Qualquer
coisa que nos controle se torna nosso deus [...]. Quem busca poder é controlado
pelo poder. Quem busca aceitação é controlado pelas pessoas a quem deseja
agradar. Não controlamos a nós mesmos. Somos controlados pelo senhor de nossa
vida.[1]
Vivemos e trabalhamos em meio a uma grande
variedade de deuses – não apenas deuses de outras religiões, mas também os
deuses da riqueza, da celebridade, do prazer, da ideologia, da realização. A
época em que vivemos pode ser descrita pela frase que resume o livro de Juízes:
“Cada uma fazia o que parecia certo a seus próprios olhos” (21.25, ESV).
Apesar do intervalo de três mil anos, existem
muitos paralelos entre a nossa época e a do livro de Juízes, que relata a
história do povo de Deus – Israel – no período que se estende desde Moisés e
Josué até o surgimento dos primeiros
reis, por volta de 1200 a.C. Aquele foi um período de pluralismo espiritual. A
população de Canaã – a terra que Deus havia prometido aos israelitas e onde
eles viviam mesclados a outras nações – era formada de pessoas tementes a Deus
e de pagãos. Foi um tempo em que os israelitas
tinham de escolher diariamente entre seguia Deus como Senhor e seguir as
preferências e tendências da época. O livro de Juízes se ocupa principalmente
em relatar como Israel fracassou nessa tarefa – como deixou de conhecer, de
amar e de obedecer a Deus para fazer “o que parecia certo a [seus] próprios
olhos”.
O livro de Juízes, então, poderia ser
descrito como: “pessoas desprezíveis realizando coisas deploráveis” e “ficção
barata sobre personagens disfuncionais”. Conforme a história se desenrola, até
mesmo os “heróis”, os juízes, tornam-se cada vez mais corruptos e malsucedidos.
Fazem coisas terríveis, e seus esforços são cada vez menos redentores. É uma
história sombria – aconteceu de verdade. Assim, o leitor se pergunta: por que
carga d’aguas esse livro está na Bíblia?
A resposta é séria – trata-se do Evangelho! O
livro de Juízes mostra que a Bíblia não é um “Livro das Virtudes”; não é uma
coleção de contos inspiradores. Por que? Porque a Bíblia (ao contrário dos
livros em que se baseiam outras religiões) não é um compêndio de exemplos a
serem seguidos. Ela diz respeito a um Deus misericordioso e paciente, que
trabalha incansavelmente em nós e por nosso intermédio, apesar de nossa
teimosia em ir contra seus propósitos. Em última análise, existe um único herói
em Juízes, e ele é divino. Se lermos esse livro da Bíblia como um relato
histórico que mostra Deus trabalhando para RESGATAR seu povo indigno em meio a
confusão causada pelo pecado e para livrá-lo dela, ele ganhará vida em nosso
coração e em nossa mente, e influenciará as circunstâncias de nossa própria
vida. O texto de Juízes não é uma leitura fácil, porém é essencial para a época
em que vivemos.
Quais são os temas principais – ou,
poderíamos dizer, as verdades sobre Deus – que o autor do livro deseja que
aprendamos e ponhamos em prática? Como introdução, apresentamos seis temas que
devem chamar nossa atenção durante o estudo:
1. De
modo incansável, Deus oferece sua graça aos que não a merecem, não a buscam ou
nem mesmo a valorizam, apesar de terem sido salvos por intermédio dela. O
livro de Juízes não se resume a uma série de exemplos a serem seguidos. Embora
revele alguns bons exemplos (Otoniel, Débora), eles aparecem no inicio do livro
e não são predominantes na história. Isso nos ensina que existe um único
salvador, o Senhor Deus. No fim das contas, a essência de Juízes é a GRAÇA
abundante aos maiores pecadores. A graça de Deus triunfa sobre os
comportamentos mais tolos.
2. Deus
quer governar todas as áreas de nossa vida, não apenas uma delas. Deus
queria que os israelitas se apoderassem de toda a terra de Canaã, mas eles
limparam apenas algumas regiões a aprenderam a conviver com os ÍDOLOS que ali
existiam. Ou seja, não rejeitaram a Deus completamente nem o aceitaram
integralmente. O livro de Juízes retrata esse DISCIPULADO e comprometimento
parciais como uma combinação impossível e instável. Deus quer nossa vida por
inteiro, não somente uma parte dela.
3. Existe
uma tensão entre graça e lei, entre condicionalidade e incondicionalidade.
Juízes mostra uma aparente contradição. Por um lado, Deus exige obediência
porque é SANTO. Por outro lado, ele promete dedicação e fidelidade a seu povo. Será
que sua santidade e seus mandamentos condicionais (Façam isso e eu farei aquilo) vão sobrepujar suas promessas (Estarei sempre com vocês, não importam o que
façam), ou suas promessas vão sobrepujar seus mandamentos? Em outros
termos, as promessas de Deus são condicionais ou incondicionais? O livro de
Juízes é crucial, pois mostra que nenhuma das alternativas está correta. Quase
todos os leitores do Antigo Testamento assumem ou uma posição “liberal” (Deus sempre nos abençoará enquanto nos
arrependermos) ou uma posição “conservadora” (Não; Deus só nos abençoa se lhe formos obedientes). O texto de
Juízes nos deixa em estado desequilíbrio – as duas posições são verdadeiras,
mas não completamente verdadeiras – e não resolve a tensão. Contudo, é essa
tensão que impulsiona a narrativa. Somente o Novo Testamento, o EVANGELHO,
mostra como as duas posições podem ser realmente são verdadeiras.
4. Nossa
vida aqui no mundo necessita de avivamento contínuo, e existe um modo de
fazê-lo acontecer. Juízes aprova que o declínio espiritual é inevitável, e
o avivamento espiritual torna-se uma necessidade contínua. Vamos observar um
ciclo regular e repetido de declínio e avivamento. Alguns componentes desse
avivamento são ARREPENDIMENTO, oração, destruição de ídolos e unção de líderes
humanos. O avivamento acontece quando temos o mestre/soberano correto; a
escravidão acontece quando temos o mestre/soberano errado. No Antigo
Testamento, a explicação mais clara sobre avivamento e renovação encontra-se no
livro de Juízes, enquanto, no Novo Testamento, esse papel cabe ao livro de
Atos. Veja, porém, como os ciclos do avivamento em Juízes se tornam cada vez
mais fracos com o passar do tempo, enquanto em Atos eles ficam mais amplos e
fortes.
5. Precisamos
de um Salvador verdadeiro, para quem todos os salvadores humanos apontam por
meio de seus defeitos e virtudes. Como observamos anteriormente, no
primeiro tema, a magnitude crescente do mal e da depravação na narrativa revela
nossa necessidade de um salvador, e não de exemplos a serem seguidos. Mas a
eficácia decrescente dos ciclos de avivamento e a qualidade decrescente dos
juízes revelam a fragilidade de qualquer salvador humano. Os próprios juízes
nos direcionam para alguém superior a eles. Com Otoniel, aprendemos que Deus
salva por meio de todos; com Débora, que ele salva por meio de muitos; com
Gideão, que El salva por meio de poucos; e com Sansão, que ele salva por meio
de um só. Deus salvará ao enviar o Único.
6. Deus
está no controle, seja qual for a situação. O tema mais abrangente talvez seja o menos percebido! A impressão é
que Deus está sempre ausente do cenário em Juízes, mas a verdade é que ele
nunca se ausenta. Ele realiza sua vontade por meio de pessoas fracas e apesar
delas. Seus propósitos nunca serão contrariados, apesar das aparências. Os
moinhos de Deus podem girar vagarosamente, porém moem com extrema eficiência.
É claro que um livro do tamanho deste que
escrevo não pode tratar de cada versículo de um livro do tamanho de Juízes.
Procuro dialogar com várias interpretações de versículos particularmente
estranhos, complicados ou polêmicos. Uma das maiores dificuldades que o leitor
de hoje tem com o livro de Juízes (e Josué), em particular, e com o Antigo
Testamento, em geral, é a ordem de Deus aos israelitas para que “expulsem” os
cananeus de sua própria terra. Como esse é um assunto muito difícil e que
permeia todo o livro de Juízes, exponho algumas idéias no apêndice “A questão da
‘Guerra Santa’”, na p. 211.
Durante o estudo, enfatizarei algumas vezes a
estrutura do livro como um todo, assim como os episódios nele contidos. No
apêndice “O ‘ciclo de Juízes’”, nas p. 207-9, o leitor encontrará gráficos que
o ajudarão a entender de imediato a estrutura geral, quem foram os diferentes juízes
e em que se pareciam e diferiam. No apêndice “Mapa de Israel na época de Juízes”,
na p. 2010, há um mapa mostrando todos os locais onde ocorreram os eventos mais
importantes.
Acima de tudo, tentei deixar a narrativa
falar por si (as histórias, embora geralmente tristes e algumas vezes perturbadoras,
são sempre excitantes e imprevisíveis). Também procurei demonstrar de que
maneira somos direcionados a Jesus, o Juiz por excelência, e como podemos viver
de modo honroso e agradável a ele nas sociedades pluralistas de hoje.
KELLER, Timothy. Juízes para você. São Paulo:
Vida Nova, 2016. 224p.
[1] Rebecca Manley Pippert, Out of the
saltshaker (Downers Grover: IVP books, 1999), p. 48-49 [edição em português:
Evangelismo natural (São Paulo: Mundo Cristã, 1999)].
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