sexta-feira, 19 de abril de 2019

O DIA DO SENHOR [Resenha]


PIPA, Joseph A. O Dia do Senhor. São Paulo, SP: Editora Os Puritanos, 2000.


O LIVRO E O SEU AUTOR

Este livro pretende ser um exame exegético, doutrinário e histórico deste do sábado como instituição cristã. Além disso, convencido de sua beleza e utilidade pública, o autor oferece quatro capítulos a respeito do uso proveitoso desse dia.

O autor escreve o livro com uma apresentação popular do Sábado Cristão (domingo). Embora no corpo do livro esteja interagindo com os vários argumentos e objeções que existem contra a ideia do Sábado Cristão, o autor faz uso das notas de rodapé para apresentar informações mais detalhadas sobre as várias posições e autores, para os leitores que desejam fazer um estudo mais crítico.

Joseph Pipa é mestre em teologia pelo Seminário Teológico Reformado, doutor em teologia pelo Seminário Teológico de Westminster, ex-coordenador do curso de doutorado em ministério no Seminário Teológico de Westminster, e presidente do Seminário Teológico Presbiteriano de Greenville. Conheci pessoalmente o Rev. Joseph Pipa na Igreja Presbiteriana do Alto Branco em Campina Grande por ocasião da 3ª Conferencia Reformada Os Puritanos.

Confesso que esse foi um dos livros mais desafiadores para mim, não no quesito linguagem - pois sua linguagem é de fácil entendimento - mas pelo tema que aborda. O autor trata da importância dos cristãos resgatarem a essência do Dia do Senhor - isto é, o domingo. Pipa descorre sobre a mudança que houve do sábado judaico para o domingo cristão e para isso fornece abundantes provas bíblicas e históricas de que esse sempre foi o padrão bíblico das igrejas. Para fazer seus leitores entenderem melhor o que era e o que se tornou - nos dias de hoje - o dia do Senhor (o domingo), ele usa a analogia de um parque criado por um rei e feito para que o povo pudesse usufruir, porém o rei ausentou-se e ninguém mais cuidou do parque. Em seguida, outros nobres vieram e restauraram o parque, mas não permitiram o povo usufruísse dele, cercando-o. O autor então nos leva a "reabrirmos" o parque e fazê-lo ter seu propósito original - que é descansar e aproveitar o dia do Senhor.


O DIA DE FEIRA DA ALMA[1] (Êxodo 20.9-11)

Temos olhado o sábado[2] usando a metáfora de um parque no qual nos encontramos com Deus. Uma outra imagem para o sábado, uma figura comum entre os puritanos, era “o dia de feira da alma”.

Na Inglaterra puritana o dia de feira era o principal dia de negócios e atividade social. Fazendeiros, artesãos, mercadores e donas de casa vinham dos vilarejos e arredores para comprar e vender. Na crença de que Deus destinou o dia do Senhor para transações especialmente importantes com Deus, os puritanos chamaram o sábado de “o dia de feira da alma”.[3]

Até agora procuramos demonstrar que a observância do sábado, longe de ser um cativeiro legalista, é um glorioso privilégio que traz em si maravilhosas promessas. Além disso, vimos no capítulo anterior que Deus planejou o sábado como uma perpétua obrigação moral para todos os homens e mulheres em todo os recantos.


LEMBRANDO O SÁBADO.

Tendo isso em mente, precisamos investigar qual o papel do Quarto Mandamento ao regular a observância do sábado.[4] O Quarto Mandamento, alicerçado sobre a ordem da criação do sábado, regula como deve ser estruturado tal dia, da mesma forma que o Sétimo Mandamento estrutura a ordenança da criação do casamento e o Oitavo estrutura a ordenação da criação do trabalho.

Ao se referirem ao sábado como “o dia de feira da alma”, os puritanos nos lembram que Deus nos deu esse dia acima de todos os outros para conduzirmos os negócios espirituais. O propósito do Quarto Mandamento é nos libertar de nossos negócios diários, de forma que possamos fazer negócio com Ele no “dia de feira da alma”.

O Quarto Mandamento define o propósito do sábado ao dizer “Lembra-te do dia de sábado para o santificar”. A palavra “lembrar” tem um duplo sentido. Em primeiro lugar, Deus está dizendo: “não esqueça nem negligencie o sábado”. Frequentemente os escritores do Velho Testamento usam esta palavra dessa forma. Por exemplo, em Êxodo 13:3 Moisés alerta o povo para que não esqueçam o ato histórico da redenção deles, o Êxodo: “Lembrai-vos deste mesmo dia, em que saístes do Egito, da casa da servidão; pois com mão forte o Senhor vos tirou de lá; portanto não comereis pão levedado”. Cristo, da mesma forma, usa um termo semelhante a “lembrar”, na instituição da Ceia do Senhor: “fazei isto em memória de mim” (Lucas 22:19).

A convocação para lembrar do sábado ensina que o sábado como uma instituição já havia sido estabelecido. Deus o santificou na criação, e no Quarto Mandamento Ele nos exorta a não esquecermos aquele fato.

Na Bíblia, entretanto, o termo “lembrar” significa mais do que não esquecer. Ele também significa observar e celebrar. Quando alguém pergunta: “lembrou-se de seu aniversário?”, não está apenas perguntando se você se lembrou da data, mas se você fez alguma coisa especial para comemorar a ocasião. Nós nos “lembramos” de ocasiões especiais presenteando, saindo para jantar ou dando uma festa. Quando Deus nos ordena “lembra-te do dia de sábado”, Ele nos está ordenando a observá-lo de uma forma especial; a comemorá-lo.

Tal conceito de “lembrar” está ilustrado em Êxodo 12:14: “Este dia [referindo-se à Páscoa] vos será por memorial”. O substantivo “memorial” vem da mesma raiz do verbo “lembrar”. Como seria este memorial? “E o celebrareis como solenidade ao SENHOR; nas vossas gerações o celebrareis por estatuto perpétuo”. Não era para que lembrassem apenas da ocasião histórica, era também para celebrarem ao comemorarem a Páscoa (cf. Ex. 13:3).

O sábado é “lembrado” ao ser observado conforme o preceito de Deus. É por isso que Moisés, ao repetir os Dez Mandamentos quarenta anos depois, usa a palavra “guarda” em vez de “lembra-te”. “Guarda o dia de sábado para o santificar... pelo que o SENHOR, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de sábado” (Dt. 5: 12-15).

Quando se compreende corretamente o significado de “lembrar”, reconhece-se que este dia nunca foi um mero dia de descanso ocioso. Alguns sugerem que o único propósito do Quarto Mandamento era proporcionar descanso físico para Israel. Assim como o descanso de Deus nunca foi, sem dúvida, um descanso de inatividade, assim também o descanso ordenado pelo Quarto Mandamento não é um descanso de inatividade, mas de santa comemoração. De acordo com Levítico 23:2 e 3, o descanso do sábado está associado à adoração corporativa: “Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: As festas fixas do SENHOR, que proclamareis, serão santas convocações; são estas as minhas festas. Seis dias trabalhareis, mas o sétimo dia será o sábado do descanso solene, santa convocação; nenhuma obra fareis; é sábado do SENHOR em todas as vossas moradas”.

Uma santa convocação era um tempo para a adoração corporativa. Por isso, parte do propósito do descanso do sábado era observar o dia participando na adoração pública. Assim, portanto, o termo “lembrar” ensina que o sábado é um dia para santas negociações, um “dia de feira para a alma”. Lembramo-nos do dia de sábado santificando-o.


UM DIA ESPECIAL PARA DEUS.

Deus alicerça esta exortação sobre a reivindicação especial que faz desse dia: “seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus”. Deus reclama Sua especial propriedade do sábado. Ele é o dono do dia e marca-o como Seu dizendo-nos como devemos usá-lo.

Conforme foi observado no capítulo anterior, isto não significa que estejamos desobrigados de viver toda a nossa vida diante de Deus. Tudo pertence a Deus e tudo o que fazemos deve honrá-Lo, mas, não obstante, Deus marca este dia como especial e reivindica-o para Si mesmo.

A sua casa, assim como a minha, pertence a Deus, e como cristãos estamos obrigados a usá-las para a glória de Deus. Entretanto, as nossas casas não pertencem a Deus da mesma maneira que os edifícios da igreja pertencem a Deus. Eles foram construídos pelos dízimos de Deus e serão usados apenas para aqueles propósitos estabelecidos pelos oficiais da Igreja. Eu não posso pegar a minha família e me mudar lá para dentro. Eles são santos no sentido de que foram separados para os usos especiais relativos à adoração.

Por este dia pertencer a Deus de modo especial, devemos nos lembrar disso santificando-o. Usado da forma apropriada, o Shabbat (sábado) nos faz lembrar de Deus e da Sua obra de salvação. Devemos tratar tal dia como santo, consagrando-o conforme nos ensina o Breve Catecismo:

“Deve-se santificar o sábado (=domingo) com um santo repouso por todo aquele dia, mesmo das ocupações e recreações temporais que são permitidas nos outros dias; empregando todo o tempo em exercícios públicos e particulares de adoração a Deus, exceto o tempo suficiente para as obras de pura necessidade e misericórdia”.[5]


SANTIFICANDO O DIA

Quais são, portanto, as transações pelas quais santificamos o dia de sábado (shabbat)? Em primeiro lugar, santificamo-lo ao descansarmos ativamente em Cristo (“santo repouso”). A adequada santificação desse dia, assim como a observância apropriada de todos os mandamentos de Deus, começa no coração, encontrando o nosso descanso em Jesus Cristo. O Catecismo de Heidelberg diz: “que eu cesse a prática de minhas obras más todos os dias de minha vida, permita que o Senhor opere em mim pelo Seu Espírito Santo, e assim, comece nesta vida o descanso eterno”.[6]

O Shabbat nos lembra que precisamos abandonar as nossas próprias obras, que não fazemos jus ao favor de Deus, que não podemos abrir caminho para o céu, e que não merecemos justiça. Não, o sábado é o nosso testemunho e confissão solenes de que descansamos a nossa salvação somente em Jesus Cristo e de que nEle nos gloriamos. Neste dia declaramos que Ele é o nosso deleite; que somente Ele é o nosso refúgio e proteção.

Além do mais, santificamos o sábado quando o usamos para a comunhão com Deus. À medida em que descansamos em Cristo, contemplamos a beleza dos atributos de Deus e a grandeza da Sua obra. Usamos, portanto, esse dia para negociarmos com o nosso Dono. Somos os seus arrendatários que vêm ao Seu encontro no dia da feira. Ele preside e dá-nos a paga do nosso labor. Ele nos abençoa com refrigérios e nós celebramos à Sua mesa.

A guarda do Shabbat não deve ser uma atitude fria, ritualística, realizada por nós. Algumas vezes pensamos: “Ó, é sábado, não posso fazer isso”, ou, “Puxa, quando vai chegar amanhã?”. Se você começar a entender o privilégio que é o sábado como o dia de feira da alma, ele tornar-se-á o seu dia favorito, mais esperado que a sexta-feira (no Antigo Testamento), mais feliz que o dia em que você nasceu, mais repousante que as férias. É o dia do Senhor, e o seu primeiro pensamento consciente deve ser: “Este é o dia que o SENHOR fez; regozijemo-nos e alegremo-nos nele” (Sl. 118:24).

Ainda mais, só quando entendemos o sábado desse modo deixamos de cair no legalismo. Algumas vezes encaramos o dia do Senhor com uma lista de “pode” e “não- pode”, sem entender que podemos deixar de lado nosso trabalho e recreação, fazer todas as coisas certas e ainda continuar a ser violadores do sábado. É somente quando confiamos em Cristo para o perdão dos nossos pecados e pela graça de obedecer que começamos a santificar o sábado. É somente quando nos voltamos para este dia motivados pelo amor a Deus e pela comunhão com Ele que nos encontramos com Deus nas transações desse dia.

Mais ainda, santificamos o dia ao nos devotarmos às transações particulares que o Senhor tem determinado. O mais importante dessas coisas é encontrarmo-nos com Ele no culto corporativo. Nós as suplementamos com as devoções em família e em particular — leitura, oração e meditação. Tiramos vantagem do dia gastando-o na companhia de nossos amigos cristãos, tanto quanto nas obras ministeriais e de misericórdia. Realizando estas coisas fazemos o melhor uso e tiramos o maior proveito desse dia.


LIDANDO COM AS PROIBIÇÕES

Quando compreendemos o grande propósito do dia do Senhor estamos em melhor condição de tratar com as proibições do mandamento. Conforme observado no capítulo 1, estas proibições não têm o propósito de roubar nosso prazer, mas de nos tornar livres para o grande gozo desse dia. Em nossa cidade há uma feira de fazendeiros todas as terças-feiras depois do meio-dia. Duas quadras do centro da cidade são fechadas ao tráfego para que os comerciantes possam montar as suas barracas na rua. De modo semelhante, a praça o Shabbat é fechado ao tráfego regular para possibilitar o dia de feira da alma.

A proibição do Quarto Mandamento nos ensina como organizar o dia de modo a tirar maior proveito dele (versículos 9, 10). Deus nos mostra como devemos organizar as nossas vidas individualmente, domesticamente e socialmente.

Pessoalmente, somos liberados do nosso trabalho ordinário: “o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus; não farás nenhum trabalho...”. O termo “trabalho” inclui todo tipo de trabalho. O versículo 9 usa a palavra “obra” que se refere ao trabalho manual, de agricultura e outras formas de trabalho efetuado com as mãos. O termo “trabalho”, entretanto, é mais compreensível abrangendo não apenas os trabalhos descritos por “obra”, mas também todas as atividades, negócios e comércios, e tarefas domésticas. Ao usar ambos os termos, Deus deixa claro que proíbe todo o nosso trabalho regular e atividade.

Observe, entretanto, que tal proibição é contraposta ao fato dEle nos dar seis dias para fazer todo tipo de trabalho: “Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra”. Freqüentemente enfocamos as restrições dos mandamentos de Deus e fracassamos em perceber suas maravilhosas bênçãos. Deus enfoca um duplo privilégio: seis dias inteiros para atender a todo nosso labor e negócios e um dia inteiro para nos dedicarmos a Ele e a Seus negócios. Deus nos dá mais de 85 por cento da semana para nosso trabalho e recreação. Embora alguns tomem a frase “Seis dias trabalharás” como um mandamento para trabalharmos na nossa vocação seis dias na semana, prefiro tomar essa frase como uma concessão. Deus lhe concede o uso de seis dias para trabalho de todos os tipos. Ele também lhe dá um dia inteiro para devotar- se ao gozo dEle. Ele está dizendo: “Eu lhe concedi seis dias; exijo que me você dê um dia”.

Domesticamente, Deus não somente estrutura as ocupações de nossa vida para o dia da feira, mas também nos ordena a estruturar a nossa vida familiar. Falando-nos como pais e guardiões, Ele diz: “nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha”.

Devemos, como pais de filhos da aliança, estruturar as suas vidas liberando-os de seus trabalhos para poderem dedicar-se às transações especiais do dia. Somos responsáveis em proporcionar a nossos filhos uma estrutura positiva e apropriada à guarda do sábado.

Isto significa em definir para eles um exemplo de como guardar o Shabbat. Além do que, devemos ensinar o que eles devem fazer, ajudando-os a ordenar suas vidas e trabalhos escolares, além de lhes dar apenas as tarefas domésticas necessárias. Usamos o dia também para lhes ensinar que na vida há coisas mais jubilosas do que brincar, e, acima disso, devemos criar para eles um dia em que tenham prazer, um dia pelo qual anseiem, não um dia que paire sobre a semana como uma agourenta e escura nuvem.

A estruturação do sábado tem também uma responsabilidade social. Devemos estruturar este dia para as outras pessoas por quem somos socialmente responsáveis. Em primeiro lugar somos responsáveis para como os nossos serviçais. Poucos de nós têm serviçais em casa, mas se os temos, devemos liberá-los e preservá-los do trabalho desnecessário, da mesma forma que fazemos com nós mesmos e com nossos filhos.

Alguns de nós, entretanto, são empregadores, e economicamente nossos empregados são nossos servos. Como empregador você tem a responsabilidade de não fazer seus empregados quebrarem o sábado exigindo-lhes trabalho desnecessário.

Num outro aspecto, somos todos indiretamente responsáveis por alguns empregados, especialmente por pessoas que trabalham na indústria de serviços e negócios. Em termos econômicos tais pessoas trabalham como servos dos consumidores. Sustentei- me ao longo da faculdade e seminário vendendo sapatos. Meu gerente estava sempre enfatizando que eu era um servo do cliente. Do mesmo modo aqueles que nos servem no setor público são nossos servos. Devemos proteger o sábado deles tanto quanto o nosso. Portanto devemos evitar fazer compras, jantar fora desnecessariamente,[7] e atividades recreativas que façam os outros trabalhar no dia do Senhor (isso inclui aqueles eventos mediados pela televisão que necessitam do trabalho de centenas de empregados). É uma desculpa furada dizer: “Eles vão estar lá de qualquer forma, portanto, não importa realmente o que eu fizer”. Lhe foi ordenado não dar aos outros trabalhos desnecessários. Se você usa os serviços de uma pessoa, você é parcialmente responsável por ele estar trabalhando no dia do Senhor.

Além disso, como parte da nossa responsabilidade social, Deus nos ordena a dar descanso aos nossos animais porque eles necessitam dele tanto quanto as pessoas. Israel era uma sociedade agrária e boa parte do seu trabalho era realizado com a ajuda de animais. Até mesmo a terra tinha de descansar (vide Levítico 25). A necessidade de descansar a terra ilustra-se na importância do rodízio da safra que separa uma porção de terra para pousio.

Certamente que é uma justa inferência aplicar este princípio à qualquer coisa que possa se desgastar. Assim como os empregados substituíram os servos, as máquinas substituíram os animais. E semelhantes às criaturas vivas a que substituíram, as máquinas desgastam-se na proporção do uso. Tome por exemplo o seu automóvel: quanto menor a quilometragem, melhor seu preço de revenda. Se você estivesse procurando comprar um carro usado e encontrasse dois deles do mesmo modelo e ano, mas um tivesse trinta mil quilômetros e o outro setenta mil, qual deles compraria? No capítulo 5 abordaremos a necessidade de certos tipos de indústria operarem sete dias na semana. Entretanto, uma boa parte das atividades industriais poderiam parar no dia do Senhor. Qual seriam os benefícios ambientais e econômicos se elas fizessem assim?[8] Pense na ampliação da vida útil do maquinário caro, poucos consertos, e menos poluição do ar e da água.

Finalmente, assim como Deus nos ensina a estruturar socialmente o Seu dia, Ele inclui aqueles que não pertencem à Sua igreja. Ele conclui dizendo: “nem o forasteiro das tuas portas para dentro”. Em Israel o forasteiro ou estrangeiro era o gentio que vivia entre o povo de Deus. Eram várias as razões pelas quais os gentios escolhiam viver na terra prometida. Deus ordena que não apenas o Seu povo cesse o trabalho, mas também aqueles que não pertencem à aliança que estão no meio deles. É interessante que, embora não pudesse participar das celebrações ou da adoração no templo, o estrangeiro tinha que cessar o seu trabalho no sábado.

Embora não tenhamos uma legislação para as pessoas irem à igreja, não poderíamos ter uma para que negócios e lojas fossem fechados no dia do Senhor? Tais leis, que vigoraram nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, criavam um ambiente que não era apenas espiritualmente saudável, mas era também mental e fisicamente benéficos.[9]

Vimos que o sábado (Shabbat) é “o dia de feira da alma”. Deus determinou este dia para as transações especiais com Ele. Quando estruturarmos o dia em conformidade com isso, iremos gozar dos benefícios prometidos em Isaías 58:13,14. “Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses no meu santo dia; se chamares ao sábado deleitoso e santo dia do SENHOR, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, não pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falando palavras vãs, então, te deleitarás no SENHOR. Eu te farei cavalgar sobre os altos da terra e te sustentarei com a herança de Jacó, teu pai, porque a boca do SENHOR o disse”. Para nos liberar para gozarmos dos prazeres desse dia, Deus nos permite pôr de lado nossos afazeres diários normais para que possamos nos devotar à santificação do Seu dia. Nisso somos lembrados que, como todas as leis de Deus, o Quarto Mandamento não é um estorvo, mas o caminho para a verdadeira alegria e gozo equilibrados. Enganamos a nós mesmos e a Deus quando usamos tal dia para nosso próprio trabalho e recreação.


CONCLUSÃO [10]

Depois de lido o livro, coloco 11 fatos que nos faz compreender a importância de se observar o DIA DO SENHOR.

1. Quando a Bíblia usa o termo “sabbath”, ele não significa “sábado”. “Sabbath” não é o nome de um dia da semana. A palavra é usada para descrever um tipo de dia, um dia de descanso do trabalho. Em todo o Antigo Testamento, os anos tinham 365 dias, e todo ano começava em um dia de “sabbath” (Lv 23.4-16). Outras datas fixas nunca podiam ser “sabbath” (Êx 12.1-28; Lv 23.15). Para fazer com que isso acontecesse, o calendário tinha de ser ajustado regularmente. A História nos ensina que isso era feito por acrescentar ao ano “sabbaths” extras que ocorriam consecutivamente. Identificar “sabbath” com o dia de sábado é um erro. Foi apenas depois do ajuste definitivo do calendário judaico, em 359 D.C, que os “sabbaths” dos judeus passaram a cair sempre no dia que agora chamamos de “sábado”.

2. O “sabbath” [descanso] não é uma instituição judaica. Deus o instituiu na criação (Gn 2.1-3). É um dom de Deus para a humanidade (Mc 2.27).

3. Em certo aspecto, os Dez Mandamentos são diferentes de todas as outras leis encontradas nas Escrituras. Deus os escreveu com o seu próprio dedo. O Quarto Mandamento dEle é positivo, o mais comprido e o mais detalhado dentre os dez, fazendo uma ligação entre os aspectos divino e humano, moral e cerimonial da Lei (Êx 20.8-11; 31.18).

4. O “sabbath” era importante para nosso Senhor Jesus Cristo. A Bíblia não nos fala muito sobre os hábitos de Jesus, mas diz que Ele tinha o costume de ir à sinagoga no “sabbath” (Lc 4.16). Jesus anunciou que era Senhor do dia de “sabbath” (Mc 2.28). Dizer que o “sabbath” não existe mais é uma negação do senhorio de Cristo.

5. O Senhor do “sabbath” transferiu este dia para o primeiro dia da semana. Este foi o dia em que Ele ressuscitou dos mortos (Jo 20.1-18), apareceu aos discípulos (Jo 20.19, 26) e derramou o seu Espírito (At 2.1).

6. Os apóstolos e a igreja primitiva guardavam com distinção o primeiro dia da semana (At 20.7; 1 Co 16.2). Para evitar confusão, o Novo Testamento Grego chama o sábado judaico de “sabbath” e o primeiro dia da semana de “o primeiro dos sabbaths” (na tradução em português “o primeiro dia da semana” – Mt 28.1; Mc 16 2, 9; Lc 24.1; Jo 20.1,19; At 20.7; 1 Co 16.2). Algumas pessoas crêem que isto é apenas uma expressão idiomática grega significando apenas “o primeiro dia do ciclo da semana”. Contudo, não existe quase nenhuma evidência para isto. Temos de encarar os fatos: o primeiro dia da semana é um “sabbath”. Também conhecido como “o dia do Senhor” (Ap 1.10).

7. Durante toda a história da igreja, o domingo tem sido observado como o “sabbath” dos cristãos. A evidência documental é unânime e retrocede a 74 D. C. Durante as piores perseguições, perguntava-se aos suspeitos de serem cristãos: “Dominicum Servasti?” (Você guarda o dia do Senhor?) Os verdadeiros crentes respondiam: “Eu sou um cristão, não posso deixar de fazer isso!” O que os crentes responderiam hoje?

8. É realmente imoral não guardar o Dia do Senhor. O Quarto Mandamento, que nos recorda isso, está em um código que proíbe a idolatria, o assassinato, o furtar, o mentir e o cobiçar. O Quarto Mandamento nunca foi anulado, e nunca o será (Mt 5.18). Quebrar um mandamento da Lei significa tornar-se culpado de todos os demais (Tg 2.10). A violação do dia de descanso traz o juízo de Deus (Ne 13. 15-22).

9. O domingo, o dia do Senhor, é um dia de regozijo e satisfação (Sl 118.24; 112.1). A Palavra de Deus chama-o de deleite (Is 58.13). Deus nos deu esse dia como uma bênção para todos nós (Mc 2.27-28). Falando sobre a época evangélica, Isaías diz: “Bem-aventurado o homem que… se guarda de profanar o sábado” (Is 56.2).

10. As bênçãos do Dia do Senhor são visíveis a todos: recorda aos homens e mulheres caídos que existe um Deus a quem eles devem adorar; dá aos crentes a oportunidade de se reunirem ao redor da Palavra e, assim, mantém a vida espiritual deles; fornece oportunidades para a pregação do evangelho; fortalece os laços familiares; permite que toda a nação descanse; promove a saúde, e a lista poderia continuar.

11. No Antigo Testamento, homens piedosos, como Moisés, Amós, Oséias, Isaías, Jeremias, Ezequiel e Neemias, contenderam com as pessoas por causa do dia de descanso. A história da igreja está repleta de outros que fizeram o mesmo. O que nos impede de seguir o exemplo deles?

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[1] Reprodução do Cap. 3 na íntegra.
[2] Quando o autor se refere ao sábado, ele está se referindo ao “dia de descanso” (Shabbat, no hebraico) instituído por Deus, o qual, após a ressurreição de Cristo, passou a ser guardado no domingo.
[3] James T. Dennison, Jr., The Market Day of The Soul: The Puritan Doctrine of the Sabbath in England 1532- 1700 (New York: University Press of America, 1983) é um excelente estudo sobre o sábado Puritano.
[4] No capítulo seguinte deste livro fala sobre qual é o único papel do sábado no Pacto de Deus com Israel.
[5] O Breve Catecismo, resposta à pergunta 60.
[6] Catecismo de Heidelberg, resposta à pergunta 103.
[7] Reconheço que aqueles que estão em viagem precisam comer em locais públicos no dia do Senhor, mesmo quando precisam ficar num hotel. É interessante que os Puritanos também reconheciam esta necessidade. O Parlamento controlado pelos Puritanos em 1644, numa lei que regulava o sábado, acrescentou: “Contanto que, e seja isso declarado, nada nesta ordenança se aplica à proibição do preparo da alimentação familiar, ou no preparo e venda moderada de alimentos em estalagens e empórios, para o uso daqueles que de outra forma não podem ser supridos. Citado em Dennison, 94.
[8] Alguns, como Jewett, sugerem que não devemos promover o descanso do sábado tendo como base os benefícios pragmáticos ou humanitários (The Lord’s Day, pág. 148). Posso concordar que essa não deva ser a base da nossa argumentação, mas Deus exige que pensemos em nossos animais. Porém, do mesmo modo que as leis concernentes ao casamento, trabalho e propriedade trazem benefícios sociais, é importante reconhecer que o sábado também os traz.
[9] Alguns levantam a questão: “E aqueles cuja religião exige que guardem um dia diferente?” Reconheço a tensão aqui e não tenho uma resposta final. Mas se cremos que Deus estrutura o dia tanto para o inconverso quanto para o cristão, precisamos lutar por isso. Talvez aos negócios de Judeus e Muçulmanos fosse permitido funcionar no domingo, mas sem que os empregados cristãos fossem obrigados a trabalhar, da mesma forma que o empregador cristão deveria respeitar a consciência da pessoa cujas crenças religiosas exijam que cultue noutro dia. A dificuldade para os aderentes de outras religiões não é apenas com as leis que fecham o domingo. As leis de nosso país exigem o casamento monogâmico, ao passo que Muçulmanos e certos Mórmons crêem na poligamia. Eles estão obrigados a se conformarem à lei da terra na qual vivem.
[10] Esta conclusão faz parte do artigo O Uso correto do Dia do Senhor de Stuart Olyott. Publicado in https://reformados21.com.br/2017/08/13/o-uso-correto-do-dia-do-senhor/ Acesso em 19 abr. 2019

segunda-feira, 15 de abril de 2019

FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA REFORMADA [Resenha]


MAIA, Herminsten. Fundamentos da Teologia Reformada. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.

Fundamentos são importantes em vários aspectos e contextos. Uma arvore será tão mais resistente ao vento quanto mais profunda for a raiz. Uma boa carreira acadêmica florescerá sobre um bom aprendizado das primeiras lições. Um Edifício será resistente se construído sobre alicerces sólidos e bem estruturados. Em contrapartida, uma raiz fraca e rasa faz sucumbir a árvore na menor das intempéries. Um início equivocado na academia prejudica toda a sequência do aprendizado. E alicerces frágeis acarretam construções instáveis.

Com a teologia não é diferente. Não haverá nenhum proveito em discussões teológicas complexas se o que é basilar for negligenciado. Por isso, os fundamentos devem ter por base as premissas corretas, o que implica necessariamente partir da palavra de Deus, que aponta para Cristo. Além disso, se os fundamentos tiverem um ponto de partida uma instrução simples e bem construída, melhor será a formação teológica.

De forma muito feliz, Herminsten Maia discorre sobre os fundamentos da teologia reformada com conhecimento e eloquência, sem soar arrogante inacessível. Ele expressa piedade e devoção, sem abrir mão do rigor necessário ao estudioso sério e comprometido. Partindo de uma cosmovisão bíblica e cristocêntrica, Herminsten não só apresenta os rudimentos da teologia cristã reformada como dá ao leitor as ferramentas adequadas para que construa o edifício do seu saber teológico sobre uma base sólida. Se você atentar às palavras deste livro, se sentirá mais habilitado a combater qualquer vento de doutrina.

Hermisten Maia é ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil, integrando a Equipe de Pastores da Primeira IP de São Benardo do Campo, SP. É formado em Teologia, Filosofia e Pedagogia. É Mestre e Doutor em Ciências da Religião, tem 20 livros escritos e mais de 500 artigos publicados. Leciona em diversas Instituições de Ensino Superior no Brasil e é professor pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP.

O livro é constituído de 13 capítulos que trata de forma resumida e didática de cada um dos ensinos da teologia bíblica em uma cosmovisão reformada. Os títulos de cada são assim apresentados:
01. O Deus que se revela
02. As Escrituras
03. O homem
04. Jesus Cristo
05. A soberania e a graça de Deus
06. O Espírito Santo
07. A Igreja de Deus
08. O espírito de oração
09. O culto cristão
10. O sacramento da ceia do Senhor
11. A ética do trabalho e a ação social
12. A segunda vinda de Cristo
13. O Juízo Final


CONCEITUANDO TEOLOGIA REFORMADA

Teologia

A palavra "teologia" resulta da junção dos termos gregos: theos ("Deus") e logos ("estudo", "tratado", "discurso"). Platão (427-347 a.C.) usou esse vocábulo com o sentido de história de mitos e lendas dos deuses contada pelos poetas.[1] Na Grécia antiga, os poetas foram os primeiros a se intitular teólogos "por comporem versos em honra aos deuses",[2] uma vez que teologia referia-se às discussões filosóficas a respeito de seres divinos (teogonias) e do mundo (cosmogonias).

No fim do século 2, Clemente de Alexandria (c. 150-c. 215) contrapôs theologia a mythologia. Aquela, na condição de verdade cristã a respeito de Deus, era superior às histórias da mitologia pagã.

A palavra teologia" parece ter sido incorporada à linguagem cristã nos séculos 4 e 5. Referia-se à genuína compreensão das Escrituras. Contudo, o emprego estava restrito ao conhecimento a respeito da pessoa de Deus.[3] A partir de Theologia christiana, obra de Abelardo (1079-1142), passou a designar um corpo de doutrina.[4]

Os pais da Igreja cognominaram o evangelista João de "o teólogo", por tratar mais detalhadamente do "relacionamento interno das pessoas da Trindade".[5] Gregório de Nazianzo (c. 330-389) também recebeu esse título, especialmente pela defesa da divindade de Cristo. João Calvino (1509-1564) foi denominado "o Teólogo" por Filipe Melanchton (1497-1560).

Limitando-se à etimologia, a disciplina "teologia" normalmente é definida como "ciência que trata de Deus",[6] "pensamento ou raciocínio sobre Deus". Agostinho (354-430) a define como "razão ou discurso sobre a divindade".[7] Mesmo no étimo, a concepção não é unívoca. A teologia pode ser concebida como Deus falando dele (o conhecimento que tem de si) ou o homem falando de Deus (o saber que tem acerca do Senhor); ambas são interpretações possíveis.

Outra conceituação comum: teologia é a "ciência da religião". Essa definição, além de genérica, carece de conceituação do que significa "religião": se está sendo considerada "subjetivamente" (a soma total das manifestações religiosas) ou "objetivamente" (as obrigações do homem conforme as prescrições divinas). Seja qual for a escolha, teremos dificuldade em conceituar "teologia".

A teologia pode ser definida operacionalmente como o estudo sistemático da revelação especial de Deus registrada nas Escrituras, tendo por finalidade glorificar a Deus por meio do conhecimento da sua Palavra e da obediência a ela. "O tema e o conteúdo da teologia é a Revelação de Deus."[8] Dessa concepção, seguindo a linha do teólogo reformado Kuyper (1837-1920),[9] subentende-se que:

1. A teologia nunca é "arquétipa", mas "éctipa";[10] não é gerada pelo esforço de nossa observação de Deus, mas é o resultado da revelação soberana e pessoal de Deus. Uma teologia arquétipa pertence somente a Deus, porque apenas ele se conhece perfeitamente, tendo até ciência completa do seu conhecimento perfeito. Por isso, a teologia sempre será o efeito da ação reveladora, inspiradora e iluminadora de Deus por intermédio do Espírito; nunca é a causa primeira; sempre é o efeito da ação primeira de Deus em revelar-se. Em todo e qualquer enfoque que dermos à realidade, isto deve ser considerado: "No princípio Deus...". A teologia sempre é "... relativa à revelação de Deus. Deus precede e o homem acompanha. Este ato seguinte, este serviço, são pensamentos humanos concernentes ao conhecimento de Deus".[11]

2. A teologia não termina em conhecimento teórico e abstrato, antes se plenifica no conhecimento prático e existencial de Deus por meio das Escrituras e da iluminação do Espirito. Conhecer a Deus é obedecer a seus mandamentos. Fazer teologia é tarefa da Igreja; não é um estudo descompromissado feito por transeuntes acadêmicos. Brunner (1889-1966) afirma: "Pensamento dogmático não é somente pensar sobre a fé, é um pensar crendo".[12]


Teologia reformada

Trata-se da teologia oriunda da Reforma (calvinista) em distinção à luterana O designativo "reformada" é preferível ao "calvinista"[13] - ainda que o empreguemos indistintamente —, considerando o fato de que a teologia reformada não provém estritamente de Calvino.[14]

Sabemos de antemão que um pequeno trabalho como este privilegia aspectos e omite outros; toda escolha envolve uma rejeição, consciente ou não. Como não podemos ter todas as visões, temos algumas, que não são necessariamente as melhores nem pretendem ser as únicas. De certo modo, somos mais ou menos cativos de nossas perspectivas. Se reconhecer isso não é essencialmente uma virtude, pelo menos serve de alerta para autores e leitores. Além disso, há sempre o sentimento de frustração para quem escreve e, de certo modo, para o especialista que o lê, visto que ambos gostariam de fazer algumas mudanças ou simplesmente reescrevê-lo, seja pela omissão de temas, pelo pequeno espaço dedicado a certos assuntos, seja pelo detalhamento desnecessário a outros. Quem escreve gostaria de desenvolver melhor determinados temas, os quais aprecia tanto, mas não pode. Considerando esses aspectos subjetivos e as limitações do autor, tentemos aproveitar o que for possível da leitura nos preparando para elaborar algo mais completo.


OS CREDOS E A REFORMA

Importância e objetivo dos credos

Os credos da Reforma são as confissões de fé e os catecismos produzidos nesse período ou sob sua inspiração teológica.

Os séculos 4 e 5 foram para a elaboração dos credos o que os séculos 16 e 17 foram para a feitura das confissões e dos catecismos. A razão parece evidente: na Reforma, as igrejas logo sentiram a necessidade de formalizar a fé, apresentando sua interpretação sobre diversos assuntos que as distinguiam da Igreja Romana. Com o tempo, surgem outras denominações, que discordavam entre si sobre alguns pontos, o que gerou a necessidade de estabelecer princípios doutrinários próprios.

Calvino afirmou que a fé deve ser "explícita", mas ressaltou que muito do que cremos permanecerá nesta vida de forma implícita por duas razões: a) nem tudo foi revelado por Deus; b) nossa ignorância e pequenez espiritual. Por isso, o ensino e estudo constantes da Palavra do Senhor são necessários, a fim de que cada homem, responsável diante de Deus, tenha condições de se posicionar diante do Criador de forma consciente.[15] A fé explícita é patenteada pela Igreja mediante o ensino da Palavra.

Essa necessidade determina o uso da razão, a fim de apresentar a doutrina de forma mais razoável possível e simples ao mesmo tempo. Amplitude e simplicidade são dois marcos do ensino ortodoxo. O ser humano é responsável diante de Deus, a quem dará contas de si mesmo; portanto, tendo oportunidade, ele precisa conhecer devidamente a Palavra do Senhor em toda a plenitude revelada.

Essas declarações de fé precisavam ser, até certo ponto, completas e simples, para que o cristão não iniciado nas questões teológicas pudesse entender o que estava sendo dito, confrontar esse ensinamento com as Escrituras e assim compreender biblicamente sua fé. Esta não deveria ser apenas "implícita",[16] mas "explícita".


OS CATECISMOS

Nesse contexto e com objetivos eminentemente didáticos surgem os catecismos (do gr. katekhéo = "ensinar", "instruir", "informar"; cf. Lc 1:4;

At 18:25; 21:21,24; Rm 2:18; I Co 14:19; Gl 6:6), constituídos, em boa parte, de perguntas e respostas. Até o século 16, a palavra catecismo não fora usada nesse sentido.[17] Os catecismos visavam à instrução de crianças e adultos, e isso contribuiu decisivamente para sua proliferação, e a maioria jamais passou da forma manuscrita, visto que muitos pastores os elaboravam apenas para a congregação local, objetivando atender necessidades doutrinárias.

A primeira obra a receber o título catecismo foi o de Andreas Althamer (c. 1500-1539) em 1528.[18] Os mais influentes no século 16 foram, porém, os de Lutero (1483-1546): o Catecismo maior (1529) e o Catecismo menor (1529), em cujo prefácio Lutero declara por que o redigiu e apresenta sugestões de como ensiná-lo à congregação. Ele quase sempre inicia os capítulos com este teor: "Como o chefe de família deve ensiná-lo com toda a simplicidade a sua casa", e outras expressões afins. A respeito de suas motivações, ele declarou:

A lamentável e mísera necessidade experimentada recentemente, quando também eu fui visitador,[19] é que me obrigou e impulsionou a preparar este catecismo ou doutrina cristã nesta forma breve, simples e singela. Meu Deus, quanta miséria não vi! O homem comum simplesmente não sabe nada da doutrina cristã, especialmente nas aldeias. E, infelizmente, muitos pastores são de todo incompetentes e incapazes para a obra do ensino. [...] Não sabem nem o Pai-Nosso, nem o Credo, nem os Dez Mandamentos.[20]

Mais tarde, Calvino elaborou um catecismo intitulado “Instrução e confissão de fé, segundo o uso da Igreja de Genebra” (1536-1537).[21] Desde 1561, todo ministro da igreja deveria jurar fidelidade aos ensinamentos nele expressos e comprometer-se a ensiná-los.


AS CONFISSÕES

Basicamente, as confissões não foram feitas para a instrução na fé cristã (essa era a função dos catecismos). Elas poderiam ser produzidas individualmente para uso privado (A segunda confissão helvética); por um concilio de uma igreja em particular (Cânones de Dort); por um indivíduo que age como representante de sua igreja (Confissão de Augsburgo); por um grupo de teólogos convocados pelo Estado (Confissão de Westminster); ou escrita como defesa de sua fé durante terrível perseguição (A confissão dos valdenses) etc.

Não havia regra para a elaboração de uma confissão; os contextos eram variados. Apesar de haver motivações comuns a todas elas, existiam circunstâncias especiais que conduziam a determinadas ênfases, especialmente no que se refere às questões relativas ao governo e à Igreja Romana.

Isso levanta o problema da unificação das confissões. Em 1530, Carlos V, imperador da Alemanha, convoca a Dieta de Augsburgo, cujo objetivo era a unificação político-religiosa dos seus domínios. Nasceu então a Confissão de Augsburgo, redigida por Melanchton, com o consentimento de Lutero. O imperador não a aceitou e proibiu sua divulgação; mesmo assim, em pouco tempo, ela foi propagada em toda a Alemanha.

Calvino entende que a divergência em questões secundárias não deve servir de pretexto para a divisão da Igreja; afinal, todos, sem exceção, estão envoltos de "alguma nuvenzinha de ignorância".[22] Após argumentar contra aqueles que chamavam os reformados de hereges, ele ressalta que a unidade cristã deve ser na Palavra, baseando-se em Efésios 4:5, Filipenses 2:1,5 e Romanos 15:5.[23]

Para os irmãos refugiados em Wezel (Alemanha), que sofriam diversas pressões dos luteranos e sobreviviam numa pequena igreja reformada, Calvino, em 1554, os consola mostrando que, apesar dos grandes problemas pelos quais passavam o mundo. Deus lhes havia concedido um lugar onde poderiam adorar a Deus em liberdade. Também os desafia a não abandonarem a igreja por pequenas divergências nas práticas cerimoniais, sendo tolerantes a fim de preservar a unidade. Contudo, os exorta a jamais fazerem acordos em pontos doutrinários.[24] Mesmo desejando a paz e a concórdia, Calvino entendia que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade, pois, se assim fosse, essa "paz" seria maldita.[25]

Respondendo a uma carta de Thomas Cranmer (1489-1556)[26] convidando-o para uma reunião com o objetivo de preparar um credo que fosse consensual para as igrejas reformadas, Calvino, mesmo não podendo ir, o encoraja a manter esse objetivo.[27] A certa altura diz: "... Estando os membros da Igreja divididos, o corpo sangra. Isso me preocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa".[28]

Já no século 17, algum progresso nesse sentido é evidente, por meio de formulações doutrinárias mais completas e também após passar o primeiro ardor apaixonado e exclusivista, ainda que surgissem novos debates teológicos nos séculos 17 e 18, no período denominado "ortodoxia protestante. Mesmo assim, as diferenças permaneceram, mas não ferem pontos cruciais da Reforma, como: A Bíblia como autoridade final, a justificação pela graça mediante a fé, o sacerdócio universal dos santos, a suficiência do sacrifício de Cristo para nos salvar etc.

Assim, os credos da Reforma tinham três objetivos específicos:
1. Evidenciar os fundamentos bíblicos de seus ensinos.
2. Demonstrar que suas doutrinas estavam em acordo com os principais credos da Igreja (Apostólico, Niceno, Constantinopolitano).
3. Demarcar sua posição teológica em relação à teologia romana e às demais correntes provenientes da Reforma.

As confissões provenientes da Reforma (sécs. 16 e 17) são divididas em dois grupos: luteranas e calvinistas (reformadas).


PRINCIPAIS CATECISMOS E CONFISSÕES: SUBSÍDIOS HISTÓRICOS

Confissão gaulesa (1559)

Foi escrita por Calvino e seu discípulo Antoine de Ia Roche Chandieu (De Chandieu) (1534-1591), provavelmente com a ajuda de Theodore Beza (1519-1605) e Pierre Viret (1511-1571). No Sínodo Geral de Paris (26-28/5/1559), reunido secretamente, ela foi revista e ampliada. Calcula-se que a França possuía 400 mil protestantes,[29] existindo em fins de 1561 mais de 670 igrejas calvinistas.[30]

Em 1571, realizou-se o Sétimo Sínodo Nacional de La Rochelle, no qual essa confissão foi revisada, reafirmada e solenemente sancionada por Henrique IV, passando a ser chamada também de Confissão de Rochelle. A Confissão gaulesa influenciou profundamente a Confissão belga (1561) e a Confissão dos valdenses (1655).

Confissão escocesa (1560)

Foi escrita sob a liderança de John Knox (1505-1572) e adotada pelo Parlamento escocês em 17/8/1560, sendo ratificada em 1567. Em 1572, todos os ministros tiveram de subscrevê-la. Ela permaneceu como confissão oficial da Igreja Reformada Escocesa até 1647, quando então a Igreja adotou a Confissão de Westminster.

Confissão belga (1561)


Inspirada na Confissão gaulesa, foi escrita em francês em 1561 por Guido (ou Guy, Wido) de Brès (1523-1567) e outros, sendo revisada e publicada em holandês em 1562, chegando a ocupar lugar de suma importância na Igreja Reformada Holandesa.[31] Foi aprovada no Sínodo de Antuérpia (1566), no de Ambères (1566; após revisão) e em Wessel (1568), e adotada pelo Sínodo Reformado de Emden (1571), pelo Sínodo Nacional de Dort (1574), Middeiburg (1581) e pelo grande Sínodo de Dort (29/4/1619), que a sujeitou a minuciosa revisão, comparando a tradução holandesa com o texto francês e latino. Foi traduzida para o holandês (1562) e para o inglês (1768).

A Confissão belga e o Catecismo de Heidelberg (veja mais adiante) são os símbolos de fé das Igrejas Reformadas na Holanda e Bélgica, sendo também o padrão doutrinário da Igreja Reformada na América e na Igreja Evangélica Reformada Holandesa no Brasil.

Trinta e nove artigos da Igreja da Inglaterra (1563)

Em 1552, o arcebispo de Canterbury, Thomas Cranner, elaborou com outros vlérigos Quarenta e dois artigos da religião; após minuciosa revisão, foram publicados em 1553 sob a autoridade de Eduardo VI, rei da Inglaterra. Mas tarde, esses Artigos foram revistos e reduzidos a 39 pelo arcebispo de Canterbury, Matthew Parker (1504-1575), e outros bispos. Esse trabalho de revisão e redução foi ratificado pelas duas Casas de Convocação, sendo os Trinta e nove artigos publicados por autoridade do rei em 1563. Em 1571, tornou0se obrigatória a subscrição desses Artigos por todos os ministros ingleses.

Os Trinta e nove artigos e o livro de Oração Comum (1549) são os símbolos de fé da Igreja da Inglaterra e, com algumas alterações, das demais igrejas da Comunhão Anglicana.

Catecismo de Heidelberg (1563)

Foi escrita por dois jovens teólogos: Caspar Olevianus (1536-c. 1587), professor de teologia na Universidade de Heidelberg, que recebeu influência de Melanchton e de Peter Nartyr Vermigli (1560-1562), e Zacharias Ursinus (1534-1583), ex-aluno de Melanchton, em Wittenberg (1550-1557), e amigo de Calvino.

No prefácio da primeira edição, Frederico III, o “Piedoso” (1515-1576), estabeleceu três propósitos para esse catecismo: 1) Instrução catequética; 2) guia para pregação; e 3) forma confessional de unidade. Ele foi o primeiro príncipe alemão a adotar um credo reformado distinto do luterano.

Adotado por um Sínodo de Heidelberg (19/1/1563), esse catecismo foi aceito também na Escócia, servindo de modo especial para o ensino das crianças. O Sínodo de Dort também o aprovou. Heidelberg é o símbolo das igrejas reformadas da Alemanha, da Holanda, dos Estados Unidos e do Brasil.

Os dois pontos fortes desse catecismo são o aspecto não polêmico (com exceção da pergunta 80) e o tom pastoral; suas respostas são uma declaração pessoal de fé, tendo as verdades teológicas aplicação bem direta às necessidades cotidianas do povo de Deus.

Por ter sido traduzido para todas as línguas europeias e muitas asiáticas, P. Schaff (1819-1893) diz que Heidelberg “tem dom pentecostal de línguas em raro grau”.[32]

Segunda Confissão Helvética (1562-1566)

Foi primariamente elaborada em latim, em 1562, pelo amigo, discípulo e sucessor de Zuinglio (1484-1531), Henry Bullinger (1504-1575). Em 1564, quando a peste voltou a atacar em Zurique, Bullinger perdeu a esposa e as três filhas. Ele mesmo ficou doente, mas foi curado. Nesse interim, fez a revisão da confissão de 1562. Como espécie de testamento espiritual, anexou-a ao seu testamento, para ser entregue ao magistrado da cidade, caso falecesse. Essa confissão foi traduzida para vários idiomas (incluindo o árabe) e teve ampla aceitação em diversos países, sendo também adotada na Escócia (1566), Hungria (1567), França (1571) e Polônia (1578). Tornou-se “e elo [...] para as igrejas calvinistas espalhadas por toda a Europa”.[33]

Cânones de Dort (1618-1619)

O Sínodode Dort reuniu-se por autoridade dos Estados Gerais dos Países Baixos, em Dortrecht, Holanda, de 13/11/1618 a 9/5/1619. O Sínodo foi constituído de 35 pastores, um grupo de presbíteros das igrejas holandesas, 5 catedráticos de teologia dos Países Baixos, 18 deputados dos Estados Gerias e 27 estrangeiros, de diversos países da Europa, tais como Inglaterra, Alemanha, França e Suíça. Dort rejeitou os chamados “Cinco pontos do arminianismo”.[34] Os Cânones de Dort foram aceitos por todas as igrejas reformadas como expressão correta do sistema calvinista.

Segundo J. I. Packer,[35] podemos resumir o sistema arminiano e calvinista da seguinte forma:


Confissão de Westminster e catecismos (1647-1648)

A Confissão de Westminster, o Catecismo maior (1648) e o Catecismo menor (1647) foram redigidos na Inglaterra, na Abadia de Westminster, por convocação do Parlamento. A assembleia funcionou de 1/7/1643 a 22/2/1649. O objetivo primário era a revisão dos Trinta e nove artigos.

Trabalharam no texto da confissão 121 teólogos e trinta leigos nomeados pelo Parlamento (vinte da Casa dos Comuns e dez da Casa dos Lordes), oito representantes escoceses, quatro pastores e quatro presbíteros, "os melhores e mais preclaros homens que possuía".[36]

Os principais debates não foram de ordem teológica Os principais debates não foram de ordem teológica (quase todos eram calvinistas), mas sobre o governo da Igreja. "Embora houvesse diversidade quanto à Eclesiologia, havia unidade quanto à Soteriologia".[37] Nesse ponto, havia quatro partidos: episcopais, presbiterianos, independentes (congregacionais) e erastianos.[38] Esses últimos entendiam que o trabalho do pastor era o de ensino; o pastor é o mestre. Prevaleceu, no entanto, o sistema presbiteriano de governo.

O Breve catecismo foi elaborado para instruir as crianças; o Catecismo maior, especialmente para a exposição no púlpito, mas não exclusivamente. Eles substituíram em grande parte os catecismos e as confissões mais antigos adotados pelas igrejas reformadas de fala inglesa. Apesar de a teologia dos catecismos e da Confissão de Westminster ser a mesma, sendo por isso sempre adotados os três, parece que os mais usados são o Catecismo menor e a Confissão.

Esses credos foram logo aprovados pela Assembleia Geral da Igreja da Escócia. Eles tiveram e têm grande influência no mundo de fala inglesa, maxime entre os presbiterianos - embora também tenham sido adotados por diversas igrejas batistas e congregacionais. No Brasil, esses credos são adotados pela Igreja Presbiteriana do Brasil, Presbiteriana Independente e Presbiteriana Conservadora.


O USO DE CATECISMOS E CONFISSÕES REFORMADOS

Limites


Os credos evangélicos no que se refere à formulação doutrinária são relevantes. Depreciá-los "é uma negação prática da direção que no passado deu o Espírito Santo à Igreja".[39] Em contrapartida, temos de entender - aliás, como sempre foi entendido pelos reformados — que os credos têm limite; eles são uma resposta do homem à Palavra de Deus e sumariam os artigos essenciais da fé cristã. Dessa forma, os credos pressupõem a fé, mas não a geram; esta é obra do Espírito Santo por intermédio da Palavra (Rm 10:17).

Os credos baseiam-se na Palavra, mas não são a Palavra — nem isso foi cogitado por seus formuladores; eles não podem substituir a Bíblia; somente ela gera vida pelo poder de Deus (I Pe 1:23; Tg 1:18). Para os reformados, os credos têm autoridade decorrente das Escrituras; seu valor não é intrínseco, mas extrínseco: eles são recebidos e cridos enquanto permanecem fiéis à Bíblia; assim, a autoridade deles é relativa. Para que então os credos, se temos a Bíblia? O Dr. A. A. Hodge (1823-1886) apresenta relevante observação:

Todos os que estudam a Bíblia fazem isso necessariamente no próprio processo de compreender e coordenar seu ensino; e pela linguagem de que os sérios estudantes da Bíblia se servem em suas orações e outros atos de culto, e na sua ordinária conversação religiosa, todos tornam manifesto que, de um ou outro modo, acharam nas Escrituras um sistema de fé tão completo como no caso de cada um deles lhe foi possível. Se os homens recusarem o auxílio oferecido pelas exposições de doutrinas elaboradas e definidas vagarosamente pela Igreja, cada um terá de elaborar o próprio credo, sem auxílio e confiando apenas na sua sabedoria. A questão real entre a Igreja e os impugnadores de credos humanos não é, como eles muitas vezes dizem, uma questão entre a Palavra de Deus e os credos dos homens, mas é questão entre a fé provada do corpo coletivo do povo de Deus e o juízo privado e a sabedoria não auxiliada do objetor individual.[40]

Os credos são somente aproximação e relativa exposição correta da verdade revelada. Eles podem ser modificados pelo progressivo conhecimento da Bíblia, que é infalível e inesgotável. Por isso, não devemos tomá-los como autoridade final para definir um ponto doutrinário; os limites da reflexão teológica estão na Palavra. Os credos não estabelecem o limite da fé, antes a norteiam. As Escrituras sempre serão mais ricas que qualquer pronunciamento eclesiástico, por mais bem elaborado e mais fiel que seja à Bíblia. A firmeza e vivacidade da teologia reformada estão justamente em basear seu sistema em todo o desígnio de Deus, submetendo-o ele, que fala por meio da sua Palavra. A Confissão de Westminster diz:

O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura.[41]

Valor e importância

A ideia de credos desagrada a muitas pessoas, que os imaginam como empobrecimento espiritual ou amordaçamento do Espírito etc. Nessa perspectiva, a doutrina tem pouco valor; o que importa é a "vida cristã". Daí as ênfases nas "experiências" - que, via de regra, pretendem convalidar a Palavra - ou num "evangelho" puramente ético-social. Todavia, ambos os comportamentos equivocados pecam por não compreender que a base da vida cristã autêntica é a sólida doutrina vivenciada (cf. I Tm 4:16). Esse ponto foi salientado por D. M. Lloyd-Jones (1899-1981):

Toda a doutrina cristã visa levar, e foi destinada a levar a um bom resultado prático. [...] A doutrina visa levar-nos a Deus, e a isso foi destinada. Seu propósito é ser prática [...] a nossa vida cristã nunca será rica, se não conhecermos e não aprendermos a doutrina. [42]

Você não poderá ser santo se não conhecer bem a doutrina. Doutrina é a ligação direta que leva à santidade. É somente quando compreendemos essas verdades fundamentais que podemos atender ao apelo lógico para a conduta e o comportamento agradáveis a Deus.[43]

Os elementos a seguir atestam a importância e o valor dos credos:

1. Facilitam a confissão pública de nossa fé.

2. Oferecem de forma abreviada o resultado de um processo cumulativo da história, reunindo as melhores contribuições de servos de Deus na compreensão da verdade. A ciência não é privilégio de um povo ou de um indivíduo. Todo cientista — usando a figura de João de Salisbury (c. 1110-1180) — equivale a um anão nos ombros de gigantes, valendo--se das contribuições dos predecessores, a fim de poder enxergar um pouco além deles. Podemos aplicar essa figura à teologia e à tradição, como o fez J. I. Packer: “A tradição nos permite ficar sobre os ombros de muitos gigantes que pensaram sobre a Bíblia antes de nós. Podemos concluir pelo consenso do maior e mais amplo corpo de pensadores cristãos, desde os primeiros Pais até o presente, como recurso valioso para compreender a Bíblia com responsabilidade. Contudo, tais interpretações (tradições) jamais serão finais; precisam sempre ser submetidas às Escrituras para mais revisão”.[44]

3. São uma exigência natural da própria unidade da Igreja, que exige acordo doutrinário (Ef 4:11-14; Fp 1:27; I Co 1:10; Jd 3; Tt 3:10; Gl 1:8-9; I Tm 6:3-5).

4. Visto que o cristianismo é um modo de vida fundamentado na doutrina, os credos oferecem uma base sintetizada para o ensino das doutrinas bíblicas, facilitando sua compreensão, a fim de que os cristãos sejam habilitados para a obra de Deus. Spener (1635-1705), luterano e "fundador do Pietismo" — que se opunha ao "escolasticismo protestante" —, insistia com os pastores em que ensinem às crianças e aos adultos, com as Escrituras, o Catecismo menor, de Lutero, visto ser fundamental para a sedimentação da fé.[45]

5. Preservam a doutrina bíblica das heresias surgidas no decorrer da história, revelando-se de grande utilidade, especialmente nas questões controvertidas, dando-nos uma exposição sistemática e norteadora a respeito do assunto.

6. No que se refere à compreensão bíblica, permitem distinguir nossas igrejas das demais.

7. Servem de elemento regulador do ensino ministrado na Igreja e de seu governo, disciplina e liturgia. James Orr (1844-1913), na obra-prima O progresso do dogma, disse: ".... A idade da Reforma se destacou por sua produtividade de credos. Faremos bem se não menosprezarmos o ganho que resulta para nós destas criações do espírito do século XVI. Cometeremos grave equívoco se, seguindo uma tendência prevalecente [1897] nos permitirmos crer que são curiosidades arqueológicas. Esses credos não são produtos ressecados como o pó, senão que surgiram de uma fé viva, e encerram verdades que nenhuma Igreja pode abandonar sem certo detrimento de sua própria vida. São produtos clássicos de uma época que se comprazia em formular credos, com o qual quero dizer, uma época que possuía uma fé que é capaz de definir-se de modo inteligente, e pela qual está disposta a sofrer se for necessário - e que, portanto, não pode por menos que expressar-se em formas que não tenham validade permanente [...]. Esses credos se têm mantido erguidos como testemunhos, inclusive em período de decaimento, às grandes doutrinas sobre as quais foram estabelecidas as Igrejas; têm servido como baluartes contra os assaltos e a desintegração; têm formado um núcleo de reunião e reafirmação em tempos de avivamento; e talvez têm representado sempre com precisão substancial a fé viva da parte espiritual de seus membros...,". Os credos da Reforma dão, e praticamente pela primeira vez, uma exposição conjunta de todos os grandes artigos da doutrina cristã.

8. Servem de desafio para que continuemos a caminhada na preservação da doutrina e na aplicação das verdades bíblicas aos novos desafios de nossa geração, integrando-nos à nobre sucessão dos que amam a Deus e sua Palavra e que buscam entende-la e aplicá-la, em submissão ao Espírito, à vida da Igreja. Uma tradição saudável tem compromisso com o passado na geração do futuro.[46] Portanto, "o conservadorismo criativo utiliza-se da tradição, não como autoridade final ou absoluta, mas como recurso importante colocado a nossa disposição pela providência de Deus, a fim de nos ajudar a entender o que a Escritura está nos dizendo sobre quem é Deus, quem somos nós, o que é o mundo ao nosso redor e o que fomos chamados para fazer aqui e agora".[47]

O Antigo e o Novo Testamento usaram esse recurso para auxiliar os crentes na vida doutrinária e prática cristã, expressando também o que a Igreja cria. A teologia reformada honra a Bíblia e os credos da Igreja, enquanto estes permanecerem fiéis às Escrituras.

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________________________
[1] A República, 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Guibenkian, 378b-3; 379a.
[2] AGOSTINHO, a cidade de Deus, XVIII.14.
[3] Cf. Alister E. McGrath, Historical Teology, p. 1.
[4] Cf. A. H. STRONG, Systematic, p.1
[5] A. H. STRONG, Systematico Theology, p.1
[6] Louis Berkhof(1873-1957)diz que em geral os teólogos reformados conceberam esta definição (Introduccion a Ia teologia sistemática, p. 30).
[7] A Cidade de Deus, vol.1 VIII.1 p.301.
[8] John Mackay, Prefacio a La teologia cristiana, p. 28.
[9] Principles os Sacred Theology, § 60, p.257s
[10] Ectipo vem do grego ektupon ("cópia de um modelo" ou "reflexo de um arquétipo"), passando pelo latim ectypus ("feito em relevo", "saliente"). É o oposto de arquétipo (do grego archétupon "original", "modelo").
[11] Karl Barth, The Faith of the Church, p. 27.
[12] Dogmática, vol. 1, p. 18.
[13] A expressão calvinismo foi introduzida em 1552 por Joachim Westphal (c. 1510-1574), polemista e pastor luterano em Hamburgo, para referir-se aos conceitos teológicos de Calvino, que deplorou a expressão. Karl Barth disse corretamente: "'Calvinismo' é um conceito que devemos aos historiadores modernos. Quando o usarmos, tenhamos a certeza de que as Igrejas reformadas do século 16, do século 17, e mesmo a do século 18, jamais se nomearam 'calvinistas'" (Calvin, p. 10). Para mais informações, consulte W. S. Reid, "Tradição reformada", em Walter A. Elwell, Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã, vol. III, p. 562. Veja também Alister E. McGrath, Reforrmation Thought, p. 9; A Life of john Calvin, p. 202-203.
[14] Cf. Alister E. McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica, p. 99.
[15] Veja As institutas, III.I.3. Cf. tb. II1.2.5s.
[16] Calvino combatera a "fé implícita", patente na teologia católica romana, chamando-a de "espectro papista" que "separa a fé da Palavra de Deus" (cf. Exposição de Romanos, p. 375).
[17] Veja D. F. Wright, Catecismos, em Walter A. Elwell, Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã, vol. I, 249.
[18] Idem, p. 250.
[19] Lutero viajou pela Saxônia Eleitoral e por Meissen, entre 22/10/1528 e 9/1/1529.
[20] "Catecismo menor", em Os catecismos, p. 363.
[21] Esse catecismo (em português: instrução na fé (Goiânia: Logos, 2003) é um resumo da primeira edição de As Institutas (1536).
[22] As Institutas, IV.1.12. Cf. tb. IV.I.I5 e O livro dos Salmos, vol. 2, p. 401.
[23] As institutas, IV.2.5. Calvino afirmou: “...onde os homens amam a disputa, estejamos plenamente certos de que Deus não está reinando ali” {Exposição de I Coríntios, p. 436). Timothy George comenta: “Calvino não estava disposto a comprometer pontos essenciais em favor de uma paz falsa, mas ele tentou chamar a igreja de volta à verdadeira base de sua unidade em Jesus Cristo" (Teologia dos Reformadores, p. 182-183).
[24] To the Brethren of Wezel, "Letter", John Calvin Collection [CD-Rom], nº 346. p. 32-34.
[25] Exposição de 1 Coríntios, p. 437.
[26] Arcebispo de Canterbury, que em 1549 havia elaborado o Livro de oração comum, no qual enfatizava o culto em inglês, a leitura da Palavra de Deus e o aspecto congregacional da adoração cristã.
[27] Todavia, num primeiro momento, era impossível qualquer tentativa nesse sentido, visto haver problemas geográficos, políticos, objetivos circunstanciais diferentes e mesmo problemas doutrinários.
[28] Letters of John Calvin, p. 132-133.
[29] Veja W. Walker, História da igreja cristã, vol. 2, p. 111.
[30] Veja Jean Delumeau, O Nascimento e afirmação da Reforma, p.149-150. Delumeau cita estatística de Coligny, constando a França, em 1562, de amis de 2.150 “comunidades” reformadas (A civilização do Renascimento, vol. 1, p.129).
[31] Frans L Schalkwijk, Igreja e Estado no Brasil holandês (1630-1654), vol. 25, p. 27.
[32] The Creeds of Christendom, vol. I, p. 536.
[33] O. G. Oliver Jr., “Bullinger”, em Walter A. Elwell, Enciclopédia Histórico-teológica da Igreja Cristã, vol. 1, p. 216.
[34] Discípulos de James Arminius [Jacó Arminio] (1560-1609), antigo aluno do sucessor de Calvino em Genebra de Theodore de Beza (1519-1605).
[35] O “Antigo” Evangelho, p.6.
[36] Archibald A. Hodge, Confissão de Fé de Westminster comentada por A. A. Hodge, p. 41.
[37] R. T. Kendall, “A Modificação puritana da teologia de Calvino”, em: W. Stanford Reid, Calvino e sua influência no mundo ocidental, p.264.
[38] Assim chamados por seguirem o pensamento de Thomas Erasto (1524-1583), médico de Heidelberg, que defendia a supremacia do Estado sobre a Igreja.
[39] Louis Berkhof, Introducción a Ia teologia sistemática, p. 22. John Stott arremata: "Desrespeitar a tradição e a teologia histórica é desrespeitar o Espirito Santo, que tem ativamente iluminado a Igreja em todos os séculos" (A cruz de Cristo, p. 8).
[40] Esboços de theologia, p.99
[41] Capítulo I, seção 10.
[42] As insondáveis riquezas de Cristo, p. 85-86.
[43] Idem, p. 254.
[44] "O conforto do conservadorismo", em Michael Horton, Religião de poder, p. 235.
[45] Veja Ph. J. Spener, Mudança para o futuro, p. 32-33,57-58,118.
[46] "A tradição é o sangue da teologia. Separada da tradição, a teologia é como uma flor cortada sem suas raízes e sem o solo, logo murcha na mão. Uma sã teologia nunca nasce de novo. Ao honrar a sã tradição, se assegura a continuidade teológica com o passado. Ao mesmo tempo, a tradição cria a possibilidade de abrir novas portas para o futuro. Como diz o provérbio: 'A tradição é o prólogo do futuro.' Por isso, toda dogmática que se preze como tal deve definir sua posição em uma ou outra tradição confessional" (Gordon J. Spykman, Teologia reformacional. 5).
[47] J. I. Packer, "O conforto do conservadorismo", em Michael Horton, Religião de poder, p. 241.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

PAULO - UMA BIOGRAFIA [Resenha]


WRIGHT, N. T. Paulo – Uma Biografia. Rio de Janeiro [RJ]: Thomas Nelson Brasil, 2018. 480p. 


O AUTOR E O SEU LIVRO

Nicholas Thomas Wright - (nascido em 1 de dezembro de 1948) é um erudito inglês do Novo Testamento, teólogo Paulino, e bispo anglicano aposentado. Entre 2003 e 2010, ele foi o bispo de Durham. Ele então se tornou Professor de Pesquisa do Novo Testamento e Cristianismo Primitivo no St Mary's College na Universidade de St Andrews, na Escócia. Ele escreve sobre teologia, vida cristã e o relacionamento dessas duas coisas. Ele defende uma reavaliação bíblica de questões teológicas como justificação, ordenação de mulheres, e opiniões cristãs populares sobre a vida após a morte. Ele também criticou a ideia de um arrebatamento literal. Autor de mais de setenta livros, Wright é altamente considerado nos círculos acadêmicos e teológicos por sua série "Christian Origins and the Question of God". O terceiro volume, A Ressurreição do Filho de Deus, é considerado por muitos pastores e teólogos como uma obra cristã seminal sobre a ressurreição do Jesus histórico, enquanto o quarto volume mais recentemente lançado, Paulo e a Fidelidade de Deus são aclamados como os grandes trabalhos de Wright.

A obra Paulo - Uma Biografia é a cativante reconstrução da vida e do pensamento de Paulo, escrita com excelência por um dos estudiosos paulinos mais influentes da atualidade, traz à tona o mundo romano antigo em todos os detalhes: sociais, históricos e culturais.

Nesta biografia, N. T. Wright oferece uma visão fascinante da história de Paulo, levando-nos a caminhar ao lado do apóstolo, observando, aprendendo, sofrendo e vibrando com ele. O autor nos guia pelas jornadas fascinantes do antigo perseguidor de cristãos, cidade após cidade, onde pregou a mensagem revolucionária do evangelho da salvação e deixou ali um legado cujas reverberações são visíveis até hoje.

No livro Paulo - Uma Biografia, N. T. Wright não nos apresenta o retrato de um teólogo impassível ou de um evangelista implacável, mas a história de um personagem complexo, multifacetado e que pode, sem dúvidas, ser considerado um dos maiores líderes da história da humanidade.

O livro além lista de mapas, prefácio e introdução e tabela cronológica, está dividido em três longas partes.


PARTE 1 – PRIMÓRDIOS: Constituídos por quatro capítulos: 1. Zelo, 2. Damasco, 3. Arábia e Tarso e 4. Antioquia.

“[...] Vislumbramos o pequeno garoto, precoce pela sua idade, absorvendo histórias ancestrais e lendo-as sozinho, sem perceber quão incomum era para um menino a leitura de grandes livros, para início de conversa. Em famílias judaicas, o estudo da Torá pode ser assim: o coração e a mente jovens podem absorvê-la em sua totalidade, sentir seu drama e ritmo, saborear sua história e a promessa ancestral. O jovem pode aprender a se localizar nos Cinco Livros de Moisés da mesma forma como conhece o caminho ao redor de sua própria casa, e sentimos o deleite silencioso dos pais de Saulo em seu entusiasmo jovial. Não se tratava simplesmente de um conhecimento intelectual. Longe disso. A vida judaica era e ainda é centralizada no ritmo da oração. Vemos o jovem Saulo aprender como amarra os tefillin – pequenas caixas de couro contendo passagens bíblicas-chave – no braço e na cabeça, segundo as instruções de Moisés aos judeus do sexo masculino para uso durante as orações matinais. Vemo-lo recitando Salmos. Ele aprende a invocar o Único Deus sem pronunciar, de fato, o sagrado e inescrutável Nome em si, declarando lealdade três vezes ao dia, como um jovem patriota saudando a bandeira: “Shema Ysrael, Adhonai Elohenu, Adhonai Echad!” – “Escute, ó Israel: o Senhor, nosso Deus, o Senhor é um!” Saulo pode ser jovem, porem alistou-se; ele é um soldado leal e será fiel”. [p.43-44]


PARTE 2 – ARAUTO DO REI, é o mais longo de todos, pois possui 9 capítulos. São os seguintes: 5. Chipre e Galácia; 6. Antioquia e Jerusalém; 7. Rumo à Europa; 8. Atenas; 9. Corinto I; 10. Éfeso I; 11. Éfeso II; Corinto II e 13. De volta a Jerusalém.

“Para Paulo e Barnabé, o importante era que o Deus de Israel, o Criador do mundo, havia feito em Jesus aquilo que sempre prometera, cumprindo a narrativa antiga que remontava a Abrão e Davi e rompia a “barreira de Moisés”, a longa percepção judaica de que o próprio Moisés advertira sobre a quebra da aliança e sua consequência. E se isso agora aconteceu, se a morte do Messias lidou com “poderes” que haviam prendido judeus e gentios, e sua ressurreição inaugurou uma nova ordem mundial tanto “na terra como no céu”, então nações na judaicas não estavam apenas livres para abandonar os ídolos agora impotentes para servirem ao Deus Vivo e Verdadeiro, mas até mesmo livres do problema da “impureza” – idolatria e imoralidade, citadas sempre como razões pelas quais judeus não deveriam se confraternizar com os gentios -, tudo isso havia sido resolvido. O significado radical da cruz do Messias era a razão, em ambos os aspectos, de que agora deveria existir uma única família, formada por todo o povo do Messias. [...] Por que esse movimento extraordinário, inaugurado por este homem enérgico e subversivo, espalhou-se de forma extraordinária?” [152-153]


PARTE 3 – O MAR, O MAR: É a menor parte e formado por dois capítulos. 14. De Desareia a Roma e além? E 15. O desafio de Paulo.

Creio que um dos maiores desafios que o Apóstolo Enfrentou foram as prisões e consequentemente sua morte. Existe muita discussão em relação ao número de prisões que o apóstolo Paulo sofreu. Essa discussão se dá, principalmente pelo fato de o livro de Atos não descrever toda a história do apóstolo Paulo. Além disso, provavelmente o apóstolo Paulo foi preso algumas vezes por um período muito curto de tempo, como por exemplo, em Filipos (Atos 16:23).

Ao falar sobre suas próprias prisões, o apóstolo Paulo escreve o seguinte: “São ministros de Cristo? (falo como fora de mim) eu ainda mais: em trabalhos, muito mais; em açoites, mais do que eles; em prisões, muito mais; em perigo de morte, muitas vezes.” (2 Coríntios 11:23)

Considerando apenas as principais prisões do apóstolo Paulo, sabe-se que ele foi preso em Jerusalém (Atos 21), e para impedir que fosse linchado, ele foi transferido para Cesareia. Nessa cidade Felix, o governador romano, deixou o apóstolo Paulo na prisão por dois anos (Atos 23-26). Festo, sucessor de Felix, sinalizou que poderia entregar Paulo aos judeus, para que por eles ele fosse julgado.

Como Paulo sabia que o resultado do julgamento seria totalmente desfavorável a sua pessoa, então na qualidade de cidadão romano, ele apelou para César. Depois de um discurso perante o rei Agripa e Berenice, o apóstolo Paulo foi enviado sob escolta para Roma. Após uma terrível tempestade, o navio a qual ele estava naufragou, e Paulo passou o inverno em Malta.

Finalmente o apóstolo Paulo chegou a Roma na primavera. Na capital do Império ele passou dois anos em prisão domiciliar. Apesar disso ele tinha total liberdade para ensinar sobre o Evangelho (Atos 28:31). É exatamente nesse ponto que termina a história descrita no livro de Atos dos Apóstolos. O restante da vida de Paulo precisa ser contado utilizando-se os registros de outras fontes.

Por isso, as únicas informações adicionais que encontramos no Novo Testamento sobre a biografia do apóstolo Paulo, parte das Epístolas Pastorais. Essas epístolas parecem sugerir que o apóstolo Paulo foi solto depois dessa primeira prisão em Roma relatada em Atos por volta de 63 d.C. (2 Timóteo 4:16,17). Após ser solto, ele teria visitado a área do Mar Egeu e viajado até a Espanha.

Depois, novamente Paulo foi aprisionado em Roma. Desa última vez ele acabou executado pelas mãos de Nero por volta de 67 e 68 d.C. (2 Timóteo 4:6-18). Tudo isso indica que as Epístolas Pastorais documentam situações não historiadas em Atos. A Epístola de Clemente (cerca de 95 d.C.) e o cânon Muratoriano (cerca de 170 d.C.) testificam sobre uma viagem do apóstolo Paulo a Espanha.

A tradição cristã conta que a morte do apóstolo Paulo ocorreu junto da estrada de Óstia, fora da cidade de Roma. Ele teria sido decapitado. Talvez o texto que mais defina a biografia do apóstolo Paulo seja exatamente esse: Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. “Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda.” (2 Timóteo 4:7,8)


SOBRE O APÓSTOLO PAULO

O APÓSTOLO PAULO É UMA DAS POUCAS PESSOAS do mundo antigo cujas palavras ainda têm a capacidade de saltar da página e nos desafiar. Quer concordemos com ele, quer não (quer gostemos dele, quer não!), as cartas de Paulo são pessoais e intensas; ás vezes, emotivas, e outras, provocativas; na maioria dos casos, densas, porém nunca monótonas. Mas quem era ele? O que o motivava? Por que essa carreira missionária aparentemente imprevisível teve tamanha e profunda influência no mundo de Roma e da Grécia antiga e, portanto, em nosso mundo atual?

Qualquer resposta digna deve pressupor o estudo histórico e teológico detalhado das cartas de Paulo em debate com a erudição em progresso. Tentei fazer isso em O ponto culminante da aliança (1991/1992). Paulo e a fidelidade de Deus (2013), na coletânea de ensaios intitulada Perspectivas paulinas (2013) e no levantamento de pesquisas modernas (sobretudo anglófonas) Paulo e seus intérpretes atuais (2015). Entretanto, as perguntas do biógrafo são sutilmente diferentes, tendo em vista que estamos à procura do homem por trás dos textos.

Seguindo os passos da maioria dos historiadores, tento encaixar toda evidência relevante dentro do modelo mais simples possível; além disso, não considero uma virtude tomar partido cedo demais contra a autoria paulina de algumas das cartas, nem contra a historicidade de Atos dos Apóstolos (com base, talvez, no fato de Lucas tê-lo escrito muito tempo depois dos acontecimentos, inventando material que se encaixasse em sua teologia). Cada geração deve começar o quebra-cabeças com todas as peças na mesa e ver se elas podem ser plausivelmente encaixadas a fim de criarem um caso de prima fade. Particularmente, parto de dois grandes pressupostos: primeiro, que Paulo abordou o problema retratado em Gálatas a partir da região sul do mesmo território; segundo, ele estava aprisionado em Éfeso quando redigiu as Cartas da Prisão. No primeiro caso, estou seguindo, dentre muitos outros, Stephen

Mitchell: “Anatólia: terra, homens e deuses na Ásia Menor, vol. 2, O surgimento da igreja”. No segundo, estou em dívida com muitos autores, incluindo um trabalho mais antigo feito por um predecessor meu em St. Andrews — George S. Duncan: “O ministério de Paulo em Éfeso: uma reconstrução”. Descobri que essas hipóteses são completamente coerentes com os dados históricos, teológicos e biográficos. Você encontrará referências a fontes primárias nas notas de rodapé, mas procurei não listá-las de maneira exagerada, especialmente no que diz respeito a Atos.

Uma pequena observação sobre estilo: a despeito de protestos, mantenho o e em caixa baixa em "espírito (santo)" por corresponder à minha própria tradução, usada por mim aqui (traduções de citações do Antigo Testamento são minhas ou da NVI), particularmente por que Paulo, ao escrever a palavra grega pneuma, não tinha a opção de distinguir entre maiúscula e minúscula; de qualquer maneira, o objetivo das cartas era que fossem lidas em voz alta. A palavra pneuma tinha de encontrar seu caminho em um mundo onde havia tons diferentes de significado filosófico e religioso, sem a ajuda de marcadores visíveis, e isso por si só estabelece algo importante a respeito de Paulo, o qual contava e vivia uma mensagem judaica modelada por Jesus em um mundo confuso e controverso.


A CULTURA HUMANA NORMALMENTE se desenvolve na velocidade de uma geleira, mas nós, modernos, acostumados com mudanças bruscas e revoluções dramáticas, precisamos nos lembrar de que as coisas nem sempre foram assim. Aliás, a regra tem sido devagar e sempre, e invenções ocasionais que transformam repentinamente a vida humana para o bem ou para o mal (roda, prensa móvel, pólvora, internet) são raras.

Por isso, acontecimentos que se desdobraram há dois mil anos no sudeste da Europa e na Ásia Ocidental ainda são, em retrospecto, tão surpreendentes quanto na época em que ocorreram. Um homem enérgico e falador, mas pouco atraente e de etnia desprezada ia de cidade em cidade falando sobre o Único Deus e seu "filho", Jesus, estabelecendo, entre aqueles que aceitavam sua palavra, pequenas comunidades e escrevendo-lhes cartas, cujo material explosivo é tão recente nos dias de hoje quanto no tempo em que foi primeiramente ditado. Paulo contestaria a sugestão de ter mudado o mundo; Jesus, teria dito ele, havia-o feito. Aquilo, porém, que disse a respeito do Messias, bem como a respeito de Deus, do mundo e do que significa ser genuinamente humano, foi criativo e convincente, mas também polêmico, e, desde então, o mundo não seria mais o mesmo.

Considere os seguintes fatos impressionantes. Levando-se em conta as traduções-padrâo modernas, as cartas de Paulo ocupam, em média, menos do que oitenta páginas; e mesmo quando tomadas como um todo, elas são mais curtas do que qualquer dos diálogos de Platão ou dos tratados de Aristóteles. É seguro dizer que essas cartas, página por página, geraram mais comentários, mais sermões e seminários, mais monografias e dissertações do que quaisquer outros escritos do mundo antigo. (Outro exemplo são os evangelhos que, tomados como um todo, são uma vez e meia o tamanho das obras de Paulo).

Tal fato gera uma série de questões para qualquer historiador ou aspirante a biógrafo: Como isso aconteceu? O que esse pequeno homem enérgico tem que outros não tinham? O que pensava fazer e por quê? Como alguém com sua origem e formação, que já havia gerado santos e eruditos, embora ninguém como Paulo, veio a falar, viajar e a escrever dessa forma? Este é o primeiro desafio do livro: entrar na mente, no entendimento, na ambição (se é que "ambição" é a palavra certa) de Paulo, o apóstolo, conhecido inicialmente como Saulo de Tarso. O que, no fundo do seu coração, motivava-o?

Esta pergunta conduz imediatamente à segunda. Quando Saulo se deparou com a notícia a respeito de Jesus, sua mente não era um quadro vazio; na verdade, ele se dirigia, a toda velocidade, na direção oposta. Mais de uma vez ele lembra seus leitores de que havia sido criado em uma escola de pensamento judaico que aderia estritamente às tradições ancestrais. Na juventude, Saulo de Tarso havia se tornado uma luz condutora nesse movimento, cujos membros tinham o propósito de urgir aos concidadãos judeus a uma obediência mais radical aos códigos antigos e desencorajá-los de qualquer desvio, por todos os meios possíveis, mesmo pelo uso, se necessário, de violência. Mas por que tudo isso mudou? O que exatamente aconteceu na estrada de Damasco?

Em primeiro lugar, e como sinal de que há curvas delicadas a serem percorridas, a palavra judaísmo" no mundo de Paulo (do grego, ioudaísmos) não se referia ao que chamaríamos hoje de "religião". Na verdade, e mais uma vez como sinal de que há desafios pela frente, a própria palavra "religião" passou por uma mudança de significado. Nos dias de Paulo, religião" consistia em atividades divinamente relacionadas que, juntamente com a política e a vida comunitária, mantinham uma cultura unida e interligavam os membros dessa cultura às divindades e uns aos outros. No mundo ocidental moderno, "religião" tende a significar crenças individuais e práticas relacionadas a Deus, supostamente distintas de cultura, política e vida comunitária. Para Paulo, religião" entrelaçava-se com todos os aspectos da vida; entretanto, para o mundo ocidental moderno, religião é algo à parte.

Quando, então, naquela que foi provavelmente sua primeira carta, Paulo fala sobre como "no judaísmo [...] superava a maioria dos judeus de [sua] idade", a palavra "judaísmo" não se refere a uma "religião", mas sim a uma atividade: a propagação e defesa zelosa do estilo de vida ancestral. Do ponto de vista de Saulo de Tarso, os primeiros seguidores de Jesus de Nazaré eram um exemplo primário do comportamento transgressor que devia ser erradicado caso o objetivo de Israel fosse honrar a Deus. Ele era, portanto, "zeloso" (termo com o qual se autodenominava, indicando o uso de violência física, não apenas sentimentos fortes) na perseguição do povo cristão, e era isso que ele queria dizer com íoudaismos. Todo o possível deveria ser feito para erradicar um movimento que impediria os verdadeiros propósitos do Único Deus de Israel, cujos planos divinos Saulo e seus amigos acreditavam estar, enfim, às portas de um cumprimento glorioso - até Saulo vir a acreditar, na estrada de Damasco, que esses planos haviam sido, de fato, gloriosamente cumpridos, mas de uma maneira jamais imaginada.

O segundo conjunto de perguntas dá a isso uma mudança radical: como Saulo, o perseguidor, tomou-se Paulo, o apóstolo? Que tipo de transição foi essa? Trata-se, em algum sentido, de uma "conversão"? Paulo "mudou de religião"? Ou podemos aceitar o próprio relato de que, ao seguir o Jesus crucificado e ao anunciar que o Deus de Israel o havia ressuscitado dentre os mortos, Paulo estava, na verdade, sendo leal ás suas tradições ancestrais, embora de uma maneira que nem ele nem qualquer outro havia antecipado?

Sem dúvida, essas questões confundiam os contemporâneos de Paulo, que era visto com grande suspeita, inclusive por outros seguidores de Jesus. Teria incluído seus compatriotas judeus, alguns dos quais reagiram de modo tão violento para com ele quanto ele mesmo o havia feito no início do movimento de Jesus. Teria certamente incluído os povos gentílicos nas cidades para as quais foi, muitos dos quais pensavam que ele era tanto louco quanto perigoso (e um bom judeu para "dar pontapés", segundo alguns teriam dito com desprezo). Por todo lugar aonde ia, pessoas teriam indagado quem ele era, o que pensava estar fazendo e o que significava a um judeu nacionalista linha-dura tornar-se fundador de comunidades multiétnicas.

Essas questões não parecem ter trazido tanta confusão ao próprio Paulo, ainda que, conforme veremos, ele próprio tivesse suas próprias fases de trevas. Paulo havia refletido sobre elas e chegado a respostas sólidas e aguçadas, mas elas continuaram a desafiar leitores e pensadores desde então, e eles confrontam um mundo particularmente moderno que tem sido confuso sobre muitos aspectos diferentes da vida humana, incluindo ás vezes aqueles rotulados pela delicada palavra religião. Paulo confronta o nosso mundo da mesma forma como confrontara o seu, com questões e desafios, e este livro, uma biografia de Paulo, é uma tentativa de tratar dessas questões. Espero que ele também ofereça esclarecimentos aos desafios.

O mundo no qual ele vivia era o mundo em que o evangelho irrompera, o mundo ao qual o evangelho estava desafiando, o mundo que o evangelho transformaria. Seu contexto mais amplo — a massa complexa de países e culturas, mitos e histórias, impérios e artefatos, filosofias e oráculos, príncipes e cafetões, esperanças e medos — esse mundo real não representava um panorama incidental a uma mensagem "atemporal" que poderia, em princípio, ter sido anunciada por qualquer um e em qualquer cultura. Ao descrever o engajamento de Paulo com estoicos, epicureus e outros pensadores em Atenas, Lucas está apenas tomando explícito o que já era implícito no decorrer de todas as cartas de Paulo: que, na linguagem de hoje, Paulo era um teólogo contextual. Isso não quer dizer, de maneira nenhuma, que podemos relativizar suas ideias ("Paulo disse isso naquele contexto, mas nosso contexto é diferente; por isso, podemos deixá-lo de lado); pelo contrário: é nesse contexto que a lealdade de Paulo com relação à esperança de Israel se manifesta de modo tão intenso, uma vez que ele cria que, em Jesus, o Único Deus havia agido "quando chegou a plenitude do tempo". Paulo via a si mesmo vivendo no momento mais crucial da história, e, segundo teria reivindicado, seu anúncio a respeito de Jesus naquela cultura e naquele momento era, em si, parte do plano divino a longo prazo.

Assim, quando tentamos entender Paulo, devemos fazer o trabalho árduo de entender seu contexto; ou, antes, devemos usar o plural: contextos. Seu mundo judaico, bem como o mundo multifacetado greco-romano de política, "religião", filosofia e tudo o mais que afetava de mil maneiras diferentes o mundo judaico em meio a ele era muito, muito mais do que uma simples "moldura" dentro da qual podemos exibir um retrato paulino.


O PRÓPRIO MUNDO JUDAICO no qual o jovem Saulo cresceu estava aterrado no solo mais amplo da cultura greco-romana, e, como geralmente acontece em história antiga, sabemos menos do que gostaríamos sobre a cidade de Tarso, terra natal de Saulo, porém, o suficiente para formarmos uma imagem. Tarso, uma cidade nobre na Cilicia, dezesseis quilômetros junto ao rio Cydnus e a sudeste da atual Turquia, estava nas grandes rotas entre o oriente e o ocidente. Tarso rivalizava com Atenas como centro de filosofia, tanto mais porque metade dos filósofos de Atenas haviam ido para a cidade cem anos antes, quando Atenas apostou no cavalo errado em um jogo de poder Mediterrâneo e sofreu a ira de Roma. No entanto, embora cruéis, os romanos também eram pragmáticos e, estabelecido que estavam no comando, satisfaziam-se em estabelecer acordos.

Não sabemos por quanto tempo sua família viveu em Tarso, mas lendas posteriores sugerem várias opções, uma das quais que seu pai, ou avô, havia vivido na Palestina e teria se mudado durante uma das agitações periódicas sociais e políticas, que, nesse mundo, sempre trazia conotações religiosas. O que sabemos de fato a respeito dos familiares de Saulo é que pertenciam à escola judaica mais rigorosa: eles eram fariseus.

E como um bom fariseu, Paulo se move com elegante facilidade entre Gênesis e Salmos, Deuteronômio e Isaías. O apóstolo sabe como a história funciona e conhece seus altos e baixos, suas voltas e reviravoltas, e também pode fazer alusões complexas com extrema destreza, produzindo trocadilhos e outros jogos de palavras em línguas diferentes. A nova perspectiva radical de visão fornecida pelo evangelho de Jesus é um ângulo novo a partir de textos que ele já sabe do avesso. É certo que Paulo estava familiarizado com outros livros judaicos da época, como Sabedoria de Salomão, e possivelmente com algo da filosofia de Filo, seu quase contemporâneo — Filo e autores da época também conheciam sua Bíblia extremamente bem —, e Saulo se equipara a eles de igual para igual ou até mesmo os excede.

Ainda mais: independentemente de Saulo ter ou não lido filósofos não judeus de seu tempo ou as grandes tradições que remontam a Platão e Aristóteles, ele conhece as ideias, pois as ouviu nas ruas e discutiu-as com amigos. Ele conhece os termos técnicos, os sistemas filosóficos que sondam os mistérios do universo e as funcionalidades interiores do ser humano, bem como as teorias que posicionam os deuses distantes do mundo, como os epicureus, ou que os atraem em um todo único, to pan, o todo", como os estoicos. É improvável que ele tenha lido Cícero, cujo livro. De Natura Deorum, datado cerca de um século antes de sua própria obra madura, discutiu todas as opções então disponíveis a um romano educado (obviamente, isso não inclui uma visão de mundo judaica). Contudo, se alguém na loja de tendas começasse a expor as ideias de Cícero, Saulo saberia sobre o que estavam conversando e seria capaz de argumentar com essa pessoa nos próprios termos desta. Ele se sente, assim, completamente à vontade nos mundos da história judaica e da filosofia não judaica, e podemos suspeitar que ele, como alguns de seus contemporâneos, até mesmo gosta do desafio de unificá-las.

De fato, lendo algumas de suas cartas, podemos até pensar que ele havia sido amigo de infância de alguém como o filósofo Epiteto, um pensador prático determinado a tirar a filosofia da sala de aula e levá-la para a rua, tendo em vista que ele emprega manobras retóricas bem conhecidas. Quando diz aos coríntios que a sabedoria humana é inútil, às vezes soa como um cínico; quando fala sobre virtude, um ouvinte casual pode, por um momento, confundi-lo com um estoico. Quando ele escreve sobre a diferença entre o "homem interior" e o homem exterior, muitos, até hoje, supõem-no como um tipo de adepto do platonismo — embora o que ele diz sobre a ressurreição e a renovação da criação se tornam, então, um problema. O Paulo maduro não teria tido medo de dar impressões como essas; em vez disso, ele crê e diz explicitamente aqui e ali que a nova sabedoria revelada no Messias de Israel pode usar o mundo e incorporar seus insights mais elegantes em uma estrutura diferente e mais ampla. A "boa-nova" do Messias abre, para ele, a visão de toda uma nova criação, na qual tudo que é "verdadeiro [...] nobre [...] [e] correto'" encontrará lugar.

[...]Templo e Torá, os dois grandes símbolos da vida judaica, remetiam à história em que judeus devotos, como Saulo e sua família, criam estar vivendo:

a grande história de Israel e do mundo, que, esperavam, estavam atingindo o ponto onde Deus revelaria sua glória de uma maneira nova. O Único Deus enfim retornaria para estabelecer seu Reino, tornar o mundo inteiro em um vasto Templo cheio de glória e permitir a todos, ou pelo menos ao seu povo escolhido, guardar perfeitamente a Torá. Qualquer um que orasse ou cantasse os Salmos regularmente percebe ria estar pensando nisso, esperando por isso e orando por isso — dia após dia, mês após mês.

Cercado pela agitada cidade pagã de Tarso, o jovem Saulo sabia perfeitamente bem o que isso tudo significava para um judeu leal: significava manter-se puro de idolatria e imoralidade. Havia templos pagãos e altares em cada esquina, e Saulo devia ter ideia do que se passava nesses ambientes. Lealdade significava manter a comunidade judaica pura de todas essas coisas também, afinal, em todos os estágios da história de Israel o povo do Único Deus foi tentado a desistir. Havia uma pressão para o povo ceder e andar conforme o mundo, e, assim, e esquecer-se da aliança era constante, mas Saulo cresceu para resistir à pressão, e isso significava "zelo".

O que nos leva, por fim, ao ponto inicial biográfico que Paulo menciona posteriormente nas cartas. "Zeloso?" — argumenta ele. "Eu perseguia a Igreja!" "Avancei no ioudaísmos além de muitos da minha idade e dentre o meu povo"," afirma. "Era extremamente zeloso da tradição dos meus antepassados". De onde vinha esse "zelo?" Na prática, o que ele queria dizer? Se era isso que motivava o jovem Saulo a prosseguir conforme o tique-taque de um relógio, qual mecanismo levava esse relógio a continuar dando corda? E o que significava, conforme ele mesmo declara em sua primeira carta, trocar esse tipo de "zelo" por outro diferente? A abordagem dessas questões nos traz para o verdadeiro ponto de partida deste livro.


A ENTREVISTA [1]

O que a igreja moderna diria sobre o apóstolo Paulo? Para o estudioso bíblico de renome mundial NT Wright, a mente ocidental moderna se desesperaria com o que esse “extremista” realmente pensava sobre o papel dos cristãos.

Para Wright, Paulo poderia ser considerado uma pessoa até perigosa. O teólogo está lançando seu livro “Paulo: A Biografia”, onde mostra como não procede a tentativa de alguns pastores de tratar o Novo Testamento como uma obra dividida em dois pensamentos distintos.

“Alguns querem contrastar Paulo e Cristo – o primeiro seria austero e agressivo, mais interessado em pecado, doutrina e julgamento após a morte que o último, descrito como um pregador pastoral, que só fala do Reino de Deus”, resume.

Professor da Universidade de St. Andrews, na Escócia, Wright passou grande parte de sua vida estudando a Bíblia e escrevendo. Em seu currículo possui várias obras de denso cunho teológico. A opção agora foi fazer uma biografia do apóstolo contada em forma de romance. Um “drama” envolvente, mostrando como ele passou de um fariseu-perseguidor de cristãos ao pregador que ajudou a estabelecer as bases doutrinárias da igreja.

O autor não tem dúvida que o apóstolo Paulo é “um dos intelectuais públicos mais influentes da história do mundo”, realizando um fato “extraordinário”, considerando que sua obra na verdade fora um punhado de cartas.

“Paulo ensinou à primeira geração da igreja mundial como agir, iniciando um novo processo para ensinar as pessoas a pensar, de maneira diferente, em Cristo. É por isso que ele diz em Romanos 12: ‘Sejam transformados pela renovação de suas mentes’. Esse é o desafio, criar uma nova maneira de pensar”, assegura.

Outro elemento essencial do trabalho de Paulo é a preservação da herança judaica, algo que se choca com a dolorosa realidade do antissemitismo de hoje. “A cultura ocidental ainda não descobriu quem são os judeus e o que devemos pensar sobre eles”, assegura Wright.

“Paulo acredita ser um judeu completo por seguir o Messias de Israel. Grande parte da tradição ocidental posterior ‘filtrou’ os elementos judaicos da sua mensagem”, lamenta o estudioso.

Uma das questões levantadas por Wright no livro é como Paulo ofenderia muitos dos pastores modernos. Em tempos onde se fala tanto em fanatismo religioso, as ideias do apóstolo aos gentios não seriam bem-vindas na maioria dos púlpitos. Afinal, o apóstolo sempre enfatizou que a salvação é só em Cristo, não deixando dúvidas sobre o destino daqueles que não seguem o caminho proposto por Deus: a condenação ao inferno.

Caso fosse colocado em uma igreja típica do século XXI, a reação do público seria: “Obrigado, mas não gostamos disso. Isso nos coloca em problemas, teríamos desentendimentos com nossos vizinhos e nossos amigos, não queremos nada disso”.

Refletindo sobre religião e sociedade no ocidente nas últimas décadas, Wright diz que “a internet e o islamismo são duas coisas importantes que reformularam nossa maneira de pensar e de agir. Agora associamos extremismo aos islâmicos. Qualquer um que tenha uma visão clara sobre o que diz a Bíblia já chamamos de extremista”.

Um dos maiores problemas do evangelho pregado hoje em dia é que as pessoas só querem uma “vida tranquila e abençoada”. “Se Paulo pudesse voltar hoje, acho a coisa que mais iria surpreendê-lo e horrorizá-lo é nossa falta de unidade e pior, o quando não nos importamos com essa falta de unidade. Em todas as suas cartas ele fala ​​sobre unidade… seu foco era na unidade e santidade, algo que seria essencial, mas que hoje não são tratadas como questões essenciais nas igrejas.”

Quando questionado sobre os constantes debates sobre sexualidade, Wright adverte contra um dualismo que envolve a graça da criação e um gnosticismo que minimiza a sacralidade do corpo.

Ele explica: “Precisamos lembrar que a igreja primitiva não seguia os caminhos do mundo, tentando ser como o mundo. Você não pode dar respostas aos dilemas morais de nossos dias, sem ver como os primeiros cristãos abordaram isso. É a máxima paulina novamente: temos que aprender não apenas o que pensar, mas como pensar”.


CONCLUINDO. O máximo deste é o parágrafo que inicia o prefácio: “O apóstolo Paulo é uma das poucas pessoas do mundo antigo cujas palavras ainda têm a capacidade de saltar da página e nos desafiar. Quer concordemos com ele, quer não (quer gostemos dele, quer não!), as cartas de Paulo são pessoais e intensas; ás vezes, emotivas, e outras, provocativas; na maioria dos casos, densas, porém nunca monótonas. Mas quem era ele? O que o motivava? Por que essa carreira missionária aparentemente imprevisível teve tamanha e profunda influência no mundo de Roma e da Grécia antiga e, portanto, em nosso mundo atual?”

Esta é uma obra publicada pela Editora Thomas Nelson Brasil. Para adquirir este livro é só clicar na imagem acima.

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[1] Teólogo diz que Paulo seria considerado um “extremista” pela igreja moderna. Disponível em <https://www.gospelprime.com.br/nt-wright-paulo-extremista-igreja-moderna/>