaças, seja através de pressão religiosa.

4. Apoie propostas que defendam a vida e a dignidade do ser humano em qualquer circunstância. Para a fé cristã, a vida humana é dom de Deus, desde a concepção no ventre materno até ao dia de sua morte. Portanto, proteger a vida inclui combater o aborto e a eutanásia; reprimir a violência por meio de políticas de segurança pública realistas; promover uma ética do trabalho que enfatize virtudes bíblicas, tais como honestidade, pontualidade, diligência, obediência ao quarto mandamento (“seis dias trabalharás”), obediência ao oitavo mandamento (“não furtarás”) e obediência ao décimo mandamento (“não cobiçarás”); defender o direito à propriedade privada como direito fundamental (cf. Êx 20.15, 17; 1Rs 21.1-29).

5. Verifique qual a proposta educacional do candidato, analisando se ele defende a qualidade e a liberdade do ensino, inclusive no âmbito religioso, promovendo uma escola digna e de qualidade. Confira também se ele promove as liberdades individuais, por meio do estabelecimento de normas gerais de conduta que redundem em liberdade de expressão, associação e de imprensa.

6. Rejeite candidatos e partidos com ênfases estatizantes e intervencionistas nas esferas familiar, eclesiástica, artística, trabalhista e escolar, que concebam um ambiente onde se tem pouca ou nenhuma liberdade pessoal e econômica. Para a fé cristã, a família, a igreja, o trabalho e a escola são esferas independentes do Estado, pois existem sem este, derivando sua autoridade somente de Deus. Logo, o papel do Estado é mediador, intervindo quando as diferentes esferas entram em conflito entre si ou para defender os fracos contra o abuso dos demais. Portanto, os cristãos devem não somente não apoiar, mas também resistir a um sistema político autoritário ou totalitário (cf. At 5.29; Ap 13.1-18).

7. Repudie ministros, igrejas ou denominações que tentem identificar determinada ideologia com o reino de Deus ou com a mensagem bíblica. Pois, como afirma a Declaração de Barmen [8.18], “rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel-prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes”. A igreja, ao proclamar com fidelidade a Palavra de Deus, influencia o Estado, de modo que suas leis se conformem com a vontade de Deus, decorrendo daí consequências políticas de tal fidelidade ao chamado primário da comunidade cristã.

8. Apoie candidatos comprometidos com propostas e leis que sejam derivadas da lei de Deus, como revelada nas Escrituras, pois esta é a fonte absoluta e final da ética pessoal, eclesiástica e social. Há que se ter compromisso por parte do candidato com o contrato social, que é um acordo entre os membros de uma sociedade pelo qual reconhecem a autoridade sobre todos de um conjunto de regras, a Constituição, que limita o poder, organiza o Estado e define direitos e garantias fundamentais. 

9. Valorize candidatos e partidos comprometidos com o modelo republicano de governo, no qual a nação é governada pela lei constitucional e administrada por representantes eleitos pelo povo, assim como a divisão e a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, de modo que nenhum governo ou ramo do governo monopolize o poder. Assim também valorize aqueles que respeitem a alternância do poder civil, que impede que um partido ou autoridade se perpetue no poder, assim como a defesa do pluralismo político e partidário. 

10. Apoie candidatos que enfatizem as funções primordiais do Estado, onde os governantes têm a obrigação de zelar pela segurança do povo, pela qual pagamos tributos (cf. Rm 13.1-7), assim como ressaltem a limitação do poder do Estado, pois a partir das Escrituras, entende-se que o governo civil não tem autoridade para cobrar impostos exorbitantes, redistribuir propriedades ou renda, criar zonas francas ou confiscar depósitos bancários.

Pedimos que o Cristo Rei, o único e absoluto soberano Senhor, nos sustente e nos conduza sempre em nossas opções políticas. Façamos destas eleições um gesto de amor a este país e a nossos irmãos e irmãs, para maior glória de Deus.


RECOMENDO

Contra a Idolatria do Estado é leitura que deveria ser cobrada a todo pastor. O livro deveria ser endossado nos seminários, pois, temos uma carência no segmento cristão evangélico brasileiro referente a uma visão política que esteja embasada numa cosmovisão escriturística. A obra é bíblica, mas não apenas isso, ela é riquíssima em matéria de referencial teórico. Ferreira se apoia em diversos autores e fontes, colocando a teologia no cerne da esfera pública. São 19 páginas de bibliografia, demonstrando a profundidade da pesquisa realizada pelo autor. Lembrando que no final do livro tem um apêndice contendo a declaração teológica de Barmen.

O livro está disponível na Editora
Edições Vida Nova
https://vidanova.com.br/744-contra-idolatria-estado.html

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