O
propósito deste volume é apresentar uma discussão do valor da Lei de Deus na
vida do crente, um assunto importante e urgente nos dias de hoje. Em vários
períodos na história da doutrina cristã, tomou-se necessário reafirmar a
verdade de que o ministério da lei foi divinamente ordenado como um meio de
graça para a santificação e caminhada piedosa do crente. Isso, naturalmente,
não nega que o único poder suficiente para a santificação é a habitação de
Cristo no crente por meio do Espírito Santo: isso é santificação pela fé, e uma
das grandes glórias do Evangelho Cristão é o fato de que ele não somente diz
aos homens para serem bons mas os capacita para assim o serem.
Mas a
concessão do poder para uma vida santa precisa ser acompanhada pela instrução
no seu modelo. Em que consiste o comportamento santificado? Consiste em agradar
a Deus. O que agrada a Deus? Que sua vontade seja feita. Onde a sua vontade
pode ser discernida? Em sua santa Lei. A Lei, então, é a regra de vida do
cristão e o crente encontra o seu prazer na Lei de Deus segundo o homem
interior (Rm 7.22). O cristão não está sem lei, “mas debaixo da lei de Cristo”
(1 Co 9.21). O pecado é a ilegalidade e a salvação consiste em levar o ilegal
para sua verdadeira relação com Deus, dentro da bênção da sua santa Lei. A Lei
de Moisés é nada menos do que a Lei de Cristo.
O fato
de que pela graça um homem não rouba, não mente ou não comete adultério, não
destrói, de forma alguma, o fato de que ele não deve fazer isso e o cristão que
faz qualquer uma dessas coisas se toma condenado pela Lei como um pecador.
Visto ser ele um crente justificado, este seu pecado não o leva à condenação
etema, mas certamente o conduz à censura do Senhor. O fato de Deus não ver
pecado no crente é verdadeiro no que diz respeito à sua posição (justificação),
mas uma proposição completamente incorreta quanto ao seu estado (santificação).
A Lei de Deus, por essa razão, não somente instrui o crente quanto ao tipo de
vida que agrada a Deus, mas também é um instrumento de humilhação pelo qual o
Espírito Santo leva o crente a descobrir suas faltas, lastimar-se por tê-las
cometido e a arrepender-se delas e, assim, recorrer ao Senhor Jesus Cristo, o
único no qual a graça da santificação pode ser encontrada.
Haveria
menos tragédias morais entre os cristãos professos se a instrução salutar da
Lei de Deus fosse atendida cuidadosamente. Que o crente possa olhar
exclusivamente para Cristo na busca do poder capacitador de uma vida vitoriosa
- como de fato deve - mas que ele, ao mesmo tempo, se lembre que a vida santa
não consiste em prazer emocional, mas sim em cumprir os mandamentos
de Deus.
Insistir
nessa função da Lei de Deus na vida do crente não é se tornar legalista. O
legalismo é um abuso da Lei: é uma confiança no cumprimento da Lei para
aceitação perante Deus, e o cumprimento de leis, seja orgulhoso ou servil, não
é elemento da graça de Deus. No entanto, a obediência de amor rendida
alegremente é algo completamente diferente e faz parte da própria essência da
vida cristã. Não é legalismo um homem obedecer a Deus porque ele ama agir
assim; isso é liberdade: mas, lembre-se, ainda é obediência.
A Lei
de Deus tem seu lugar na experiência cristã porque, embora seja por causa de um
amor profundo por Deus que o crente faz o que agrada a Deus, ele está, ao mesmo
tempo, fazendo aquilo que Deus o manda fazer. Se a má vontade de um homem em
obedecer não invalida o mandamento - e isto é admitido por todos - então o
mesmo é válido para sua prontidão. A Lei não termina quando um homem se
regozija em obedecê-la: ainda existe para ser honrada e gozada na obediência a
ela. Um soberano não é menos soberano porque seus súditos o amam. Deus não cessa
de ser Deus assim que seu povo é reconciliado com ele. Ele não fica privado de
todos os direitos de comando tão logo as pessoas comecem a amá-lo.
Conseqüentemente, não existe incompatibilidade entre amor e obediência; pois na
vida verdadeiramente santificada existe a obediência em amor e o amor
obediente.
Esta
verdade talvez possa ser mais facilmente alcançada se ilustrada com relação à
Lei positiva, como distinta da Lei moral. Um dos exemplos excepcionais da Lei
positiva na vida do filho de Deus é, naturalmente, a ordenança da Ceia do
Senhor. Um crente irá alegremente cumprir esse andamento de Cristo, mas nunca
vai pensar em dizer que ele assim age meramente porque gosta, não porque o
Senhor mandou. Se falasse assim, ele, então, se tomaria uma lei para si mesmo.
O crente dirá que ama cumprir cada mandamento sagrado de Cristo e, ao afirmar
isso, reconhece o lugar do mandamento. A verdadeira santidade não se detém para
considerar meramente as qualidades intrínsecas do bem ou mal, mas dará atenção
unicamente à vontade daquele que proferiu os mandamentos. Não há santidade onde
não há sujeição a Deus: toda bondade deve ser por causa de Deus, não motivada
por si mesma. As boas obras do crente não são meramente boas, são boas pelo
fato de serem devidas. A obrigação da obediência é perpétua e pertence à
relação da criatura com Deus, e um dos mais ricos frutos da graça é o fato de a
alma regenerada poder dizer, “Quanto amo a tua lei!” (SI 119.97). A doutrina
bíblica da santificação, então, não é “confie e relaxe” mas “confie e obedeça”.
O ensino puritano evita o ativismo pelagiano de um lado e o passivismo
quietista do outro, e no lugar de ambos, afirma a necessidade da obediência da
fé.
O
propósito adicional deste volume é apresentar a discussão da Lei 1 por.meio de uma
das mentes mais privilegiadas do período Puritano, a saber, a de Anthony
Burgess.
Muito
do bom pensamento puritano é encontrado não apenas nos escritos de homens mais
conhecidos como John Owen e Thomas Goodwin, mas também na obra daqueles que são
menos familiares hoje em dia. Eles permaneceram desconhecidos grandemente por
causa do estilo literário de suas épocas, que os leitores modernos encontram
dificuldade em seguir, mas eles foram homens de percepção teológica, de
intelecto brilhante, pensamento claro e argumento invencível. Anthony Burgess
foi um desses.
O
tratamento atual do assunto é baseado nos pensamentos e material desse distinto
pensador encontrados na sua notável obra intitulada, Vindiciae Legis; ou
A Vmdication of the Moral Law. Dessa forma, espera-se que, em alguma
extensão, a grande contribuição feita por Anthony Burgess possa ser salva e que
receba seu lugar no pensamento de hoje.
KEVAN, Ernest.
A Lei Moral. São Paulo. Editora Os Puritanos, 2000. 149p.
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