quarta-feira, 7 de março de 2018

LEI E GRAÇA [Introdução]




UM CRISTÃO VERDADEIRO jamais deixaria de dizer que o crente vive debaixo da graça de Deus, e tão somente pela graça. Essa visão clara ensinada pelos reformadores em oposição aos erros da igreja católica trouxe um novo fôlego à preparação do evangelho de Cristo desde então. Foi como a descoberta do Livro da lei nos tempos do rei Josias (2 Rs 22.8-13), uma redescoberta da verdade que estava oculta. O Evangelho estava “perdido” no meio das tradições da igreja daquela época e a Reforma foi o movimento usado por Deus para “redescobrir” a sua verdade ao seu povo. No entanto, da mesma forma como essa redescoberta não se deu em um só instante, mas foi um processo gradativo, as verdades do evangelho voltaram mais uma vez a serem paulatinamente cobertas pelo erro doutrinário, pela ênfase demasiada em aspectos secundários e pela falta de entendimento das doutrinas centrais das Escrituras. Atualmente, nos encontramos nesse estado nebuloso em que conceitos e tradições angariadas ao longo dos anos confundem, em muitas áreas, a visão bíblica e cristalina do evangelho. Uma dessas áreas é justamente a relação entre lei e graça de Deus. Neste livro tento esclarecer qual é essa relação dentro da perspectiva bíblica.

Esse foi um dos temas mais sérios enfrentados pelos cristãos da era apostólica. Qual foi o assunto em pauta do primeiro concílio cristão conforme o registro de Atos 15? Exatamente a relação entre lei de Moisés e a graça de Deus como era então apresentada pelos apóstolos.

Os apóstolos e presbíteros de Jerusalém se reuniram para debater esse problema, objetivando chegar a uma conclusão. Primeiro apareceu um grupo dizendo que se os novos crentes não fossem circuncidados não poderiam ser salvos (At 15.1). Paulo e Barnabé entraram em grande contenda com os que mantinham essa posição e decidiram recorrer aos anciãos em Jerusalém (At 15.2). Quando os apóstolos chegaram a Jerusalém, um grupo de crentes provenientes do farisaísmo insistiu na questão: para serem salvos os gentios precisavam ser circuncidados e observar a lei de Moisés (At 15.5). Reuniram-se os apóstolos e presbíteros. Pedro tomou a palavra e deu o seu parecer: os gentios são purificados pela fé (At15.9); tanto os judeus com os gentios são salvos pela graça do Senhor Jesus (At 15.11). A multidão ficou em silencia, Paulo e Barnabé tomaram a palavra e contaram as maravilhas que Deus estava realizando entre os gentios (At 15.12). Tiago então falou ao concílio interpretando o texto de Amós 9.11-12. Sua conclusão e parecer foram:

Pelo que, julgo eu, não devemos perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue. Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados. (At 15.19-21).

Esse parecer, aprovado unanimemente pelo concílio, foi enviado em forma de carta a Antioquia por mãos de Paulo e Barnabé, Barsabás e Silas. Ensina-nos Lucas que a igreja se alegrou grandemente com aquele parecer. Foi o primeiro debate público da igreja sobre os temas lei e graça, ou lei e evangelho.

Mas esse não seria o fim das controvérsias em torno da relação entre lei e a graça. O assunto ainda aparece outras vezes nos escritos do Novo Testamento. Paulo o retoma em suas cartas. O mesmo faz Tiago.

Por que o assunto continuava a levantar perguntas? O que estava em jogo quando se discutia a relação entre lei e a graça ensinada nas Escrituras? Quais são os grandes problemas encontrados?

De um lado, encontramos no meio do povo de Deus grupos que enfatizam o papel da graça de tal modo que se esquecem do propósito de Deus ao dar a sua lei ao seu povo. Alguns se tornam tão extremos e, sua posição que chegam a ser acusados de libertinos. Do outro lado, encontramos grupos que se apegam à lei de tal maneira que parecem, literalmente, escravos dela. Vivem debaixo da lei de tal forma que fica difícil enxergar em que a graça de Deus opera em suas vidas. Esses são acusados de estarem voltando à salvação pelas obras e de práticas do legalismo.

Qual a perspectiva bíblica sobre o assunto? Como chegar ao equilíbrio? As respostas a essas questões vão além da apresentação de uma formulação teológica, mas, como toda teologia séria, afetam todo o modo de vida daqueles que as buscam. Minha intenção ao escrever sobre o assunto é trazer a perspectiva bíblica e confessional ao leitor comum, não ao teólogo ou acadêmico. Confesso ter levando um Bomtempo para entender essa relação na perspectiva correta que a Teologia Reformada nos legou. Não que haja um pensamento único e absoluto sobre a matéria entre os reformadores e reformados, mas fica claro e evidente que entre os reformados do passado, conforme expressaram seu pensamento nas confissões históricas, havia certa concordância sobre o papel da graça e a sua relação com a lei.

Depois de estudar e entender, percebi que a visão bíblico-reformada ajuda o cristão a desfrutar de ambas as coisas: do beneplácito da graça e do auxílio da lei, cada uma de acordo com o papel que a elas é estabelecido na própria Escritura. Deixar de entender essa relação é perder a essência do ensino bíblico. Ainda que sejam distintas, a lei e a graça de Deus são inseparáveis. De nossa visão sobre a lei depende a nossa visão sobre a graça.

J. Gresham Machen, famoso teólogo norte-americano, escreveu em 1946 a respeito dessa relação:

Assim sempre é: uma visão pequena da lei sempre traz o legalismo à religião; uma visão ampla da lei faz do homem um que busque a graça. Queria Deus que esta visão ampla possa novamente prevalecer.” [1]

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MEISTER, Mauro. Lei e Graça. São Paulo: Cultura Cristã, 2016, 144p.


[1] J. Gresham Machem, What is Faith? Edinburgo; Banner os Truth, 1946, p. 142

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