quarta-feira, 27 de junho de 2018

GÊNESIS: COMENTÁRIO DO ANTIGO TESTAMENTO [Análise e texto]


WALTKE, Bruce K. Gênesis: Comentário do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010, 800p.


Um extenso processo de pesquisa e colaboração levou à criação deste comentário. A fundação de notas exegéticas foi estabelecida no final dos anos 80, quando Bruce preparou as notas de Gênesis para a New Geneva Study Bible. Somos muitíssimos gratos à Foundation for Reformation por sua permissão para o uso destas notas como uma excelente base para este comentário. As primeiras reflexões teológicas e notas expandidas focalizando a análise literária foram desenvolvidas quando Bruce subseqüentemente ensinava Gênesis no Regent College. Em 1997, Bruce e a Zondervan perceberam que a combinação destas notas, análise literária e reflexões teológicas continham os traços de um excelente comentário que enriqueceriam a compreensão do povo deste livro dos primórdios.

Aqui Bruce envolveu Cathi, sua assistente docente naquela época, a fim de colaborar com ele no projeto de escrita, edição e organização. Cathi, anteriormente professora de inglês, parecia bem apta para o projeto, capaz de contribuir não só com a composição e edição, mas também para cuidar da análise literária e dos estudos de mulheres bíblicas.

Quando escreveu as notas originais de suas preleções, Bruce analisou
Gênesis com uma estrutura de livros, atos e cenas no esforço de captar a natureza literária do texto e ajudar seus alunos a apreenderem a estrutura e fluxo de Gênesis. Como esta abordagem incomum provou ser eficaz a ajudar os estudantes em seu estudo do livro, Cathi e Bruce trabalharam juntos para burilar e expandir a análise literária. Cathi providenciou um projeto do mesmo. Então, como inevitavelmente ocorre quando alguém começa um projeto dessa magnitude, Bruce determinou que a pesquisa adicional significativa era necessária para cobrir adequadamente os detalhes de Gênesis. Ele fez extensas adições à análise literária, notas exegéticas e reflexões teológicas. Cathi digitou tudo, tornando-o mais legível, testando Bruce com perguntas desafiadoras e melhorando o fluxo global, dando especial atenção ao plano e estrutura da narrativa. A introdução ao comentário foi escrita por Bruce, inclusive a adaptação de seu ensaio “The Kingdom of God in Biblical Theology”. Utilizando as notas de teologia bíblica de Bruce, Cathi escreveu a seção sobre os poéticos. O processo contínuo de diálogo e colaboração levou ao comentário em sua forma atual.

Nossa esperança e convicção é que a combinação de análise literária, notas exegéticas e reflexões teológicas sejam particularmente úteis a pastores e líderes leigos para ensinar e pregar em Gênesis. Como já se explicou na introdução, seguindo o plano do autor de Gênesis, esboçamos este fazendo uso de um prólogo e dez livros (Tol+dot). No início de cada livro dispomos o tema chave e o esboço do livro. Numa tentativa de captar o fluxo literário da narrativa e para facilidade de análise, dividimos ainda mais Gênesis em atos e cenas. Esta nomenclatura é arbitrária, já que o autor de Gênesis não laborou em estruturas de um drama moderno. Não obstante, cremos que nossas divisões são reais para sua interpretação da história de Israel e proveitosas para demarcar unidades na narrativa. A Análise Literária lança luzes nos principais aspectos literários de cada ato e cena e fornece um útil ponto de partida para o leitor. A análise não é de modo algum exaustiva nem conclusiva. Antes, tentamos modelar uma abordagem literária ao Gênesis. Quando os leitores adentrarem o Gênesis, nossa esperança é que descubram seus ricos tesouros literários, desvendando muitas outras estruturas e técnicas possíveis.

É melhor ler as Notas Exegéticas com a Bíblia em mãos. Tomando por base o texto da NVI, a não ser que se veja por outro prisma, sua intenção é prover um sumário e explicação úteis. Palavras e frases particulares que tenham significação ou requeiram clareza histórica, social ou geográfica são arbitrárias. As Reflexões Teológicas expandem os temas do Gênesis, extraindo conexões com o resto da Escritura e fazendo aplicações à igreja e à vida cristã.

Como ficou estabelecido antes, Quando escreveu as notas originais de suas preleções, Bruce analisou Gênesis com uma estrutura de livros, atos e cenas no esforço de captar a natureza literária do texto e ajudar seus alunos a apreenderem a estrutura e fluxo de Gênesis.

Veja o conteúdo:
Livro 1: Relato dos Céus e da Terra (2.4–4.26)
Livro 2: Relato dos Descendentes de Adão (5.1–6.8)
Livro 3: Relato de Noé e Sua Família (6.9–9.29)
Livro 4: Relato de Sem, Cam, Jafé e Seus Descendentes (10.1–11.9)
Livro 5: Relato dos Descendentes de Sem (11.10-26)
Livro 6: Relato dos Descendentes de Terá (11.27–25.11)
Livro 7: Relato dos Descendentes de Ismael (25.12-18)
Livro 8: Relato dos Descendentes de Isaque (25.19–35.29)
Livro 9: Relato dos Descendentes de Esaú (36.1–37.1)
Livro 10: Relato dos Descendentes de Jacó (37.2–50.26)


Teologia de Gênesis

Baseado naquilo que li, escrevo abaixo um pouco da teologia do Gênesis, fundamentado em outros comentaristas. Como temos dito que esse livro é uma Auto-Revelação de Deus para o povo de Israel, não poderíamos deixar de falar de Sua Pessoa como apresentada por ele. Sobre isso, House diz:

“Certamente tornou-se visível um retrato nítido de Deus. Ele é a única divindade que atua nesses relatos. Só Deus cria, de maneira que só Ele julga o pecado, chama, dirige e abençoa Abraão e seus descendentes, e proteje e livra em todas as circunstâncias o povo agora chamado Israel. Esse Deus comunica-se com o povo alternadamente emanando ordens, fazendo promessas e dando orientação, Ele trabalha para tirar o pecado que atribula toda a raça humana. Esse Deus não tem qualquer começo, rival, limites de tempo ou espaço, falha moral, ou interesses ocultos”[1]


Deus é Criador

Em Gênesis não difícil falar em um Deus Criador: “No princípio criou Deus os céus e a terra”. O relato da criação em Gênesis é realizado em duas etapas para ressaltar a Pessoa do Criador: Enquanto o primeiro relato aponta para um fato (há um Criador de todas as coisas) o segundo relato mais específico sobre a criação do homem apresenta o Criador como zeloso, atencioso e relacional. Essa descrição de Deus é certamente uma demonstração do Seu poder e de Seu cuidado graciosos.

Entretanto, é válido dizer que a descrição da criação demonstra a ordem e a dignidade dela. “Enquanto outras histórias da criação tendem a tratar a raça humana como fonte de irritação para o panteão e o mundo criado como alo que os deuses não pensaram inicialmente, Gênesis 1.1-2.3 apresenta a ordem criada como resultado da atividade intencional da parte do Deus único”.[2]

A unicidade de Deus nos primeiros versos de Gênesis também são também uma descrição de contraste entre YAHWEH, o verdadeiro Deus e os deuses pagãos. Até por que, a descrição de Deus como Criador auto-existente, solitário e auto-suficiente difere gritantemente de outros relatos antigos da criação. Falando sobre a multiplicidade de deuses do paganismo, LaSor, Hubbard e Bush afirmam que “para eles a variedade de forças personificava-se em deuses. Assim, uma divindade era multipessoal, em geral ordenada e equilibrada, mas às vezes caprichosa, instável e temerária. O texto de Gênesis 1 combate tal concepcção de divindade. Ela retrata a natureza surgindo de uma simples ordem de Deus, o que é anterior a ela e dela independente”.[3]

Outro detalhe sobre a Singularidade de Deus como Criador é estampado no uso do termo hebraico bärä’, que descreve sua ação como trazendo a criação do nada (ex nihilo)[4]. Em Gn.1.1 não há qualquer indicação de matéria pré-existente que Deus teria formado, antes “afirma que Deus criou, (bärä’) sem nenhum esforço, todo o universo e tudo o que nele há[5]”. Assim, “o termo hebraico bärä’, ‘criar’, é uma palavra chave, sendo empregada seis ou sete vezes no relato da criação. Essa palavra tem Deus como seu único sujeito no Antigo Testamento, e não se fez nenhuma menção do material a partir do qual se cria algum objeto. Ela descreve um modo de agir que não possui analogia humana. Só Deus cria, assim como só Deus salva”.[6]


Deus é Soberano

Sidlow Baxter quando comenta sobre Gênesis diz: “Pelo fato de ter sido colocado logo no início dos 66 livros, Gênesis nos faz dobrar os joelhos em obediência reverente diante de Deus, por exibir perante os nossos olhos, e trovejar em nossos ouvidos, aquela verdade que deve ser aprendida antes de todas as outras em nosso trato com Deus, em nossa interpretação da história e em nosso estudo da revelação divina, a saber A SOBERANIA DIVINA”.[7]

A soberania de Deus é observada em quase todos os eventos apresentados nesse livro: Ele é o Criador Soberano, o Juiz soberano sobre o pecado do homem, na punição de Caim, no Dilúvio, em Babel. Ele é o Soberano na separação e eleição de Abraão como herdeiro das promessas. Não havia qualquer característica em Abraão digna da atenção de Deus, mas em Sua Soberania Deus o separa para dele fazer uma grande nação. “O Senhor escolhe a Abrão da mesma maneira como decide criar os céus e a terra, ou seja, a partir da liberdade absoluta resultante de ele ser o Deus único, todo-suficiente e independente”.[8]

Toda a história dos patriarcas é uma demonstração da Soberania de Deus: Abraão é eleito soberanamente por Deus; Isaque é mantido soberanamente por Deus; Jacó[9], o mais relutante de todos, demonstra a Soberania de Deus na Preservação de sua Promessa feita a Abraão e em José podemos observar a Soberania de Deus no controle das situações para formar um povo Seu em meio a um tempo de crise.

Até mesmo na tensão entre a Soberana Vontade de Deus e da vontade rebelde de suas criaturas, “o que o homem pecador tenciona para o mal, YAHWEH é mais do que capaz de suplantar para Seus propósitos de bênção e bem estar para o povo de Sua aliança”.[10] A soberania de Deus é capaz de convergir a maldade do homem para bênçãos para os Seus: Esse retrato é vívido em Gênesis.


Deus é Justo

No trato com a humanidade desde a Criação, Deus demonstra sua habilidade para exercer sua Justiça. Na retribuição justa de Gn.3 vemos que Deus é severo no trato com o pecado e na imposição das punições para cada um dos participantes da rebelião contra Ele no Éden. Entretanto, é importante lembrar que “quando Sua bondade original foi desprezada no jardim do Éden em troca da independência que as criaturas queriam Dele, foi Deus quem tomou a iniciativa de buscar o homem (3.8, 9), de prometer a vitória definitiva sobre a serpente pela semente da mulher (3.15) e remediar a nudez e a vergonha do primeiro casal”.[11] No exercício de sua Justa punição, Deus não deixou de manifestar sua Graça Salvadora: O maior prejudicado na queda foi o próprio Deus, pois Ele mesmo assume as piores conseqüências da Queda e doa-se em amor ao mundo.

Da mesma forma o dilúvio revela Sua Justa retribuição à intenção do homem em contraposição à Lei Divina. Em sua Justa Soberania, Deus estabelece o juízo da rebeldia dos homens e os sentencia à morte no Dilúvio. Entretanto, temos que lembrar que Ele mesmo ofereceu 120 anos para o arrependimento dos seres humanos em demonstração de que age com paciência. Isso sem contar que Deus havia deixado um modo para que os homens pudessem ser libertos dessa punição, pela fé na instrução que havia dado a Noé (Hb.11.7). Assim, tanto a Paciência quanto Graça são observadas no exercício da Justiça de Deus.[12]

Deve ser por isso que Ralph Smith diz: “Três coisas são essenciais a um bom juiz: autoridade e soberania; decisões justas e imparciais; e a capacidade de perceber e interpretar corretamente todas as evidências. Javé tem as três qualidades”.[13] Por isso, “a justiça de YAHWEH reflete-se não tanto em declarações sobre Seu caráter quanto nos meios simples e diretos pelos quais Ele julga a falta de conformidade do homem com o padrão de conduta prescrito pelo Criador”.[14]


Deus é Gracioso:

“Pelo contrário, ele opera exclusivamente em benefício do mundo que não tem intenção alguma de fazer o que é certo. Neste caso a eleição demonstra a misericordiosa bondade de Deus com o mundo”.[15]

Por que Deus não opera sua disciplina para com Jacó, que demonstra em sua história não manter um padrão de conduta em nada parecido com o do seu pai? “O fato mais consolador é que Deus não mudou seu propósito, promessa ou poder. O caráter divino continua intacto, acentuando a sensação que o leitor tem de respeito e expectativa diante do futuro”.[16]

“A graça divina seleciona este homem [Jacó] terrivelmente imperfeito, não por causa de mérito algum de sua parte. O amor determina a decisão, e esse amor é tão grande por Jacó quanto é por Abraão e Isaque, pois as promessas divinas feitas anteriormente permanecem de pé”.[17]

“A graça intensifica-se quando o pacto de YAHWEH com a humanidade se focaliza em Abraão e sua linhagem: Ló é preservado pela graça (19.1-31), Isaque é poupado pela graça (cap.22), Jacó é escolhido por graça (25.19-23; cf. Rm.9.11, 12), assim como toda a família patriarcal é libertada da corrupção e miscigenação em Canaã pela provisão graciosa que YAHWEH lhes faz de José como vice-regente do Egito (caps.37-50)”[18]


Deus é Único

Em oposição ao conceito do Oriente Médio Antigo, Gênesis apresenta um Deus que é Único, “nenhuma outra divindade questiona o direito divino de criar; nenhuma outra divindade ajuda Deus a criar nem se opõe à sua atividade criadora. Desde o princípio, ou desde a origem do tempo e da história, só Deus existe ou age”.[19]

“A idéia da unicidade de Deus no Antigo Testamento é singular e significativa. Enquanto outros povos antigos achacam que seus deuses eram muitos, cada um tendo sua própria esfera de influência e responsabilidade, o Israel antigo entendia que seu Deus era um (indivisivo), como todos os atributos e poderes da divindade em si mesmo, governando todas as esferas da existência”.[20]

“A singularidade de YAHWEH aparece em cores ainda mais brilhantes no fato de que Ele é um Deus que, apesar de transcendente e todo-poderoso, busca um relacionamento com Suas criaturas e a elas Se revela. Ele estabelece alianças (cf. 9.8-17; 15.9-21; 17.1-27) e garante seu cumprimento ao prover e proteger milagrosamente a semente que havia prometido (18.13-15; 22.15-18; 25.21).”[21]

O livro está disponível no site da Editora Cultura Cristã


[1] HOUSE, Paul, Teologia do Antigo Testamentopp.107.
[2] HOUSE, Paul, Teologia do Antigo Testamentopp.76.
[3] LASOR, Willian, HUBBARD, David, BUSH, Frederic, Introdução ao Antigo Testamentopp.24.
[4] A expressão latina ex nihilo encontrada em alguns materiais teológicos sobre a Criação é provavelmente proveniente da Vulgata. Em 2Mc.7.28 lemos: “peto nate aspicias in caelum et terram et ad omnia quae in eis sunt et intellegas quia ex nihilo fecit illa Deus et hominum genus” (Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa o que nele existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma. – BJ). Sobre o uso de bärä’ considere alguns usos que descrevem o início de algo novo (cf. Is.41.20; 48.6, 7; 65.17) como um paralelo do conceito criativo ex nihilo. Lembre-se também dos usos que descrevem o sentido de trazer à existência (Is.43.1Ez.21.30; 28.13, 15) como exemplificação da origem ex nihilo de uma ação divina.
[5] SMITH, Ralph, Teologia do Antigo Testamento. pp.172.
[6] LASOR, Willian, HUBBARD, David, BUSH, Frederic, Introdução ao Antigo Testamentopp.24.
[7] BAXTER, Sidlow, Examinais as Escrituras. Vol.I, pp29.
[8] HOUSE, Paul, Teologia do Antigo Testamentopp.92.
[9] Pouquíssimos textos do AT ressaltam os conceitos bíblicos de eleição e graça mais do que os relatos que envolvem Jacó” – HOUSE, Paul, Teologia do Antigo Testamentopp.98
[10] PINTO, Carlos Osvaldo, Foco e Desenvolvimento do Antigo Testamentopp.25
[11] Idem, IBID.
[12] MERRIL, Eugene, The Pentateuch. IN: Holman Bible Handbook
[13] SMITH, Ralph, Teologia do Antigo Testamentopp.206.
[14]  PINTO, Carlos Osvaldo, Foco e Desenvolvimento do Antigo Testamentopp.25.
[15] HOUSE, Paul, Teologia do Antigo Testamentopp.792.
[16] HOUSE, Paul, Teologia do Antigo Testamentopp.97.
[17] HOUSE, Paul, Teologia do Antigo Testamentopp.98.
[18] PINTO, Carlos Osvaldo, Foco e Desenvolvimento do Antigo Testamentopp.26
[19] HOUSE, Paul, Teologia do Antigo Testamentopp.74.
[20] SMITH, Ralph, Teologia do Antigo Testamento, pp.218-219.
[21] PINTO, Carlos Osvaldo, Foco e Desenvolvimento do Antigo Testamentopp.26.

Nenhum comentário: