domingo, 11 de março de 2018

SAUDADES DE CASA - UMA JORNADA ATRAVÉS DOS SALMOS DE DEGRAUS [Prefácio]




Alguns sentimentos são difíceis de expressar em palavras. Devem em quando, sinto um repentino senso de familiaridade que gera um profundo anelo que não consigo nem expressar nem satisfazer. Isso acontece diante de um fogo crepitante na época do Natal, ou numa calma tarde de outono enquanto o sol vai sumindo no horizonte. Isso acontece quando vejo o sul nublado e morros áridos, ou quando ouço certos estilos musicais, ou sinto o cheiro de grama recém cortada num anoitecer quente de verão. Isso me acontece quando volto à casa onde cresci ou me lembro de amigos de infância. Em cada uma dessa situações, sinto algo familiar, mas que está ausente.

Em um nível muito mais elevado, todos nós experimentamos aquilo que C. S. Lewis chama de “nostalgia vitalícia”. [1] Ela se origina de nosso anelo inexprimível de sermos reunidos a alguma coisa no universo da qual nos sentimos isolados – algo familiar, mas que nos falta. Essa alguma coisa, evidentemente, é Deus. Ele nos criou à sua imagem, de forma que devemos encontrar a nossa fonte de descanso nele mesmo. Mas nós nos separamos dele, desde então, temos vivido com esse isolamento.

Em 2012, uma senhora idosa da cidade de Borja, Espanha, percebeu que um afresco em uma das paredes estava aparecendo um pouco apagado. O afresco, Ecce Homo, representava Cristo diante do tribunal de Pôncio Pilatos. [2] A mulher, por conta própria, tentou restaurar uma obra de arte quase centenária. O resultado foi desastroso. De acordo com uma reportagem, ela transformou a pintura em algo que parecia um “porco-espinho inchado”.[3] Infelizmente, assim somos nós. O pecado nos desfigurou de tal forma que é impossível sermos reconhecidos. Como resultado dessa desfiguração, perdemos a vida de Deus e o prazer de Deus, e esse isolamento nos levou a nossa “nostalgia vitalícia”.

Mas a história não acaba aqui. Misericordiosamente, o Filho de Deus se aproximou de nós por meio da encarnação. Ele, que criou todas as coisas, foi carregado no ventre de uma mulher, e ele, que sustenta todas as coisas, foi carregado nos braços de uma mulher. Ele se vestiu de nossa humanidade – corpo e alma. Ele chegou tão perto ao ponto de participar da vida num mundo decaído, carregou nosso pecado e vergonha, e provou a morte em nosso lugar. Ele foi esmagado, para que pudéssemos ser curados; humilhado, para que pudéssemos ser exaltados; condenado, para que pudéssemos ser justificados. Naquele momento de completa escuridão e abandono na cruz, ele comprou a prazer de Deus para nós – a restauração e a reconciliação. Seu perdão agora substitui nossa pecaminosidade; seu mérito eclipsa nossa culpa; e sua justiça oculta nossa indignidade. Sua “misericórdia abundante” apaga nossa multidão de “transgressões” (Sl 51.1). [4]

Em virtude de nossa união com Cristo, nós nos aproximamos de Deus e encontramos nele tudo que jamais poderíamos desejar: um bem eterno e espiritual, adequado a todas as nossas necessidades. Nosso conhecimento desse Deus propaga em nossa alma uma paz satisfatória nesta vida e um sabor irresistível daquilo que nos aguarda na glória. Uma vez que voltamos à nossa fonte de descanso, vivemos antecipando a visão beatífica – o dia em que veremos a Deus (Mt 5.8). De certa forma, nós já o vemos agora com os olhos da fé, mas isso não é nada em comparação com o que está por vir. No presente, vemos as perfeições de Deus em seus efeitos, ou seja, em suas obras da criação, providência, e redenção; mas, no futuro, nós o veremos de forma perfeita.

Nós seremos como Cristo, e, por isso, seremos capazes de comungar com Deus nas mais plenas capacidades da nossa alma. Não haverá nada que possa obscurecer, confundir, ou atrapalhar nossa alegria nele. Nosso conhecimento de deus será pleno e perfeito, constante e completo, resultando num deleite até agora desconhecido, quando descansarmos plena e finalmente nele. Até então, estamos numa jornada repleta de alegrias e tristezas, vales agradáveis e montanhas perigosas, conquistas animadoras e perdas mutilantes – uma viagem caracterizada pelo regozijo, pela angústia, pela busca, pelo assombro e pelas saudades.

E isso nos traz a este livro: Saudades de casa: uma viagem através dos Salmos dos Degraus. Não temos certeza absoluta sobre a razão por que estes 15 Salmos – capítulos 120-134 – são chamados de Salmos dos Degraus. Uma das explicações mais razoáveis para o termo degrau (ou subida) é que os israelitas cantavam essa coleção de salmos à medida que viajavam (subiam) para a cidade de Jerusalém para celebrar uma de suas festas anuais, a respeito das quais lemos em Deuteronômio 16.16.

Uma característica singular dos salmos em geral é que eles expressam todo o leque de emoções humanas. João Calvino se refere a eles como “uma anatomia de todas as partes da alma, pois não há emoção que se possa experimentar que não esteja ali representada como num espelho”.[5] O que é verdade a respeito do Livro dos Salmos em geral é, também, verdade e respeito dos Salmos dos Degraus em particular. Em suma, eles são um repertório da experiência humana. Eles nos conduzem numa jornada pelos muitos altos e baixos da vida. Ao fazê-lo, dão forma a nossas perspectivas, regulam nossos sentimentos e instruem nosso bom senso. El nos guiam no caminho dos desejos que glorificam a Deus, nas emoções que magnificam a Deus e nos pensamentos que honram a Deus. Eles nos preparam para orar com fé, à medida que nos convidam a fixar nossos olhos nos céus.

Sempre que nos sentimos afligidos em nossa jornada, temos a tendência de recorrer à qualquer coisa que acreditamos que possa nos ajudar – outra agenda, outro seminário, outro conselheiro. Mas, com muita frequência, negligenciamos a ajuda que Deus nos deu – o Livro dos Salmos, e, em especial, os Salmos dos Degraus. Neles, nos associamos com pessoas que percorreram a mesma estrada em que estamos viajando. Se ouvirmos com cuidado, eles nos ensinarão como olhar para Deus em cada circunstância da vida, e mostrarão como essa mudança em nossa perspectiva fortalecerá nossa fé e ampliará nossa esperança.

Espero que esta ênfase pastoral se torne clara à medida que você percorrer este livro, e minha oração a Deus é que ele abençoe essa jornada para o conforto espiritual do leitor e para eterna glória de Deus.

Deus pro nobis

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YUILLE, J. Stephen. Saudades de Casa – Uma jornada através dos Salmos dos Degraus. Recife: Editora Os Puritanos, 2017, 203p.


[1] Conforme citado por Timothy Keller, The Prodigal God: Recovering the Heart of the Christian Faith (Nova Iorque: Penguin, 2008), 94-95.
[2] Ecce Homo é a tradução latina, conforme a Vulgata, da exclamação de Pilatos registrada em João 19.5. Em português, a frase é: “Eis o homem! ”
[3] Sam Jones, “Spanish Church Mural Ruined by Well-Intentioned Restorer,” The Guardian (August 22, 2012), http://www.theguardian.com/artanddesign/2012/aug/22/spain-church-mural-ruin-restoration.
[4] Salvo outra indicação, todas as citações bíblicas são da versão Almeida Revista e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil.
[5] João Calvino, Commentary on the book os Psalms, em Calvin’s Commentaries, 22 vols. (Grand Rapids: Baker, 2003), 4:XXXVII.

quarta-feira, 7 de março de 2018

LEI E GRAÇA [Introdução]




UM CRISTÃO VERDADEIRO jamais deixaria de dizer que o crente vive debaixo da graça de Deus, e tão somente pela graça. Essa visão clara ensinada pelos reformadores em oposição aos erros da igreja católica trouxe um novo fôlego à preparação do evangelho de Cristo desde então. Foi como a descoberta do Livro da lei nos tempos do rei Josias (2 Rs 22.8-13), uma redescoberta da verdade que estava oculta. O Evangelho estava “perdido” no meio das tradições da igreja daquela época e a Reforma foi o movimento usado por Deus para “redescobrir” a sua verdade ao seu povo. No entanto, da mesma forma como essa redescoberta não se deu em um só instante, mas foi um processo gradativo, as verdades do evangelho voltaram mais uma vez a serem paulatinamente cobertas pelo erro doutrinário, pela ênfase demasiada em aspectos secundários e pela falta de entendimento das doutrinas centrais das Escrituras. Atualmente, nos encontramos nesse estado nebuloso em que conceitos e tradições angariadas ao longo dos anos confundem, em muitas áreas, a visão bíblica e cristalina do evangelho. Uma dessas áreas é justamente a relação entre lei e graça de Deus. Neste livro tento esclarecer qual é essa relação dentro da perspectiva bíblica.

Esse foi um dos temas mais sérios enfrentados pelos cristãos da era apostólica. Qual foi o assunto em pauta do primeiro concílio cristão conforme o registro de Atos 15? Exatamente a relação entre lei de Moisés e a graça de Deus como era então apresentada pelos apóstolos.

Os apóstolos e presbíteros de Jerusalém se reuniram para debater esse problema, objetivando chegar a uma conclusão. Primeiro apareceu um grupo dizendo que se os novos crentes não fossem circuncidados não poderiam ser salvos (At 15.1). Paulo e Barnabé entraram em grande contenda com os que mantinham essa posição e decidiram recorrer aos anciãos em Jerusalém (At 15.2). Quando os apóstolos chegaram a Jerusalém, um grupo de crentes provenientes do farisaísmo insistiu na questão: para serem salvos os gentios precisavam ser circuncidados e observar a lei de Moisés (At 15.5). Reuniram-se os apóstolos e presbíteros. Pedro tomou a palavra e deu o seu parecer: os gentios são purificados pela fé (At15.9); tanto os judeus com os gentios são salvos pela graça do Senhor Jesus (At 15.11). A multidão ficou em silencia, Paulo e Barnabé tomaram a palavra e contaram as maravilhas que Deus estava realizando entre os gentios (At 15.12). Tiago então falou ao concílio interpretando o texto de Amós 9.11-12. Sua conclusão e parecer foram:

Pelo que, julgo eu, não devemos perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue. Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados. (At 15.19-21).

Esse parecer, aprovado unanimemente pelo concílio, foi enviado em forma de carta a Antioquia por mãos de Paulo e Barnabé, Barsabás e Silas. Ensina-nos Lucas que a igreja se alegrou grandemente com aquele parecer. Foi o primeiro debate público da igreja sobre os temas lei e graça, ou lei e evangelho.

Mas esse não seria o fim das controvérsias em torno da relação entre lei e a graça. O assunto ainda aparece outras vezes nos escritos do Novo Testamento. Paulo o retoma em suas cartas. O mesmo faz Tiago.

Por que o assunto continuava a levantar perguntas? O que estava em jogo quando se discutia a relação entre lei e a graça ensinada nas Escrituras? Quais são os grandes problemas encontrados?

De um lado, encontramos no meio do povo de Deus grupos que enfatizam o papel da graça de tal modo que se esquecem do propósito de Deus ao dar a sua lei ao seu povo. Alguns se tornam tão extremos e, sua posição que chegam a ser acusados de libertinos. Do outro lado, encontramos grupos que se apegam à lei de tal maneira que parecem, literalmente, escravos dela. Vivem debaixo da lei de tal forma que fica difícil enxergar em que a graça de Deus opera em suas vidas. Esses são acusados de estarem voltando à salvação pelas obras e de práticas do legalismo.

Qual a perspectiva bíblica sobre o assunto? Como chegar ao equilíbrio? As respostas a essas questões vão além da apresentação de uma formulação teológica, mas, como toda teologia séria, afetam todo o modo de vida daqueles que as buscam. Minha intenção ao escrever sobre o assunto é trazer a perspectiva bíblica e confessional ao leitor comum, não ao teólogo ou acadêmico. Confesso ter levando um Bomtempo para entender essa relação na perspectiva correta que a Teologia Reformada nos legou. Não que haja um pensamento único e absoluto sobre a matéria entre os reformadores e reformados, mas fica claro e evidente que entre os reformados do passado, conforme expressaram seu pensamento nas confissões históricas, havia certa concordância sobre o papel da graça e a sua relação com a lei.

Depois de estudar e entender, percebi que a visão bíblico-reformada ajuda o cristão a desfrutar de ambas as coisas: do beneplácito da graça e do auxílio da lei, cada uma de acordo com o papel que a elas é estabelecido na própria Escritura. Deixar de entender essa relação é perder a essência do ensino bíblico. Ainda que sejam distintas, a lei e a graça de Deus são inseparáveis. De nossa visão sobre a lei depende a nossa visão sobre a graça.

J. Gresham Machen, famoso teólogo norte-americano, escreveu em 1946 a respeito dessa relação:

Assim sempre é: uma visão pequena da lei sempre traz o legalismo à religião; uma visão ampla da lei faz do homem um que busque a graça. Queria Deus que esta visão ampla possa novamente prevalecer.” [1]

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MEISTER, Mauro. Lei e Graça. São Paulo: Cultura Cristã, 2016, 144p.


[1] J. Gresham Machem, What is Faith? Edinburgo; Banner os Truth, 1946, p. 142

terça-feira, 6 de março de 2018

INTRODUÇÃO AO PENTATEUCO



Os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) costumam ser chamados de “a Lei” ou “o Pentateuco” (do grego pentateuchos ou “[livro] de cinco volumes”). Esses livros constituem a primeira a mais importante seção do Antigo Testamento, tanto na Bíblia hebraica quanto na cristã. A divisão tripla da Bíblia hebraica em Lei, profetas e Escritos já aparece no Novo Testamento (Lc 24.44) e no prólogo do livro apócrifo de Eclesiástico (Siraque) (c. 130 a.C). A divisão do Antigo Testamento (a Septuaginta; c. 150 a.C.) também reserva o lugar de honra para o Pentateuco.


AUTOR E DATA

O uso das designações “Livro de Moisés” (2 Cr 25.4; Ne 13.1), “Livro da Lei de Moisés” (Ne 8.1), “Lei do Senhor” (2 Cr 35.26; Ed 7.10), “Livro da lei do Senhor” ( 2 Cr 17.9; Ne 9.3), “Livro da Lei de Deus” (Ne 8.18) se restringe, em sua maior parte, aos escritos pós-exílio. (Não se sabe ao certo se a “Lei [de Moisés]” nos livros mais antigos se refere ao Pentateuco ou a partes do mesmo [p. ex., Js 1.8; 8.34;2 Rs 14.6; 22.8]). O Novo testamento emprega nomes semelhantes para o Pentateuco (Mt 12.5; Mc 12.26; Lc 16.16; Jo 7.19; Gl 3.10). A atribuição dos livros a Moisés ressalta a autoridade do Pentateuco, sendo indicada não apenas pelas designações mencionadas acima que levam o seu nome, mas também pelas palavras de Jesus: “Moisés... escreveu a meu respeito” (Jo 5.46). Lucas afirma a autoria mosaica ao registrar que Jesus explicou as Escrituras “começando por Moisés” (Lc 24.27) e muitos outros autores e personagens do Novo Testamento fazem o mesmo (Mt 8.4; 19.7-8; Mc 1.44; 7.10; 10.3-4; 12.19,26; Lc 16.29,31; 24.44; Jo 1.45; 8.5; At 15.21; 26.22; 28.23; Rm 10.5,19; 2 Co 3.14-15). O próprio Pentateuco fala da contribuição fundamental de Moisés para a sua redação: ele escreveu o código legal, o Livro da Aliança (Êx 24.3-7) e a exposição da lei registrada no livro de Deuteronômio (DT 31.24-26).

Nos dois últimos séculos, porém, quase todos os interpretes que não aceitam o testemunho da Bíblia acerca da sua autoria atribuem a redação final a editores pós-exílio que reuniram de modo criativo pelo menos quatro documentos literários anteriores. Essa visão é conhecida como hipótese documentária. Tomando por base elementos como variações do nome divino (p. ex., “Deus” [Elohim] e “Senhor” [Yahweh]), vocabulário (p. ex., termos hebraicos diferentes para “serva), histórias repetidas (p. ex., situações de perigo envolvendo matriarcas [Gn 12.10-20; 20.1-19; 26.1—11]), leis (p.ex., quanto à Páscoa [Êx 12.1-20,21-23; Dt 16.1-8]), e variações teológicas, esses estudiosos consideram o Pentateuco, essencialmente, uma combinação de narrativas javistas (J; c. 950 a.C.); narrativas eloístas (E; c. 850 a.C.); do documento deuteronômico, principalmente Deuteronômio (D; c. 622 a 587 a.C.); e do documento sacerdotal (P, do alemão “Priesterschrift”; c. 500 a.c.). Na segunda metade do século 20, esse ponto de vista passou por modificações significativas. Com base na forma literária e em evidências arqueológicas, tornou-se claro que todos os documentos citados continham textos muito mais antigos, alguns dos quais do tempo de Moisés. Hoje em dia, aqueles que defendem a hipótese documentária acreditam que os escritores J, E, D e P não foram autores, mas sim editores que reuniram e organizaram textos mais antigos. Em tempos mais recentes, vários estudiosos reconhecem a presença desses supostos documentos do Pentateuco, mas questionam o objetivo e os métodos que levaram à identificação dessas fontes e expressam admiração diante da estrutura unificada do pentateuco.

Considerar Moisés o autor do Pentateuco corresponde a afirmar que ele foi a sua fonte e autoridade fundamental e que, em sua maior parte, os livros do pentateuco foram redigidos originalmente no tempo de Moisés e nas formas que existem hoje. No entanto, devemos admitir que, em conformidade com práticas conhecidas do antigo Oriente próximo, Moisés usou fontes literárias. Em algumas ocasiões, essas fontes claramente identificadas (p. ex., Gn 5.1; Nm 21.14); outras vezes, podem ser inferidas por mudanças nos estilos literários (cf. Gn 1.1-2.3 com Gn 2.4-2.25). Profetas inspirados posteriores que sucederam Moisés na mediação da palavra de autoridade de Deus (cf. Dt 18.15-20), atualizaram o texto com termos linguísticos e históricos e acrescentaram conteúdo, como Gn 36.31 (veja “Introdução ao Gênesis”) e o relato da morte de Moisés (Dt 34.1-12).


UNIDADE

O Pentateuco é tanto uma combinação de livros individuais como uma narrativa contínua e que apresenta uma história completa desde a criação até a morte de Moisés. A leitura dos seus livros sob apenas uma dessas óticas geraria distorções do seu texto. Por um lado, a seu modo, cada livro orientou Israel no êxodo do Egito rumo à conquista de Canaã. Gênesis se distingue em função do seu enfoque literário singular sobre os primórdios e o período patriarcal, criando assim o pano de fundo para o êxodo e a conquista. Êxodo destaca a liderança de Moisés, a lei e o tabernáculo; Levítico é claramente um manual sacerdotal para o culto em Israel; Números focaliza Israel como exército do Senhor marchando em direção a Canaã; e Deuteronômio é constituído de três discurso de Moisés nas campinas de Moabe, nos quais ele explica a lei e dirige uma renovação da aliança.

Ao mesmo tempo, os livros são ligados de modo a formar uma narrativa contínua. Êxodo, por exemplo, é ligado a Gênesis pela referência ao número de israelitas que foram para o Egito (GN 46.26,27; Êx 1.1). Na ocasião do êxodo, Moisés cita o pedido de José para que os israelitas levem seus ossos embora do Egito quando Deus os libertar (Gn 50.25: Êx 13.19). Lv 1-9 pode ser lido praticamente como um apêndice de Êx 25-40. O último texto legitima a construção do tabernáculo enquanto o primeiro autentica o seu ritual. O culto de ordenação dos sacerdotes é esboçado em Êx 29, mas só é realizado em Lv 8-9. As restrições alimentares de Levítico são baseadas no relato de Êxodo e Levítico. Partes extensas das narrativas desses três livros centrais do Pentateuco se passam no deserto do Sinai e os livros apresentam prescrições litúrgicas e interesses semelhantes. No início do seu primeiro discurso em Deuteronômio, Moisés resume a história de Israel desde do Sinai até Moabe, seguindo o registro de Números e, no seu segundo discurso, se refere com frequência a Êxodo, chegando a repetir apenas com ligeiras modificações tanto os Dez mandamentos quanto a respeito de Israel (Êx 20; Dt 5).


TEMA

O Pentateuco é, em sua maior parte, uma mistura de História e lei, temas que não são desconexos uma vez que o relato histórico explica a lei. A lei sobre a circuncisão, por exemplo, é dada no relato em que Deus anuncia a sua aliança com Abraão e Sara (Gn 17.9-14), e a transgressão do sábado é caracterizada como ofensa capital no relato sobre o homem que juntou lenha neste dia (Nm 15.32-36). No entanto, como foi observado acima, a história mais ampla do Pentateuco relaciona as alianças de Deus com os patriarcas, o livramento posterior dos seus descendentes – agora uma nação – do Egito, e a obrigação dessa nação de guardar as leis de Deus descritas na aliança com a qual todo o povo concordou no Sinai e que Moisés explicou em Deuteronômio (Dt 6.20-25).

Gênesis termina com o caixão de José no Egito (Gn 50.26); Êxodo, com a nuvem de glória do Senhor sobre o tabernáculo no deserto do Sinai (Êx 40.34-38); Levítico, com a síntese, “São estes os mandamentos que o Senhor ordenou a Moisés, para os filhos de Israel, no monte Sinai” (Lv 27.34); Números, com uma síntese parecida, mas agora “nas campinas de Moabe” (Nm 36.13); e Deuteronômio, com o sepultamento de Moisés em Moabe e sua sucessão por Josué (Dt 34). Essa progressão espacial e temporal do Egito para o Sinai e de lá até Moabe remete ao chamado de Abraão para deixar sua terra natal, Ur dos caldeus, e à oferta de Deus de transformar sua descendência numa grande nação em sua própria terra, usando-a para abençoar todas as outras nações do mundo (Gn 12.1-3). O Pentateuco é uma história das alianças da graça de deus que, em seus desdobramentos, formaram uma nação sacerdotal e santa que levaria à salvação a todos os outros povos.

Gênesis se concentra nas alianças de Deus com os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, nas quais Deus promete fazer de sua família uma grande nação. A narrativa de Êxodo até Deuteronômio trata de Moisés, o fundador dessa nação, e da aliança divina mediada por ele na qual Deus promete fazer de Israel uma nação santa. Essas histórias e alianças se cumprem em Cristo e na nova Israel à medida que Deus dirige a História até o seu destino final.

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Notas da Bíblia de Estudo de Genebra. Cultura Cristã, 2ª Edição Revisada e Ampliada, p. 3-4.