terça-feira, 30 de janeiro de 2018

EVANGELHO DE JOÃO - UMA INTRODUÇÃO


INTRODUÇÃO

O Evangelho de João, é livro mais importante da história. Steven Lawson chama-o de o monte Everest da teologia, o mais teológico dos evangelhos.[1] Charles Erdman o considera o mais conhecido e o mais amado livro da Bíblia. Provavelmente, é a mais importante peça da literatura que há no mundo.[2] Para William Hendriksen, o evangelho de João é o livro mais maravilhoso já escrito.[3] Lawrence Richards o descreve como “o evangelho universal”.[4]

Mateus apresentou Jesus como Rei, Marcos como servo e Lucas como homem perfeito. João, por sua vez, apresenta Jesus como Deus.


1. QUEM FOI O AUTOR E COMO A BÍBLIA O IDENTIFICA

Junto com Pedro e Tiago, João formou o grupo mais íntimo dos três discípulos que estiveram com Jesus na ressurreição da filha de Jairo (Mc 5.37), na transfiguração (Mc 9.2) e na sua angústia no jardim de Getsêmani (Mc 14.33). 

Dos três, João era o mais íntimo de Jesus. Ele é conhecido como o discípulo amado (13.23). Foi João quem se inclinou sobre o peito de seu mestre durante a ceia pascal; foi ele quem acompanhou seu Senhor ao julgamento, quando os demais discípulos fugiram (Jo 18.15).[5] 

De todos os apóstolos, foi ele o único que esteve ao pé da cruz para receber a mensagem do Senhor antes de expirar (19.25-27) e cuidou de Maria, após a morte de Jesus (19.27). Depois da ascensão de Cristo, João tornou-se um dos grandes líderes da igreja de Jerusalém (At 1.13; 3.111; 4.13-21; 8.14; G12.9).

De acordo com a tradição, João mudou-se para Éfeso, capital da Ásia Menor, onde viveu os últimos anos de sua vida, como líder da igreja na região. Foi banido para a ilha de Patmos, no governo de Domiciano, onde escreveu o livro de Apocalipse. Com a ascensão de Nerva, João recebeu permissão para retornar a Éfeso, onde morreu aos 98 anos, no início do reinado de Trajano (98-117). João foi o único apóstolo de Jesus que teve morte natural. Os demais morreram pelo viés do martírio, João 21.22-23


2. A TEOLOGIA DO EVANGELHO DE JOÃO

Bruce Milne afirma corretamente que o evangelho de João é explicitamente o mais teológico dos quatro evangelhos.[6] 

Desde o prólogo, João antecipa o conteúdo de todo o seu evangelho, mostrando-nos que Jesus é o Verbo eterno, pessoal e divino. Aquele que tem vida em si mesmo é o criador do universo. 

Sem descrever o nascimento de Jesus e sua infância, João apenas nos informa que o Verbo divino se fez carne e habitou entre nós.

Sete vezes em João, Jesus emprega a gloriosa expressão “Eu Sou”, a mesma revelada por Deus a Moisés no Sinai.

Eu sou o pão da vida (6.35,48)
Eu sou a luz do mundo (8.12)
Eu sou a porta das ovelhas (10.7,9)
Eu sou o bom pastor (10.11)
Eu sou a ressurreição e a vida (11.25)
Eu sou o caminho, a verdade e a vida (14.6)
Eu sou a videira verdadeira (15.1,5).

Além dessas declarações diretas, Gundry ressalta aquelas que envolvem a expressão “Eu Sou”, que sugerem a reivindicação de ser ele o eterno Eu Sou — o Iavé do Antigo Testamento (4.25,26; 8.24,28,58; 13.19).[7]


3. O EVANGELHO DE JOÃO E AS DOUTRINAS DA GRAÇA

De acordo com Steven Lawson, as grandes doutrinas da graça são fortemente apresentadas pelo apóstolo João nesse evangelho.[8] 

A DEPRAVAÇÃO TOTAL é amplamente explorada, pois o homem sem Deus está:
a) Cego (3.3)
b) Alienado (3.5),
c) Incapaz (6.44)
d) Escravo (8.34)
e) Surdo (8.43-47)
f) Tomado de ódio por Deus (15.23).

A ELEIÇÃO INCONDICIONAL é igualmente tratada, pois é:
a) Deus quem escolhe (6.37-39).
b) Deus nos escolheu do mundo (15.19),
c) Os eleitos são dados pelo Pai a Jesus (17.9).

A EXPIAÇÃO EFICAZ É CLARA, pois:
a) Cristo morreu por suas ovelhas (10.14,15)
b) Cristo dá a vida eterna a todos os que o Pai lhe deu (17.1,2,9,19).

A GRAÇA IRRESISTÍVEL é acentuada, uma vez que o novo nascimento e:
a) Obra soberana do Espírito (3.3-8)
b) Os mortos espirituais ouvem a voz de Jesus e vivem (5.23; 6.63),
c) Todos aqueles que o Pai dá a Jesus são atraídos irresistivelmente (6.37,44,65)
d) Convocados individualmente (10.1-5,8,27).

A PERSEVERANÇA DOS SANTOS é claramente ensinada, pois:
a) Os que creem recebem vida eterna (3.15),
b) Tem salvação eterna (3.16),
c) Gozam de satisfação eterna (4.14),
d) Recebem proteção eterna (6.38-44),
e) Tem segurança eterna (10.2730),
f) Tem sustentação eterna (6.51,58),
g) Possui duração eterna (11.25,26)
h) visão eterna (17.24).


CONCLUSÃO

O evangelho de João, como uma águia, voa nas alturas excelsas. Atinge os cumes mais altos da revelação bíblica, penetra pelos umbrais da eternidade e traz para o palco da História as verdades mais estonteantes e gloriosas. Mostra com eloquência singular como o transcendente torna-se imanente, como o infinito entra nos limites do finito, como o eterno invade o tempo e como Deus veste pele humana para habitar entre nós.

__________________________
[1] LAWSON, Steven J. Fundamentos da graça. São José dos Campos: Fiel, 2012, p. 383.
[2] ERDMAN, Charles. O evangelho de João. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1965, p. 11.
[3] HENDRIKSEN, William. João. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 13.
[4] RICHARDS, Lawrence O. Comentário histórico-cultural do Novo 'Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p. 192.
[5] PEARLMAN, Myer. Através da Bíblia. Miami: Vida, 1987, p. 215.
[6] MILNE, Bruce. The Message of John, p. 25.
[7] GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento, p. 114.
[8] LAWSON, Steven J. Fundamentes da graça, p. 383-434.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

JOÃO - AS GLÓRIAS DO FILHO DE DEUS [Introdução]



Precisamos tirar as sandálias dos nossos pés. O território no qual vamos caminhar doravante é terra santa. O evangelho de João é o santo dos santos de toda a revelação bíblica. E o livro mais importante da história. Steven Lawson chama-o de o monte Everest da teologia, o mais teológico dos evangelhos.[1] Charles Erdman o considera o mais conhecido e o mais amado livro da Bíblia. Provavelmente, é a mais importante peça da literatura que há no mundo.[2] Para William Hendriksen, o evangelho de João é o livro mais maravilhoso já escrito.[3] Lawrence Richards o descreve como “o evangelho universal”.[4]

Mateus apresentou Jesus como Rei, Marcos como servo e Lucas como homem perfeito. João, por sua vez, apresenta Jesus como Deus. Os tres primeiros evangelhos são chamados sinóticos porque têm grandes semelhanças entre si. João, porém, distingue- se dos demais em seu conteúdo, estilo e propósito.

Charles Swindoll diz que não temos quatro evangelhos; temos apenas um evangelho, escrito de quatro pontos de vista diferentes. Temos uma biografia elaborada por quatro testemunhas, cada escritor provendo uma perspectiva peculiar.[5] Nessa mesma linha de pensamento, Andreas Kostenberger afirma: “Os quatro evangelhos bíblicos apresentam o único evangelho da salvação em Jesus Cristo, segundo quatro testemunhas importantes: Mateus, Marcos, Lucas e João”.[6]


Destacaremos a seguir alguns pontos importantes para uma introdução ao livro.


O AUTOR

Embora os quatro evangelhos sejam anônimos, ou seja, não tragam o nome de seu autor, há inconfundíveis e irrefutáveis evidências internas e externas de que esse evangelho foi escrito pelo apóstolo João, irmão de Tiago, filho de Zebedeu, empresário de pesca do mar da Galileia. Sua mãe era Salomé (Mc 15.40; Mt 27.56), a qual contribuiu financeiramente com o ministério de Jesus (Mt 27.55,56) e pode ter sido irmã de Maria, mãe de Jesus (Jo 19.25). Se essa interpretação for verdadeira, então João e Jesus eram primos.[7] Sem apresentar seu nome, o autor se identifica como testemunha, em sua conclusão do evangelho: E é esse o discípulo que dá testemunho dessas coisas e que as escreveu (21.24).

Junto com Pedro e Tiago, João formou o grupo mais íntimo dos três discípulos que estiveram com Jesus na ressurreição da filha de Jairo (Mc 5.37), na transfiguração (Mc 9.2) e na sua angústia no jardim de Getsêmani (Mc 14.33). Dos três, João era o mais íntimo de Jesus. Ele é conhecido como o discípulo amado (13.23). Foi João quem se inclinou sobre o peito de seu mestre durante a ceia pascal; foi ele quem acompanhou seu Senhor ao julgamento, quando os demais discípulos fugiram (Jo 18.15).[8] De todos os apóstolos, foi ele o único que esteve ao pé da cruz para receber a mensagem do Senhor antes de expirar (19.25-27) e cuidou de Maria, após a morte de Jesus (19.27). Depois da ascensão de Cristo, João tornou-se um dos grandes líderes da igreja de Jerusalém (At 1.13; 3.1-11; 4.13-21; 8.14; Gl 2.9).

De acordo com a tradição, João mudou-se para Éfeso, capital da Ásia Menor, onde viveu os últimos anos de sua vida, como líder da igreja na região. Foi banido para a ilha de Patmos, no governo de Domiciano, onde escreveu o livro de Apocalipse. Com a ascensão de Nerva, João recebeu permissão para retornar a Éfeso, onde morreu aos 98 anos, no início do reinado de Trajano (98-117). João foi o único apóstolo de Jesus que teve morte natural. Os demais morreram pelo viés do martírio.

A antiga literatura patrística faz referências ocasionais ao apóstolo, deixando evidente que ele era morador de Éfeso. Westcott cita Jerônimo, que relatou: “Permanecendo em Éfeso até uma idade avançada - podendo ser transportado para a igreja apenas nos braços de seus discípulos, e incapaz de pronunciar muitas palavras —, João costumava dizer não muito mais do que: Filhinhos, amai-vos uns aos outros. Por fim, os discípulos que ali estavam, cansados de ouvir sempre as mesmas palavras, perguntaram: - Mestre, por que sempre dizes isto? — É o mandamento do Senhor – foi a sua digna resposta - e, se apenas isto for feito, será o suficiente”.[9]

F. F. Bruce diz que a evidência interna da autoria joanina para esse evangelho decorre do fato de que ele foi escrito: a) por um judeu palestino; b) por uma testemunha ocular; c) pelo discípulo que Jesus amava; d) por João, filho de Zebedeu.[10]

Tanto João quanto seu irmão Tiago foram chamados de filhos do trovão, possivelmente por causa de seu temperamento impetuoso. Eles queriam que fogo do céu caísse sobre os samaritanos que se recusaram a hospedar Jesus (Lc 9.54). Foi João quem relatou como ele e seus amigos tentaram impedir um homem de expulsar demônios em nome de Jesus, porque o tal não fazia parte de seu grupo (Lc 9.49). Certa feita, João e Tiago tentaram tirar vantagens de seu relacionamento mais próximo com Jesus, cobiçando um lugar de honra em seu reino futuro (Mc 10.35-45).

Na mesa da ceia (13.24), no túmulo vazio (20.2-10) e à beira do lago (21.7,20), João é associado de maneira especial com Pedro. Essa associação continua em vários episódios registrados no livro de Atos (At 3.1-23; 8.15-25). O apóstolo Paulo chama Pedro, Tiago (irmão do Senhor) e João de colunas da igreja de Jerusalém (G1 2.9).

Pais da igreja como Papias, Irineu, Eusébio, Tertuliano, Clemente de Alexandria, dentre outros, deram amplo testemunho da autoria joanina para esse evangelho. O Cânon muratoriano, do segundo século d.C., também atribui esse evangelho a João.[11] F. F. Bruce escreve: “No fim do segundo século, o evangelho de João era reconhecido normalmente nas igrejas cristãs como um dos evangelhos canônicos. Nossa principal testemunha desse período é Irineu, que veio de sua terra natal, na província da Ásia, pouco depois de 177 d.C, para se tornar bispo de Lion”.[12] Irineu era discípulo de Policarpo, que por sua vez era discípulo de João. Irineu tinha plena convicção tanto da autoria joanina como da canonicidade desse evangelho.

Os críticos, besuntados de soberba intelectual e dominados pelo ceticismo, questionam a autoria joanina desse evangelho; no entanto, as robustas evidências, tanto internas como externas, confirmam que o apóstolo João, o discípulo amado, foi seu autor.


OS DESTINATÁRIOS

Mateus escreveu precipuamente para os judeus; Marcos, principalmente para os romanos; e Lucas, especialmente para os gregos. O evangelho de João, porém, é endereçado ao público geral, a judeus e gentios. O escopo desse evangelho possui abrangência universal.

Concordo com Joseph Mayfield no sentido de que os primeiros leitores do quarto evangelho provavelmente eram cristãos da segunda ou terceira geração. O que sabiam sobre a vida, o ministério, a morte e a ressurreição de Jesus aprenderam ou de ouvir falar, ou por meio da leitura dos primeiros relatos cristãos.[13]


LOCAL E DATA

É consenso entre os estudiosos conservadores, estribados nas evidências históricas, que João escreveu esse evangelho da cidade de Éfeso, capital da Ásia Menor, onde morou por longos anos, pastoreou a maior igreja gentílica da época, liderou as igrejas da região e morreu já em avançada velhice, nos dias do imperador Trajano.

Não podemos afirmar a data precisa em que esse evangelho foi escrito; todavia, há fortes evidências de que tenha sido entre os anos 80 e 96 d.C. Para E E Bruce, “parece provável que o evangelho foi publicado na província da Ásia uns sessenta anos depois dos acontecimentos que narra”. [14]


PROPÓSITO

O evangelho de João tem um propósito específico: apresentar Jesus como o Verbo divino que se fez carne, o criador do universo, revelador do Pai, o Salvador do mundo, por meio de quem recebemos, pela fé, a vida eterna (20.30,31). Concordo com John MacArthur quando ele diz que o objetivo de João era tanto apologético, “para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, como evangelístico, e que crendo tenhais vida em seu nome” (20.31).[15]

O propósito de João nos capítulos 1-12 é apresentar o ministério público de Jesus e, nos capítulos 13-21, apresentar seu ministério privado. Os capítulos 1-12 abrangem um período de três anos; os capítulos 13-21, exceto o capítulo 21, abrangem um período apenas de quatro dias. A primeira parte do livro enfatiza os milagres de Jesus, enquanto a segunda parte recorda os discursos feitos aos seus discípulos.

E. E. Bruce diz com acerto que todo o evangelho enfatiza que Jesus é o Filho eterno do Pai, enviado ao mundo para sua salvação.[16] Gundry declara que, acima de qualquer consideração, João é o evangelho da fé. De fato, o verbo “crer” é a palavra-chave do presente evangelho.[17] A palavra grega pisteuo, traduzida por “crer”, aparece 98 vezes no evangelho de João. Mas o que significa “crer”? Não se trata apenas de um assentimento intelectual acerca de Jesus. Significa confessar a verdade como verdade; e mais: significa confiar. Crer em Jesus, portanto, é colocar plena confiança nele como Salvador.[18] Isso quer dizer que devemos colocar nossa confiança nele, e não apenas em sua mensagem.


PECULIARIDADES

João não aborda os principais temas abordados nos Evangelhos Sinóticos, mas, por outro lado, traz uma gama enorme de material que nem sequer foi mencionado nos outros três evangelhos.

Diferentemente dos evangelistas sinóticos, João não trata da vida e do ministério de Jesus, nem faz um acompanhamento minucioso de sua trajetória na Galileia e Pereia. Não registra as parábolas nem as muitas curas operadas por Jesus. Antes, foca sua atenção em provar que Jesus é o Filho de Deus e que, crendo nele, recebemos a vida eterna.

Os quatro evangelhos conjugam as histórias narrativas de Jesus com os discursos, mas João enfatiza mais os discursos. João não traz as parábolas nem menciona o discurso escatológico. Não há nenhum episódio de expulsão de demônios e nenhum relato de cura de leprosos. Não encontramos nesse evangelho a lista dos doze apóstolos nem a instituição da ceia. João não faz referência ao nascimento de Jesus, a seu batismo, transfiguração, tentação, agonia no Getsêmani nem à sua ascensão. Na verdade, cerca de 90% desse evangelho não é encontrado nos Sinóticos.[19]

A vasta maioria do conteúdo do evangelho de João é peculiar a esse livro, como mostra a descrição do Cristo preexistente e sua encarnação (1.1-18), o milagre na festa de casamento (2.1-11), a conversa com Nicodemos sobre o novo nascimento (3.1-21), seu encontro com a mulher samaritana (4.1-42), a cura do paralítico no tanque de Betesda (5.1-15), o discurso sobre o pão da vida (6.2271), a reivindicação de ser a água da vida (7.37-39), a apresentação de si mesmo como o bom pastor (10.1-39), a ressurreição de Lázaro (11.1-46), o lava-pés (13.1-15), o discurso do cenáculo (13-16), a Oração Sacerdotal (17.124), a pesca milagrosa depois da ressurreição (21.1-6) e a restauração e recondução de Pedro ao ministério (21.1519). João, outrossim, dá maior ênfase à pessoa e obra do Espírito Santo do que os demais evangelistas.[20]


ÊNFASES

Bruce Milne afirma corretamente que o evangelho de João é explicitamente o mais teológico dos quatro evangelhos.[21] Desde o prólogo, João antecipa o conteúdo de todo o seu evangelho, mostrando-nos que Jesus é o Verbo eterno, pessoal e divino. Aquele que tem vida em si mesmo é o criador do universo. Sem descrever o nascimento de Jesus e sua infância, João apenas nos informa que o Verbo divino se fez carne e habitou entre nós.

Sete vezes em João, Jesus emprega a gloriosa expressão “Eu Sou”, a mesma revelada por Deus a Moisés no Sinai.
Eu sou o pão da vida (6.35,48)
Eu sou a luz do mundo (8.12)
Eu sou a porta das ovelhas (10.7,9)
Eu sou o bom pastor (10.11)
Eu sou a ressurreição e a vida (11.25)
Eu sou o caminho, a verdade e a vida (14.6)
Eu sou a videira verdadeira (15.1,5).

Além dessas declarações diretas, Gundry ressalta aquelas que envolvem a expressão “Eu Sou”, que sugerem a reivindicação de ser ele o eterno Eu Sou — o Iavé do Antigo Testamento (4.25,26; 8.24,28,58; 13.19).[22] Destacaremos, agora, algumas das principais ênfases desse evangelho.

Primeiro, a natureza e os atributos de Deus (1.1418; 3.16; 4.24; 5.19-23; 6.45-46; 8.16-19; 10.27-30,3438; 12.27,28,49,50; 13.3; 14.6-10; 16.5-15,27,28; 17.11; 20.20-22).

Segundo, a humanidade, a queda e a redenção (2.24,25; 3.3-8,19-21,36; 5.40; 6.35,53-57; 7.37-39; 8.12,31-47; 10.27-29; 11.25,26; 14.17; 15.1-8,18-25; 16.3,8; 17.2,3,69; 20.22,31).

Terceiro, a pessoa e a obra de Cristo (1.29,51; 2.19; 3.14,34; 4.22,42; 5.25,28; 6.33,40,44,51,53,62; 10.9,11,15; 12.24,32; 13.8; 14.3,18; 16.33; 17.2; 18.14,36; 20.1-21.14).

Quarto, a pessoa e a obra do Espírito Santo (1.13,32; 3.5; 4.24; 6.63; 7.39; 14.16,26; 15.26; 16.7-15; 19.34; 20.22).

Quinto, a vida do novo mundo (3.15,36; 4.14; 5.24; 6.27,37,39,47,51,58; 8.24,51; 10.28; 11.25; 12.25; 14.2).

Sexto, a divindade de Cristo (1.1,14,18,49;2.11,19; 3.3,13,18,19,31,34;5.17,22,26,28; 6.20,27,33,35,38,45,54,69; 7.28; 8.12,16,23,28,42,55,58; 9.5; 10.7,11,14,18,30,38; 14.4,25,27,44; 14.1,6,9,14; 16.7,15,23,28; 17.5,10,24,26; 18.5; 20.1-21,25; 20.28).

Sétimo, a humanidade de Cristo (1.14; 4.6; 6.42; 8.6; 11.33,35,38; 12.27; 19.5,30,31-42).

Oitavo, a soberania de Deus na salvação. De acordo com Steven Lawson, as grandes doutrinas da graça são fortemente apresentadas pelo apóstolo João nesse evangelho.[23] A depravação total é amplamente explorada, pois o homem sem Deus está cego (3.3) e alienado (3.5), incapaz (6.44), escravo (8.34), surdo (8.43-47) e tomado de ódio por Deus (15.23). A eleição incondicional é igualmente tratada, pois é Deus quem escolhe (6.37-39). Deus nos escolheu do mundo (15.19), e os eleitos são dados pelo Pai a Jesus (17.9). A expiação eficaz é clara, pois Cristo morreu por suas ovelhas (10.14,15) e dá a vida eterna a todos os que o Pai lhe deu (17.1,2,9,19). A graça irresistível é acentuada, uma vez que o novo nascimento e obra soberana do Espírito (3.3-8), os mortos espirituais ouvem a voz de Jesus e vivem (5.23; 6.63), e todos aqueles que o Pai dá a Jesus são atraídos irresistivelmente (6.37,44,65) e convocados individualmente (10.1-5,8,27). A perseverança dos santos é claramente ensinada, pois os que creem recebem vida eterna (3.15), salvação eterna (3.16), satisfação eterna (4.14), proteção eterna (6.38-44), segurança eterna (10.2730), sustentação eterna (6.51,58), duração eterna (11.25,26) e visão eterna (17.24).

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LOPES, Hernandes Dias, As glória do Filho de Deus - Comentários Expositivos Hagnos. São Paulo: Hagnos, 2015. 516p.

[1] LAWSON, Steven J. Fundamentos da graça. São José dos Campos: Fiel, 2012, p. 383.
[2] ERDMAN, Charles. O evangelho de João. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1965, p. 11.
[3] HENDRIKSEN, William. João. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 13.
[4] RICHARDS, Lawrence O. Comentário histórico-cultural do Novo 'Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p. 192.
[5] SWINDOLL, Charles R. Insights on John. Grand Rapids: Zondervan, 2010, p. 15.
[6] KOSTENBERGER, Andreas J.; Patterson, Richard D. Convite à interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 205.
[7] MACARTHUR, John. The MacArthur New Testament Commentary —John 1-11. Chicago: Moody Publishers, 2006, p. 7-8.
[8] PEARLMAN, Myer. Através da Bíblia. Miami: Vida, 1987, p. 215.
[9] WESTCOTT, B. F. The Gospel According to St. John. London: John Murray, 1908, p. 34.
[10] BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 11.
[11] MILNE, Bruce. The Message of John. Downers Grove: Inter Varsity Press, 1993, p. 18
[12] BRUCE, F. F. João: introdução e comentário, p. 22.
[13] MAYFIELD, Joseph H. O evangelho segundo João. In: Comentário bíblico Beacon. Vol. 7. Rio de Janeiro: CPAD, 2005, p. 21.
[14] BRUCE, F. F. João: introdução e comentário, p. 12.
[15] MACARTHUR, John. The MacArthur New Testament Commentary — John 1-11, p. 9.
[16] BRUCE, F. F. João: introdução e comentário, p. 26.
[17] GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1978, p. 113.
[18] SWINDOLL, Charles R. Insights on John, p. 17.
[19] MACARTHUR, John. The MacArthur New Testament Commentary — John 1-11, p. 1.
[20] Ibid., p. 2.
[21] MILNE, Bruce. The Message of John, p. 25.
[22] GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento, p. 114.
[23] LAWSON, Steven J. Fundamentes da graça, p. 383-434.


terça-feira, 23 de janeiro de 2018

SOLA SCRIPTURA - A DOUTRINA REFORMADA DAS ESCRITURAS [Prefácio]




Talvez a Igreja de Cristo esteja atravessando um dos seus mais difíceis períodos da história, no que diz respeito à acolhida do seu padrão de fé e prática: As Sagradas Escrituras. No seio do que se conhece como igreja evangélica, fruto da Reforma do Século XVI, nunca se citou tanto a Bíblia como atualmente; nunca se falou tanto da Bíblia quanto se fala hoje; nunca se divulgou tanto a Bíblia como nos dias atuais. Paradoxalmente, nas igrejas filhas da Reforma, nunca se desrespeitou tanto a Palavra de Deus como atualmente; nunca ela foi colocada meramente como fonte secundária de informação como quanto é colocada hoje em dia; nunca ela teve porções inteiras consideradas desatualizadas, ou pertinentes apenas aos leitores originais, como atualmente; nunca ela foi alvo de tanto questionamento, quanto aos autores dos livros e aos períodos nos quais foi escrita, quanto nos dias de hoje. Essas são situações encontradas não no segmento liberal/ racionalista, mas dentro da própria Igreja Evangélica, das denominações que se auto-intitulam conservadoras na fé e prática e que se propõem a ser as mais fervorosas e cheias do Espírito Santo de Deus.

E nesse sentido que Sola Scripíura - A Doutrina Reformada das Escrituras vem atender uma necessidade de reafirmação dos princípios e ensinamentos fundamentais ao desenvolvimento de uma igreja sadia em doutrina e que honre, realmente, o nome de Cristo. O Rev. Paulo Anglada vai às próprias Escrituras como sua fonte principal, e à história, com o seu testemunho incontestável. Delas extrai a relevância e suficiência da Palavra de Deus, relembrando essa questão à igreja dos nossos dias. Em nosso esquecimento dessa doutrina, vemos a igreja se afundando em um evangelho humanista, diluído, horizontalizado e que contribui para confundir a mensagem cristalina do evangelho, que deveria estar sendo proclamada.

Sabemos que as seitas apresentam uma multiplicidade de padrões, nos quais se fundamentam. Livros e escritos paralelos são apresentados como se a sua autoridade fosse equivalente ou até acima da Bíblia. A cena comum é a apresentação de novas revelações, geralmente de caráter escatológico e de características fluidas, contraditórias e totalmente duvidosas. Aqui, a suficiência das Escrituras é uma doutrina desprezada.

No meio eclesiástico liberal, já nos acostumamos a identificar o ataque constante à veracidade das Escrituras. Vamos com mais de dois séculos de contestação sistemática à Palavra de Deus, como se a fé cristã verdadeira fosse capaz de subsistir sem o seu alicerce principal. Nesse campo, que forneceu bastante munição ao inimigo e que alimentou as bases do pensamento intelectual não-cristão sobre a Bíblia, a suficiência das Escrituras é também uma doutrina desprezada.

E também sabido que no campo evangélico neopentecostal e. às vezes, até no campo tradicional pentecostal, temos uma situação problemática no que diz respeito à relevância da Palavra de Deus. Ela é frequentemente superada pelas supostas “novas revelações” que passam a ser determinantes das doutrinas e do caminhar do Povo de Deus. Aqui, também, a doutrina da suficiência das Escrituras é, na prática, desprezada.

Mas partem exatamente de dentro do campo evangélico as perturbações e os últimos ataques à Bíblia como regra inerrante de fé e prática. Em anos recentes, muitos ditos intelectuais e eruditos têm questionado a doutrina que coloca a Bíblia como um livro inspirado, livre de erro. Por exemplo: um famoso seminário teológico norte-americano foi fundado em 1947, no campo conservador, sobre princípios corretos. Sua “Declaração de Fé1' original especificava: “Os livros do VT e NT..., nos originais, são inspirados plenariamente e livres de erro, no todo e em suas partes...”. Entretanto, em 1968, um dos seus líderes começou a questionar a inerrância da Bíblia, fazendo distinção entre trechos “revelativos” e trechos “não revelativos” das Escrituras. Ele foi seguido, nesta posição, pelo próximo presidente, e por vários outros professores, todos considerados evangélicos, resultando no enfraquecimento geral do posicionamento de vários professores daquele seminário sobre a integridade das Escrituras.[1] Logicamente, não há critério coerente ou autoritativo para estabelecimento desta distinção entre o que seria “não revelativo” nas Escrituras - pontos abertos ao questionamento mais amplo - e as porções “revelativas” - essas, sim, de validade espiritual. Esse pensamento, que se faz presente não só naquele exemplo, mas em tantos outros segmentos da igreja, subtrai da Igreja o seu padrão, derruba um dos pilares da Reforma e retroage a Igreja à uma condição medieval de dependência dos especialistas que nos dirão quais as partes que devemos crer realmente e quais as que podemos descartar como mera invenção humana. E nesse contexto que se faz presente a necessidade de relembrarmos os pilares da nossa fé reformada, como o faz o Rev. Paulo Anglada.

Não há inovação na mensagem deste livro, mas uma extrema necessidade de que o brado de Sola Scripíura seja reavivado ao longo da história da igreja. E essa história que mostra Deus derramando grandes bênçãos sempre que os fiéis desprenderam-se de suas tradições e ensinamentos humanos e se voltaram para a palavra escrita inspirada por Deus. Desde os tempos de Josué (1:7.8) que Deus admoesta os seus a que se prendam aos registros inspirados. Ali lemos: 

“Tão-somente esforça-te e tem mui bom ânimo, cuidando de fazer conforme toda a lei que meu servo Moisés te ordenou; não te desvies dela, nem para a direita nem para a esquerda, a fim de que sejas bem sucedido por onde quer que andares. Não se aparte da tua boca o livro desta lei. antes medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme tudo quanto nele está escrito; porque então farás prosperar o teu caminho, e serás bem sucedido”.

A Reforma do Século XVI fez exatamente isso e. na soberana providência de Deus, nela temos um grande reavivamento gerado pela descoberta das Escrituras, e pelo seguimento de seus ensinamentos e verdades práticas. E, na realidade, um erro acharmos que a Reforma marca a aparição de várias doutrinas nunca dantes formuladas. A Palavra de Deus, cujas doutrinas estavam soterradas sob o entulho da tradição, é que foi resgatada. Já dissemos que uma característica comum das seitas é a apresentação de supostas verdades que nunca haviam sido compreendidas, até a aparição ou revelação destas a algum líder. Estas “verdades” passam a ser determinantes da interpretação das demais e ponto central dos ensinamentos empreendidos. A Reforma coloca-se em completa oposição a esta característica. Nenhum dos reformadores declarou ter “descoberto” qualquer verdade oculta. Eles tão somente apresentavam, em toda singeleza, os ensinamentos das Escrituras. Seus comentários e controvérsias versaram sempre sobre a clara exposição da Palavra de Deus.

Martin Lloyd-Jones nos indica “que a maior lição que a Reforma Protestante tem a nos ensinar é justamente que o segredo do sucesso, na esfera da Igreja e das coisas do Espírito, é olhar para trás”.[2] Lutero e Calvino, diz ele, “foram descobrindo que estiveram redescobrindo o que Agostinho já tinha descoberto e que eles tinham esquecido”.

Na ocasião da Reforma, a tradição da igreja já havia se incorporado aos padrões determinantes de comportamento e doutrina e, na realidade, já havia superado as prescrições das Escrituras. A Bíblia era conservada longe e afastada da compreensão dos devotos. Era considerada um livro só para os entendidos, obscuro e até perigoso para a massa. Os reformadores redescobriram e levantaram bem alto o único padrão de fé e prática: a Palavra de Deus, e por este padrão, aferiram tanto as autoridades como as práticas religiosas em vigor.

A um mundo que está sem padrão e à própria igreja evangélica, que está voltando a enterrar o seu padrão em meio a um entulho místico pseudo-espiritual, a mensagem da Reforma continua necessária. Esse livro traz o brado de Sola Scriptura, com veemência e clareza, como antídoto ao veneno contemporâneo do subjetivismo e existencialismo do homem sem Deus, que teima em se infiltrar nos ensinamentos da Igreja Cristã. Pode parecer estranho, entretanto, que sendo ele dedicado à exaltação da importância e suficiência das Escrituras, o livro utilize como ponto de partida e de fechamento, credos e confissões históricas. Não seriam, esses, documentos que desviam os nossos olhos das Escrituras? A resposta é um sólido NÃO! A própria Confissão de Fé de Westminster em seu Capítulo 1°, apresentando a mensagem inequívoca da Reforma do Século XVI, cada vez mais válida aos nossos dias, descreve a Bíblia como sendo a “... única regra infalível de fé e de prática". Essa é a mensagem deste livro, ao qual damos a nossa mais entusiástica acolhida.

Solano Portela, 1998.
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ANGLADA, Paulo. Sola Scriptura – A Doutrina Reformada das Escrituras. 1ª Edição. São Paulo: Editora os Puritanos. 1998. 205p.

[1] Harold Lindsell, The Battle for lhe fíihle (G. Rapids: Zondervan. 1976). 106-21. Este livro traz um excelente tratamento sobre a diluição do conceito da suficiência e integridade das Escrituras, no seio dos evangélicos norte-americanos.
[2] D. Martin Lloyd-Jones, Rememorando a Reforma (São Paulo: PES. 1996), 8.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

A PARÁBOLA DO FILHO PRÓDIGO [Apresentação]



UMA HISTÓRIA INESQUECÍVEL

A maior parte das pessoas está, de certa forma, familiarizada com a parábola do filho pródigo, encontrada em Lucas 15:11-32. Até mesmo aqueles que não sabem quase nada sobre a Bíblia conhecem alguma coisa sobre esse relato. Seus temas e sua linguagem estão profundamente arraigados em nossas tradições espirituais e literárias.

Shakespeare, por exemplo, tomou emprestados parte da trama e alguns motes da parábola do filho pródigo e os adaptou em O mercador de Veneza e Henrique IV. O Bardo também aludiu a essa parábola repetidamente em seus outros dramas. Arthur Sullivan usou as exatas palavras do texto bíblico como a base de um oratório intitulado O filho pródigo; Sergei Prokofiev produziu a história em forma de balé; e Benjamin Britten a transformou em ópera. Do lado oposto do espectro musical, o cantor country Hank Williams gravou uma música chamada The Prodigal Son [O filho pródigo], comparando a volta desse personagem às alegrias celestiais. Os maiores museus de arte do mundo estão repletos de obras mostrando cenas da experiência do filho pródigo, incluindo desenhos e pinturas famosos de Rembrandt, Rubens, Dürer e muitos outros.

A linguagem contemporânea é igualmente cheia de palavras e imagens emprestadas da parábola familiar. É razoavelmente comum ouvir alguém se referir a uma criança desobediente como “um filho pródigo” (ou filha). Às vezes, as pessoas também falam sobre “matar o novilho gordo” (uma metáfora apropriada para qualquer comemoração extravagante); “alimentar-se de cascas” (referindo-se ao consumo de coisas triviais, superficiais ou artificiais que não constituem uma boa alimentação); ou “um viver desregrado” (significando um estilo de vida devasso ou extravagante). Talvez você tenha ouvido ou lido essas alusões sem reconhecer sua fonte. Elas são tomadas diretamente dessa que é a mais conhecida entre todas as parábolas de Jesus.


1. UMA HISTÓRIA A SER LEMBRADA

A parábola do filho pródigo é uma das muitas registradas apenas no Evangelho de Lucas. E ela sobressai.

De todas as parábolas de Jesus, é a mais ricamente detalhada, poderosamente dramática e intensamente pessoal. É cheia de emoção, passando da tristeza ao triunfo, depois a uma sensação de choque e, por fim, a um desejo perturbador pela conclusão. Os personagens são conhecidos, por isso é fácil para as pessoas se identificarem com o pródigo, sentirem a dor do pai e, ainda assim (até certo ponto), se solidarizar com o irmão mais velho — tudo ao mesmo tempo. A história é memorável em muitos aspectos, e um dos mais importantes é a imagem de rudeza que Jesus invoca ao contá-la. A descrição do pródigo como alguém tão desesperadamente faminto, disposto a comer cascas varridas da comida de porcos, por exemplo, retrata de maneira quase visual a devassidão do jovem, e o faz de uma forma que soava extremamente repugnante aos judeus que a ouviram.

Outra coisa que torna essa história inesquecível é a pungência demonstrada na reação do pai quando o filho perdido retorna. A alegria do pai estava repleta de terna compaixão. O filho mais novo, que tinha partido de maneira negligente e insolente, despedaçando as esperanças de seu pai para ele, voltou um homem completamente quebrantado. Mesmo tendo o coração partido e, sem dúvida, sentindo-se muito magoado por causa da rebelião tola do filho mais novo, o pai expressou a mais pura felicidade, desprovida de qualquer sinal de amargura, quando o filho errante chegou em casa, arrastando-se pelo caminho. Quem não se emocionaria com um amor como esse? No entanto, o filho mais velho da parábola não ficou nem um pouco comovido pelo amor de seu pai. Seu duro ressentimento ao testemunhar a misericórdia do pai em relação ao irmão mais novo contrasta com o tema dominante de Lucas 15, que é a grande alegria no céu pelo retorno dos perdidos. Assim, a mensagem central da parábola é um apelo urgente e sóbrio aos ouvintes cujo coração se endureceu para que suas atitudes espelhem as do irmão mais velho. A parábola do filho pródigo não é uma mensagem bonitinha de autoajuda, inventada para nos sentirmos bem, mas uma poderosa convocação que inclui um alerta muito importante.

Não podemos permitir que isso escape à nossa compreensão nem prejudique nosso apreço em relação a essa amada parábola. Infelizmente, a lição do irmão mais velho costuma ser negligenciada em muitas oportunidades nas quais essa história é contada. Mesmo assim, continua sendo a razão principal pela qual Jesus a contou.


2. A INTERPRETAÇÃO DAS PARÁBOLAS DE JESUS

Uma boa regra para interpretar qualquer parábola é manter-se concentrado na lição central. Não é uma boa ideia tentar extrair significado de cada detalhe incidental em uma parábola. Os teólogos medievais ganharam notoriedade por causa disso. Eles podiam se alongar por horas nos pormenores de toda a parábola, tentando encontrar significados detalhados, simbólicos e espirituais em cada ponto da história — algumas vezes, praticamente ignorando o ponto principal da narrativa. Essa é uma maneira perigosa de se lidar com qualquer parte das Escrituras. Mas é um erro especialmente fácil de se cometer quando se interpreta as várias figuras de linguagem na Bíblia. Parábolas são completa e propositadamente figurativas, mas não são alegorias, nas quais todo detalhe carrega algum tipo de simbolismo. Uma parábola é uma simples metáfora ou símile transmitida na forma de uma história. É, antes de tudo, uma comparação. “O Reino dos céus é como [isso ou aquilo]...” Veja, por exemplo, Mateus 13:31,33,44,45,52;20:1;22:2.

A palavra “parábola” é transliterada de uma palavra grega que se refere, no sentido literal, a uma coisa colocada ao lado de outra com o objetivo de assinalar a semelhança ou fazer uma importante associação entre as duas. É uma forma literária básica com um objetivo muito específico: fazer uma analogia objetiva por meio de uma imagem ou narrativa interessante. Intérpretes das parábolas devem ter isso sempre em mente, evitando a busca por simbolismos complexos, múltiplas camadas de significados ou lições obscuras nos detalhes periféricos das parábolas.

A parábola do filho pródigo, por sua riqueza de detalhes, talvez tenha sido submetida a interpretações mais imaginativas do que qualquer outra. Já vi comentaristas escreverem páginas e mais páginas com elucubrações sobre os supostos significados espirituais e alegóricos de detalhes tão incidentais quanto as vagens de alfarrobeira (simbolizando maus pensamentos, de acordo com um escritor), o anel do pai colocado no dedo do filho (uma imagem gráfica, porém esotérica, do mistério da Trindade, se aceitarmos as ruminações de outro comentarista), ou os calçados colocados nos pés do pródigo (que representam o evangelho, insiste um terceiro exegeta, usando Efésios 6:15 como prova).

Como método de interpretação bíblica, esse tipo de alegorização já foi empregado para criar mais confusão sobre o puro significado da Escritura do que qualquer outro dispositivo hermenêutico. Se você pode dizer, sem medo de errar, que isso realmente significa aquilo e uma coisa simboliza outra sem se basear em nenhuma prova contextual, mas por mero fruto da imaginação do intérprete — especialmente se você estiver disposto a fazer isso destrinchando cada detalhe da narrativa bíblica —, então será capaz de fazer o texto bíblico assumir qualquer significado que desejar.

A invenção de significados sofisticados e alegóricos nunca é uma abordagem válida para interpretar nenhum trecho das Escrituras. E os elementos obviamente figurativos em uma parábola não mudam as regras da interpretação nem nos autorizam a inventar significados. Na verdade, quando tiver de lidar com o simbolismo de uma parábola, é particularmente importante manter o ponto principal e o contexto imediato em foco e resistir a devaneios.


3. A LIÇÃO PRINCIPAL DO FILHO PRÓDIGO

Dito isso, a parábola do filho pródigo, por conta da variedade peculiar de detalhes descritivos, convida a uma análise mais apurada, em comparação às parábolas de uma frase apenas. Essa história nos fornece um retrato extraordinário da vida real, rico em texturas, e esses detalhes são extremamente valiosos para nos ajudar a encontrar o sentido do contexto cultural. Os detalhes são fornecidos não para adicionar múltiplas camadas de significados espirituais à lição central da parábola, mas para realçar a lição propriamente dita, dotando-a de vida. A interpretação da parábola é, portanto, razoavelmente simples, desde que vejamos as imagens culturais pelo que elas são e fazer nosso melhor para ler a história através das lentes da vida de uma aldeia agrária do século I. É exatamente isso que as características pitorescas nessa parábola nos ajudam a fazer.

A parábola se alonga por 22 versículos nesse capítulo central do Evangelho de Lucas. Com profusão de cores, páthos dramático e riqueza de detalhes claramente inseridos nessa descrição gráfica, parece claro que a vividez da parábola existe para realçar o significado central dela. Espera-se que notemos e compreendamos o sentido das personalidades e das viradas de enredo dessa história fantástica.

De fato, o contexto de Lucas 15, com seu tema de alegria celestial pelo arrependimento terreno, revela o sentido de todas as maiores características da parábola. O filho pródigo representa um típico pecador que se arrepende. A paciência, o amor, a generosidade e a alegria do pai pelo retorno do filho são emblemas claros e perfeitos da graça divina. A mudança na atitude do filho pródigo é um retrato de como deve ser o arrependimento verdadeiro. E a indiferença fria do irmão mais velho — o verdadeiro foco da história, no fim das contas — é uma representação vívida da mesma hipocrisia maligna que Jesus estava confrontando, encontrada no coração dos escribas hostis e dos fariseus a quem ele primeiro contou a parábola (Lucas 15:2). Eles se ressentiam amargamente dos pecadores e cobradores de impostos que se aproximaram de Jesus (v. 1), e tentaram encobrir sua indignação mundana com pretextos religiosos. Mas suas atitudes traíram sua falta de fé e seu egoísmo. A parábola de Jesus arrancou a máscara de sua hipocrisia.

Essa é, portanto, a lição culminante e central da parábola: Jesus está indicando o contraste violento entre a alegria de Deus na redenção dos pecadores e a hostilidade inflexível dos fariseus em relação a esses mesmos pecadores. Mantendo essa lição firmemente fixada em nossa mente, podemos depreender da história maior (como Jesus a relata) várias lições profundas sobre graça, perdão, arrependimento e o sentimento de Deus em relação aos pecadores. Esses elementos também estão de tal maneira visíveis na parábola que quase todos deveriam reconhecê-los.


4. UMA MANEIRA DE LEMBRAR A GRAÇA DE DEUS

Eu sempre adorei essa parábola, e há muito tempo queria escrever um livro sobre ela. No entanto, segundo a sabedoria da providência de Deus, não tive a oportunidade de pregar muitas vezes sobre o Evangelho de Lucas, ainda que tivesse pregado muitos sermões e escrito vários comentários sobre praticamente todo o restante.

Olhando para trás e lembrando meus tantos anos de ministério, sinto-me feliz pelo fato de tudo acontecer de acordo com o tempo de Deus. Quando chego a essa parábola que me é tão cara e familiar depois de passar pelo restante do Novo Testamento, sinto um apreço ainda maior por essa mensagem elaborada com tanto cuidado. Eu a leio com grande gratidão pela glória da simplicidade do evangelho, pelas riquezas incompreensíveis da graça de Deus, pela profundidade perturbadora da depravação humana, pela beleza da salvação divina e graciosa e pelo mais puro encanto da alegria celestial. Todos esses elementos são temas importantes no Novo Testamento. Não é de se admirar: eles também constituem as ideias centrais do evangelho. E estão todos aqui, em cores bem vivas. Essa é, suponho, a razão principal pela qual Jesus investiu tanto tempo e detalhes cuidadosos ao contar essa parábola.

Todas essas seriam razões de sobra para nos dedicarmos a um estudo sério e longo desses 22 versículos que dominam Lucas 15. No entanto, ainda há mais: a parábola do filho pródigo serve como um espelho para o coração e a consciência do ser humano.


5. COMO NOS RECONHECEMOS NESSA PARÁBOLA

Existe um bom motivo pelo qual essa curta história toca no coração de tantos ouvintes. Nós nos reconhecemos nela. A parábola nos lembra dos aspectos mais dolorosos da condição humana, e aqueles que a examinarem honestamente se reconhecerão.

Para os que crêem, o Filho Pródigo serve como humilhante lembrança de quem somos e quanto devemos à graça divina.

Para aqueles que têm consciência da própria culpa, mas ainda não se arrependeram, a vida do Pródigo é um lembrete pungente das consequências do pecado, do dever do pecador de se arrepender e da bondade de Deus, que acompanha o arrependimento autêntico.

Para os pecadores que se arrependem, a recepção ansiosa do pai e a generosidade que ele demonstra servem para sinalizar que a graça e bondade de Deus são inesgotáveis.

Para os incrédulos descuidados (especialmente como os escribas e os fariseus, que usavam a virtude externa como máscara para ocultar o coração pecador), o irmão mais velho é um lembrete de que nem uma demonstração de religião nem uma respeitabilidade fingida substituem a redenção.

Para todos nós, a atitude do irmão mais velho é um aviso poderoso, mostrando quão fácil e sutilmente a falta de crença pode tomar a forma da fé.

Não importa em qual dessas categorias você se encaixe, minha oração por você, enquanto lê este livro, é no sentido de que o Senhor o use para ministrar graça em seu coração. Se você crê, então se aqueça na alegria do Pai pela salvação dos perdidos. Que você desenvolva um apreço renovado pela beleza e pela glória do plano de redenção de Deus. E que você também se sinta encorajado e mais bem equipado para participar no trabalho de disseminação do evangelho.

Que os leitores que, tal como o Pródigo, chegaram ao fundo do poço sejam motivados a abandonar as cascas deste mundo. E, acima de tudo, que esta mensagem soe como um toque de alvorada no coração daqueles que precisem ser acordados para a realidade terrível de seu próprio pecado e para a promessa gloriosa da redenção em Cristo.

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MACARTHUR, John. A Parábola do Filho Pródigo: Uma análise completa da história mais importante que Jesus contou. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2016, 223p.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A IMPORTÂNCIA DE ROMANOS NA HISTÓRIA DA IGREJA



Mais do que praticamente qualquer outro livro da Bíblia, Romanos moldou de forma expressiva a história da igreja. Esse fato não surpreende, tendo em vista que Romanos é a explicação mais sistemática do evangelho de Jesus Cristo no Novo Testamento. Podemos nos lembrar aqui de alguns indivíduos mencionados anteriormente cuja vida foi transformada pela mensagem de Romanos. Agostinho (pai da igreja, do quinto século) finalmente encontrou paz em Deus depois de ler Romanos 13.14: “Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo; e não fiqueis pensando em como atender aos desejos da carne”. Esse era exatamente o desafio de que o jovem e irrequieto Agostinho precisava e assim ele veio a se tornar, possivelmente, o teólogo mais importante da igreja desde o próprio Paulo.

Em 1517. Martinho Lutero passou a entender de modo inteiramente novo a justiça de Deus enquanto meditava em Romanos 1.17: “Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do principio ao fim é pela fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’” (NVI). Veja o testemunho de Lutero, a respeito de sua conversão, com base em seu novo entendimento da justiça divina à luz desse versículo: 

“Não obstante o caráter irrepreensível de minha vida como monge, sentia-me pecador diante de Deus e tinha a consciência extremamente inquieta. Não conseguia crer que ele havia sido aplacado pela satisfação que eu lhe dava. Eu não amava esse Deus justo que castigava os pecadores, mas, sim, o odiava [...] Por fim, pela misericórdia de Deus [...] comecei a entender que a justiça de Deus é a justiça pela qual o justo vive, por uma dádiva de Deus, ou seja, pela fé [...] Senti que havia nascido de novo e entrado pelas portas abertas do paraíso [...] Da mesma forma que havia odiado a expressão “justiça de Deus”, passei a amá-la como a mais doce palavra.” 

Romanos 1.17 também mudou a vida de John Wesley, pois a mera leitura do comentário de Lutero sobre esse versículo, na capela de Aldersgate, numa noite em 1738, deu a Wesley a certeza da salvação que há tanto tempo buscava. Wesley escreveu a respeito desse momento: “Meu coração ficou estranhamente aquecido. Senti que, de fato, confiava em Cristo, e somente em Cristo, para minha salvação”.

A conversão de Karl Barth da teologia liberal para um cristianismo mais conservador (conhecido como neo-ortodoxia) foi resultado de seus sermões sobre Romanos. Seu comentário de 1919 sobre Romanos, em que declarou essa mudança de posicionamento, marcou o início de um novo período. Barth, munido da mensagem de Romanos, conseguiu provocar, sozinho a morte da teologia liberal tradicional.

Além dos expoentes espirituais que acabamos de mencionar, podemos apenas imaginar quantos indivíduos passaram a crer em Jesus Cristo ao percorrerem o “caminho de Romanos” (Rm 3.23; 6.23; 10.9,10,13), incluindo o autor do presente comentário.

Sem dúvida, Romanos mudou a vida de milhões de indivíduos e influenciou o rumo da história da igreja. Merece, portanto, nosso respeito e, até mesmo nossa reverência.

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PATE, C. Marvin. Romanos: Série Comentário Expositivo. São Paulo: Edições Vida Nova, 2015, 354p.