domingo, 30 de julho de 2017

CRISTÃOS PODEM SE BENEFICIAR DE LIVROS SECULARES? - John Piper



Hoje nós temos um e-mail de Jonathan Edwards que vive em Kalamazoo, Michigan. Sim, esse é o seu verdadeiro nome. E sua pergunta é boa: “Pastor John, eu dirijo uma empilhadeira em um armazém para empresas familiares cristãs. Temos permissão para ouvir música e audiolivros em nossos caminhões e eu recentemente comecei a ouvir este podcast. Eu tenho sido um ávido ouvinte de audiolivros em meu trabalho, e eu gostaria de saber o que o senhor pensa sobre a interação com a literatura secular, incluindo ficção, filosofia, poesia e história”. [1]

Ok, Jonathan, aqui está o meu pensamento mais recente sobre por que um uso moderado de ampla leitura, incluindo autores não-cristãos, é uma coisa sábia. Eu chamo isto de o fator realidade. Quando eu estou lendo a Bíblia, há dezenas e dezenas de experiências, conceitos e palavras pelos quais eu posso passar diretamente sem parar para contemplar a realidade por trás das palavras, experiências e conceitos. E é isso que quero dizer com o fator realidade. Precisamos parar, trazer o fator de realidade, e ir mais para trás.

Agora, como você contempla uma realidade sem algum conhecimento da realidade — não conhecimento da palavra, mas da realidade? E eu diria: Quanto mais conhecimento da realidade, melhor, se o conhecimento é verdadeiro e na verdadeira proporção de seu valor. Por exemplo, você não precisa apreender muitos conhecimentos sobre o tamanho e as espécies das aves que Jesus diz para atentar em Mateus 6:26: “Observai [ou considerai] as aves do céu”. Isso não é o cerne do que ele está dizendo. Mas seu objetivo nesse texto é ajudá-lo a livrar-se da experiência da ansiedade. Mas e se você não tivesse experiência de ansiedade? Essa palavra seria vazia para você.

É realmente importante ter conhecimento profundo e amplo da realidade da ansiedade e como ela funciona e quais são suas raízes e quais são seus frutos e de que formas ela pode tomar na vida e como ela pode espalhar-se sobre você e que devastação ela pode causar na história da vida das pessoas, e assim por diante.
Em outras palavras, há muitas realidades na Bíblia que supõem que, a partir da experiência de vida, sabemos a que estão se referindo: paz, alegria, medo, raiva, guerra, decepção, beleza, poder, hipocrisia.

Naturalmente, a Bíblia dá uma visão crucial dessas coisas que não vêm de nenhum outro lugar, mas a matéria prima do conhecimento é obtida, em grande medida, da experiência de vida, e então a Bíblia toma esse fundo comum da experiência humana, da realidade que nos traz para a Bíblia, e mostra como Deus se relaciona com ela e a transforma. O Novo Testamento supõe que não esquecemos a lição do livro de Provérbios de que devemos ir ter com formiga — um pequeno inseto, a formiga — considerar os seus caminhos e sermos sábio (Provérbios 6:6). Em outras palavras, olhe para o mundo. Aprenda a realidade do mundo. Aprenda algo sobre o
trabalho duro do mundo, aprenda algo sobre a perseverança do mundo. Amplie o seu fundo de realidade experiencial de mil coisas que estão no mundo porque, quando o Novo Testamento menciona essas coisas, assume que temos algum conhecimento experiencial delas.

Entretanto aqui está o ponto. A maioria de nós vive vidas tão pequenas, estreitas, restritas e limitadas — sabemos tão pouco sobre tantas coisas — uma das maneiras, apenas uma, que Deus ordenou para que crescêssemos em nosso conhecimento de muitas coisas, muitas experiências de que não temos experiência imediata é através da leitura. Isto significa que, se tivermos um amplo e profundo conhecimento das coisas através da leitura, bem como através da experiência de vida, então, quando a Bíblia fala, por exemplo, da tristeza de perder dez filhos, podemos ter uma maior compreensão do que ela está se referindo — estou pensando em Jó — se nós passarmos por isso, o que não acontecerá com a maioria de nós. Quase ninguém perde dez filhos de uma só vez. Mas podemos ler sobre isso. Podemos ler os vários tipos de coisas horríveis que as pessoas passaram e aprofundar nossa compreensão do espírito humano e de experiência de como fazer isso.

Então, deixe-me lhe dar apenas um pequeno vislumbre de como isso funcionou para o Jonathan Edwards original. Ele fez um sermão sobre a escravidão do pecado e o que é ter Satanás como um senhor de escravos. Ora, ele sabe que Satanás é o senhor mais malvado, grosseiro e mais diabólico que já existiu. E, no entanto, a maioria das pessoas ainda está contente em lhe servir.

Agora, como Edwards poderia sentir isso como deveria? Como ele poderia saber a realidade do que significa ser governado por Satanás, como deveria? Como ele poderia dizer isso de uma maneira que ajudaria os outros a conhecerem essa realidade? Bem, Edwards tinha evidentemente feito alguma leitura sobre o sacrifício humano no país da Guiné. E aqui está no que isso o ajudou. Aqui está o que ele diz:

[Satanás e seus companheiros] fazem com vocês, como ouvi dizer, na Guiné, onde comem a carne dos homens nas suas grandes festas. Eles colocam uma pobre criança ignorante que nada sabe do assunto, para fazer um fogo e enquanto ela se inclina para soprar o fogo, alguém vem para trás e golpeia a sua cabeça, e então ela é assada pelo mesmo fogo que acendeu, e fazem uma festa disto, e o crânio é usado como um copo, a partir do qual se alegram com seu licor. Exatamente assim, Satanás tem em mente fazer para alegrar-se com você.

Isso é muito horrível, poderoso e inesquecível. Edwards obteve esse conhecimento do mal de fora da Bíblia, e informou ensinamentos bíblicos sobre o horrível, diabólico, devastador e assassino governo de Satanás sobre seu povo — ao mesmo tempo que os faz pensar que estão se divertindo.

Agora, no meu caso, acabei de ouvir os três volumes da biografia de Winston Churchill, de William Manchester, cerca de 1.000 páginas cada. Que educação na realidade, insights sobre os desafios naturais da liderança, sobre os horrores da guerra, sobre a natureza inconstante da aprovação do público, sobre a insanidade sexual dos namoricos da classe alta, sobre as complexidades do que a justiça parece na política pública, sobre o valor de nunca desistir, embora haja uma enorme oposição, e assim por diante. Que educação.

Eu estava aprendendo a realidade. Eu não estava aprendendo a minha moralidade. Os livros não ensinavam moralidade. Eu não estava aprendendo minha moralidade. Recebo isso da Bíblia. Eu estava ganhando a consciência das realidades que vêm da experiência da vida, de outro modo eu não teria nenhuma experiência de vida de estar na guerra. Coisas que existem e como elas são, foi isso que eu encontrei. Em outras palavras, eu estava ampliando a matéria-prima da realidade que a Bíblia assume e interpreta para mim quando trago isto para minha leitura.

Então, qual é o objetivo de toda essa leitura? Todas as nossas leituras, cristãs ou não-cristãs, todas as nossas leituras visam conhecer melhor a Deus, conhecer melhor o homem, conhecer melhor os caminhos de Deus e os caminhos do homem, compreender melhor as Escrituras, de modo que nós possamos obedecer mais plenamente ao que Deus diz e sermos mais úteis para cumprir seus propósitos e glorificar seu nome.

Amém!… Ok, representado os ouvintes do APJ [Ask Pastor John — Pergunte ao Pastor John], sei que eles querem que eu pergunte, quanto tempo demorou para você passar por todos os três áudio livros do Churchill?

Comecei na primavera. Então, talvez cinco ou seis meses. E quando terminou, eu me senti triste. Eu realmente me senti triste, porque foi tão gratificante ouvi-los por causa da realidade que eles estavam me expondo: tantas coisas as quais eu não sabia nada sobre. Era como ler a história da Segunda Guerra Mundial e, é claro, era uma biografia do homem. Foi uma guia em ciência política. Foi uma leitura notável.




[1] Texto Original publicado em Voltemos ao Evangelho. 
Disponível in: https://goo.gl/ExQQtj




quarta-feira, 19 de julho de 2017

NOSSA HERANÇA REFORMADA - O JUSTO VIVERÁ PELA FÉ


O ÚLTIMO DIA DE OUTUBRO marca outro aniversário do nascimento da Reforma. A Reforma é formalmente datada de 31 de outubro de 1517 - o dia em que Martinho Lutero pregou na porta de uma capela em Wüttenberg as Noventa e Cinco Teses que ele havia escrito. Essas teses foram traduzidas dentro de semanas para a maioria das línguas europeias, e se espalhou por toda a Europa em poucos meses. O Senhor havia estado amadurecendo a Europa para a Reforma, e quando essas Teses foram espalhadas no exterior, as pessoas comuns passaram-nas de mão em mão. Pela graça de Deus, a Reforma varreu grande parte da Europa.

Hoje nós somos filhos e filhas da Reforma, pelo menos em termos de nossa herança. Nós temos que também examinar se somos filhos e filhas da Reforma em nossas crenças e na prática diária de nossas vidas. É crítico que examinemos o que Deus fez nas eras passadas à luz de Sua Palavra, e então perguntemos a nós mesmos: “Estamos sendo verdadeiros quanto à herança bíblica Reformada?” O Dia da Reforma é designado para reavivar em nós uma apreciação não apenas pelo que Deus fez no passado, mas também para examinar o que Ele está fazendo conosco, com nossas famílias, com nossa congregação no presente, assim como para examinar o que nós estamos fazendo com Suas grandes verdades reformadas.

Agora, em que consiste a grandeza da Reforma de forma mais suprema?

Nossa resposta deve ser muito simples: consiste na restauração das Sagradas Escrituras como guia único, inerrante e autoritativo para a fé e prática da igreja e dos crentes individualmente. Nossa herança reformada é a herança das Escrituras. Com a herança das Escrituras, uma grande herança se desenvolveu, que afetou a igreja de forma espiritual em muitas formas que nós admitimos como verdadeiras hoje.

O retorno às Escrituras ao primeiro lugar trouxe o retorno da pregação bíblica. A pregação expositiva uma vez mais ganhou a primazia no culto, em preferência a todos os outros tipos de liturgia.

O retorno à Escritura também serviu para promover a sã doutrina. Catecismos e padrões de doutrina (símbolos de fé), ricos em conteúdo, jorraram na trilha de um retorno às Sagradas Escrituras. Em nossa tradição holandesa, claro, nós temos aprendido a estimar o Catecismo de Heidelberg, a Confissão Belga, os Cânones de Dort – nossos padrões de doutrina (símbolos de fé) da Europa Continental. Na tradição britânica, os padrões de Westminster: a Confissão de Fé de Westminster, o Breve Catecismo e o Catecismo Maior; na tradição suíça, a Primeira Confissão Helvética e a Segunda Confissão Helvética – todas essas são grandes confissões, levando a mente a um retorno às doutrinas das Escrituras. Dessa forma, as doutrinas apostólicas do Novo Testamento e a doutrina de Agostinho com respeito à salvação tornaram a vir à frente com vibrante realidade na vida das pessoas. Isso ocorreu conforme as pessoas iam adquirindo a Bíblia; liam-na, buscavam-na, e descobriam as doutrinas da graça somente, da fé somente, da Escritura somente, de Cristo somente e da glória de Deus somente. Milhares abraçaram essas verdades pelo poder do Espírito; viveram-nas; verteram seu sangue por elas. Isso é a nossa herança hoje.

O retorno às Escrituras também resultou na reestruturação da Igreja. A hierarquia de cerca de quinze ofícios inventados pelo Catolicismo Romano foi rejeitada, e a Igreja retornou a uma organização bíblica simples e aos princípios bíblicos de disciplina.

O retorno à Escritura também trouxe de volta a renovação de uma vida piedosa e isso no fundamento correto da gratidão e não do mérito. As boas obras agora passaram a ser vistas como aquilo que flui da justificação e não como aquilo que leva à justificação.

O retorno à Escritura também promoveu a educação cristã. Escolas foram fundadas para ensinar as verdades escriturísticas. Educadores cristãos objetivaram ensinar crianças pequenas a ler a Bíblia. Como Lutero uma vez disse: “Um menino do campo armado com uma Bíblia em uma mão e meu catecismo na outra seria capaz de defender as verdades da Palavra de Deus contra prelados e bispos e até mesmo contra o próprio papa”. A dependência do sacerdote local para a interpretação da Escritura foi quase abolida. Tudo isso veio à tona com o retorno da Escritura ao
homem comum, abençoado pelo Espírito Santo.

Acima de tudo, o retorno da Escritura trouxe de volta a glória de Deus no meio de Sua igreja. As tradições, ornamentos e ídolos dos homens deram passagem à Palavra de Deus. Igrejas foram caiadas, ídolos foram quebrados. Deus somente era adorado. O homem foi humilhado e Deus exaltado.

O retorno à Escritura trouxe de volta especialmente aqueles conceitos bíblicos que estão no centro da mensagem da Escritura, particularmente a doutrina da justificação pela graciosa fé somente. Isso é o que distingue os precursores da Reforma dos reformadores. Por que não chamamos João Wycliffe, João Huss, Pedro Valdo, Gregório de Rimini, Thomas Bradwardine, e outros precursores de reformadores? Porque eles nunca chegaram a ter uma compreensão clara desta doutrina da justificação pela fé somente.

Consequentemente, foi por volta de 1513, quando Martinho Lutero tinha cerca de trinta anos, que a Reforma nasceu em seu coração, porque então as palavras de nosso texto, “o justo viverá por fé” abriram seu coração ao evangelho e puseram de cabeça para baixo seu ensino anterior que enfatizava que a salvação vinha, pelo menos parcialmente, através do esforço humano.

O justo viverá por fé é o evangelho em poucas palavras. Paulo diz em Romanos 1 que é isso que ele estava ansioso para trazer aos cristãos em Roma, mas também para pregar esse evangelho em Roma a judeus e gentios. Por anos Paulo tinha querido vir à assim chamada cidade eterna, a cidade de Roma, mas toda vez algo parecia acontecer que tornava isso impossível para ele. Temendo que os romanos começassem a pensar que ele não tinha nenhum desejo de estar com eles, Paulo escreveu esta notável epístola na qual, talvez mais do que em qualquer outro livro da Bíblia, as doutrinas da graça gratuita, livre e soberana, são reveladas sistemática, criteriosa e persuasivamente, passo a passo, seguindo a ordem da miséria, libertação e gratidão.

A miséria do homem é exposta nos capítulos de 1 a 3; libertação, nos capítulos de 4 a 8; gratidão, nos capítulos de 9 a 16. O livro de Romanos, mais do que qualquer outro no começo da Reforma, foi lido e relido. Vários comentários foram escritos sobre ele. Costuma-se dizer, em parte corretamente, que ninguém poderia ser um reformador verdadeiro se não tivesse escrito um comentário sobre Romanos. O livro de Romanos representa o coração do evangelho, pois ali nós vemos as gloriosas verdades do evangelho expostas vívida e poderosamente.

Paulo escreveu aos romanos para lhes explicar o evangelho. Após uma poderosa introdução, ele lhes escreve, por assim dizer, “Por favor, não pensem que eu estou tentando evitar vocês porque eu esteja com medo de vir à cidade culta de vocês; pois ‘eu não me envergonho do evangelho de Cristo’. Eu não me envergonho de levá-lo a nenhum lugar, e nem mesmo às pessoas cultas em Roma”. E, claro, ao dizer que ele não se envergonhava, Paulo está usando um recurso literário; ele está usando um negativo para expressar um positivo. Ele está dizendo, por assim dizer: “Eu ficaria contente em levar o evangelho a vocês, pois eu me glorio nesse evangelho, eu me vanglorio nesse evangelho. Eu estou pronto para pregar esse evangelho em todo lugar, porque ele é a melhor notícia que o mundo já ouviu. É o evangelho, a boa-nova, a gloriosa notícia de Jesus Cristo. É o poder de Deus para a salvação de judeus e gentios. Portanto, eu não me envergonho dele, mas me glorio no evangelho de Deus. Queridos romanos, esse é o tipo de evangelho que vocês precisam”. Paulo continua dizendo em Romanos 1 que você e eu, congregação, também precisamos do tipo de justiça que esse evangelho apresenta, a saber, a justiça de Deus.

Ao falar aqui da justiça de Deus, Paulo não quer dizer, neste caso particular, o atributo da justiça de Deus. Isso é como Lutero entendeu isso no começo. Ao ler Romanos 1:16-17 em sua cela no monastério, Lutero se tornou muito atribulado. A justiça de Deus foi uma fonte de grande temor para ele. Deus era mais um tirano do que um Deus de amor e misericórdia. Ele não conseguia entender como Paulo podia dizer que isso era sua glória, sua alegria, e que ele podia viver pela justiça de Deus — “Visto que a justiça de Deus se revela de fé em fé”. Lutero agonizava por causa do que isso queria dizer. Ele lutava e dizia a si mesmo: “Como eu posso viver pela justiça de Deus, quando eu tenho gasto toda a minha vida tentando evitar a justiça de Deus, porque a justiça de Deus deve me condenar?”.

Lutero tinha passado vários anos tentando alcançar as exigências da justiça divina. Ele tinha dormido no chão de cimento por muitas noites seguidas. Ele tinha negado a si mesmo todo tipo de privilégios básicos da vida, esperando que de alguma forma pudesse satisfazer a Deus. Ele se voltou para o misticismo; tentou se confessar com um sacerdote. Cansado de suas confissões sem fim, o sacerdote finalmente lhe disse: “Lutero, por que você não dá uma saída e comete algum pecado real uma vez, e depois venha comigo fazer a confissão!”. Lutero estava sendo levado pelo Espírito Santo a ver seu pecado habitando em seu coração e ainda não sabia que a solução para todo pecado estava exclusivamente na graça gratuita de Deus. Ele pensou que a solução envolvia arrumar sua vida e estabelecer sua própria justiça perante a justiça de Deus. E assim ele veio a temer progressivamente a justiça de Deus.

Por dez anos Lutero lutou com a justiça de Deus em face de sua própria injustiça. Ele tinha um conselheiro espiritual de nome Johann Staupitz que permaneceu na Igreja Católica Romana, mas que tinha, ele mesmo, sido liberto pelo sangue de  Jesus Cristo somente. Staupitz com freqüência encontrava Lutero caminhando para frente e para trás em sua cela, lamentando e gemendo por seus pecados. Uma vez ele disse a Lutero: “Seus votos nunca serão suficientes. A salvação somente é encontrada fora de si mesmo, em Jesus Cristo”. Uma outra vez, quando Lutero estava andando na cela, pressionando suas mãos e confessando: “Meus pecados, meus pecados, meus pecados!”, Staupitz simplesmente citou o Credo dos Apóstolos: “Eu creio no perdão dos pecados”, e foi embora. Essas coisas deixaram uma profunda impressão em Lutero, mas ele ainda não podia entender como um Deus santo e justo, que não poderia ter nenhuma compaixão com o pecado, pudesse alguma vez olhar para ele com misericórdia.

Alguma vez já foi esta a sua luta, amigo querido? Não, eu não estou dizendo que precisamos experimentar dez anos de luta como Martinho Lutero experimentou. O próprio Lutero não diria isso. Uma vez ele escreveu à sua congregação: “Eu estou lhes contando sobre minhas lutas não porque eu queira que vocês as imitem, mas porque eu gostaria de livrá-los delas”. E então ele prosseguiu dizendo algo assim: “Se vocês me tomarem como padrão, vocês estarão sendo tolos. Fujam diretamente, exatamente como vocês estão, com todos os seus pecados e todas as suas necessidades para a justiça comprada com o sangue do Filho de Deus”.

Finalmente, as palavras de nosso texto irromperam para Lutero quando ele tinha cerca de trinta anos. Foi como se num momento o evangelho fosse desvendado perante seus olhos, e ele finalmente viu que Jesus Cristo é tudo para a justiça de um pecador; que Ele fez tudo para um pecador; que Ele pagou o preço do pecado; que Ele obedeceu à Lei. Mais tarde ele escreveu que foi como se sua alma “traspassasse os portões abertos do paraíso”. Sua alma foi posta em liberdade em
Cristo.

Hoje, se alguém vai expor uma estátua que tenha estado oculta até então, há sempre uma data estabelecida para sua mostra conforme o escultor se aproxima de sua conclusão. Uma cerimônia oficial de exposição acontece onde todos possam vê-la pela primeira vez. Similarmente, quando Lutero viu que o justo viverá por fé e não por obras; que a fé crê na mensagem do evangelho de que Jesus fez tudo por um pecador que não pode fazer nada – quando ele viu as verdades básicas do evangelho, e sua pobre alma foi lançada na justiça de Cristo como sua única e suficiente esperança por todo o tempo e eternidade, foi como se um lençol ou véu tivesse sido retirado de sobre o evangelho. Pela primeira vez ele viu com clareza o evangelho da graça de Deus na pessoa de Jesus Cristo que é tudo em todos por pecadores que não são de forma alguma nada.

Vocês veem congregação, há duas coisas que vocês e eu nunca seremos capazes de fazer e que deve ser feita por nós: primeiro, nós nunca poderemos cumprir a Lei, e nós a devemos cumprir – seja por nós mesmos ou por outro fazendo isso por nós, porque Deus não permitirá nos céus ninguém que tenha transgredido a Lei e não tenha sido perdoado; segundo, nós nunca poderemos pagar a punição de nossos pecados, por eles exigem um inferno eterno. O que Lutero viu naqueles momentos foi que, através da justiça do evangelho, Cristo fez aquelas duas coisas. Ele obedeceu à Lei perfeitamente por seu povo; isto é o que os reformadores posteriormente chamariam de Sua obediência ativa. E Cristo pagou por todos os pecados de seu povo; isto é o que os reformadores posteriormente chamariam de Sua obediência passiva. Através dessas duas coisas Jesus satisfez a
justiça de Deus. Dessa forma, crendo graciosamente nessas verdades, um pobre pecador pode encontrar toda a sua justiça na justiça de Cristo Jesus, “visto que a justiça se revela de fé em fé; como está escrito: o justo viverá pela fé”. Lutero viu que aquela justiça estava disponível; sim, estava completa. Ele viu pela primeira vez o que Jesus queria dizer quando disse na cruz: “Está consumado”.

Mas ele também viu que aquela justiça deve ser recebida pela fé, pela fé graciosamente operada pelo Espírito. Ele viu que aquela justiça recebida pela fé seria plenamente aceitável para a vida toda do crente, não apenas para torná-lo reto diante de Deus, mas também para mantê-lo reto diante de Deus. “O justo viverá por fé”. Os justos não apenas são salvos pela fé; eles vivem pela fé. Lutero viu que o único modo de ser um cristão era viver pela fé.

Hoje nós também vivemos na dispensação do Novo Testamento, quando o véu está retirado; Cristo é exposto a todos que vêm ao evangelho. Mas nossos olhos são cegos por natureza; nós não temos a fé que precisamos para crer no evangelho; nós não vemos que tudo já está cumprido. Consequentemente, nós nos mantemos ocupados, cuidando de estabelecer nossa própria justiça.

Pela graça, Lutero, em sua assim chamada experiência da torre, abraçou a justiça de Jesus Cristo, como ele diria mais tarde, em seu pronome pessoal. Ele podia agora dizer: “Jesus é minha justiça; a salvação se tornou realidade para mim”. Lutero viu a justiça de Deus com os olhos da fé através das Escrituras. Mais tarde ele escreveria:

“Ali estava eu em minha torre, lendo e orando. Eu labutei diligentemente e ansiosamente para entender essas palavras de Paulo – ‘a justiça de Deus revela-se no evangelho’. Eu busquei por muito tempo e bati ansiosamente, pois a expressão a justiça de Deus bloqueava meu caminho. Quanto mais eu lia essa expressão, eu desejava que Deus não tivesse tornado o evangelho conhecido de modo algum. Mas, então, um dia quando eu estava meditando na torre, eu vi a diferença entre lei e evangelho pela primeira vez em minha vida. A luz penetrou e, assim como antes eu havia odiado a expressão ‘a justiça de Deus’, agora eu a considerava como a palavra mais reconfortante em toda a Bíblia. Falando a verdade, essa linguagem de São Paulo era para mim a verdadeira porta do paraíso”.

Dessa forma Lutero experimentou duas coisas que estão no coração da Reforma, duas coisas que temos que saber: (1) Nós precisamos conhecer nossa injustiça não-coberta, e (2) nós precisamos conhecer a justiça de Jesus Cristo descoberta.

 “Visto que a justiça de Deus se revela de fé em fé ... O justo viverá por fé”. Isto se tornou a marca da Reforma que foi espalhada por muitos outros lugares e povos. Essa doutrina erguida por Calvino e Zwinglio na Suíça; por Knox na Escócia; por Bullinger, Beza, Bucer, e muitos outros. Essa doutrina custou mártires; centenas foram queimadas na estaca. Essa doutrina por sua vez se tornou a semente da igreja.
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Joel Beeke. Nossa Herança Reformada – O Justo viverá por fé. São Paulo: Editora Os Puritanos, 2005, p.9-22

terça-feira, 18 de julho de 2017

TEONTOLOGIA - A IMUTABILIDADE DE DEUS [Aula 05]



A imutabilidade de Deus está ligada à Sua eternidade, que foi analisada de forma resumida no capítulo nove, mas elas não são idênticas. A eternidade de Deus significa que Ele sempre existiu e sempre existirá; nada veio antes dele, nada depois. A imutabilidade do Senhor denota que Ele é sempre o mesmo em Seu ser eterno.

Podemos entender isso de imediato. Contudo, essa qualidade é a que separa o Criador até mesmo dia mais superior de Suas criaturas. Deus é imutável, enquanto nenhuma outra parte de Sua criação o é. Tudo o que conhecemos muda. O mundo material muda, e não no sentido circular, como os gregos entendiam – de modo que todas as coisas no final voltam a ser o que eram --, mas sim no sentido de desgastar-se, como a ciência indica.

Por exemplo, elementos com elevados complexos e ativos, tais como materiais radioativos, decaem para menos ativos. Os recursos variados e abundantes da terra são extinguíveis. Espécies de vida podem tornar-se extintas, e muitas já se tornaram. De forma individual, homens e mulheres nascem, crescem, envelhecem e morrem. Nada que conhecemos dura para sempre.

Na humanidade, a mutabilidade se deve ao fato de que somos criaturas decaídas e estamos separados de Deus. A Bíblia fala dos ímpios como sendo o mar bravo que se não pode aquietar (Is 57.20). Judeus fala deles como nuvens sem água, levadas pelos ventos (1.12c), e como estrelas errantes (1.13c), sem uma órbita certa.

Com certeza não há melhor lugar para demonstrar a dimensão moral da variabilidade humana do que na reação das pessoas ao Senhor Jesus Cristo. Em uma semana elas clamavam: Hosana! Bendito o Rei de Israel que vem em nome do Senhor! (Jó 12.13). Na semana seguinte, gritavam: Crucifica-o! Crucifica-o! (Lc 23.21b).

Não se pode confiar na natureza humana, todavia podemos confiar em Deus. Ele é imutável. Sua natureza é sempre a mesma. Sua vontade é invariável. Seus propósitos são seguros. Deus é o ponto fixo num universo conturbado e decaído para aqueles que em verdade o conhecem.

Após Tiago ter falado sobre o pecado e os erros humanos, ele também afirmou que toda dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança, nem sombra de variação (Tg 1.17).

A mesma perspectiva é compartilhada pelo profeta Malaquias, que observa em um versículo que já se aproxima do final do Antigo Testamento: Porque eu, o SENHOR, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos (Ml 3.6).


SEM MUDANÇAS

Cada um dos versículos anteriores fala da imutabilidade de Deus na Sua essência. Sendo perfeito, Ele nunca fica diferente de si mesmo. Para um ser moral mudar, seria necessário mudar em uma ou duas direções. Ou a mudança é de alguma coisa pior para uma coisa melhor, ou de algo melhor para algo pior.

É evidente que Deus não pode mudar para melhor, porque isso significaria que outrora Ele havia sido imperfeito. Se estivéssemos falando sobre justiça, por exemplo, significaria que Ele não havia sido em Sua totalidade justo, e, por isso, teria sido pecador. Se estivéssemos falando sobre conhecimento, significaria que Ele não sabe de tudo, e seria ignorante.

Por outro lado, Deus não pode mudar para pior. Nesse caso, Ele se tornaria menos do que havia sido em algum momento, tornando-se pecaminoso ou imperfeito.

A imutabilidade de Deus, de acordo com a Escritura, não é a mesma coisa que a imutabilidade de deus descrita pelos filósofos gregos. No pensamento grego, a imutabilidade significava não apenas nunca mudar, porém também a falta de habilidade de ser afetado por qualquer coisa de alguma forma. A palavra grega para isso, a características primária de deus, era apatheia, da qual deriva a palavra em português apatia, que significa indiferença.

Contudo, o termo grego vai além dessa ideia. Significa uma total inabilidade de sentir qualquer emoção. Os gregos acreditavam que deus tinha essa qualidade porque de outro modo teríamos poder sobre ele a ponto de poder fazê-lo sentir raiva, alegria ou pesar. Ele deixaria de ser absoluto e soberano.

Assim o deus dos filósofos, embora não das mitologias mais populares, seria solitário, isolado e sem compaixão.

Isso estabelece uma boa filosofia. Tem lógica. No entanto, não é o que Deus revela sobre si mesmo na Escritura, e devemos rejeitar tal filosofia, tão lógica quanto possa parecer. A Bíblia nos mostra que Deus é de fato imutável, porém Ele percebe e é afetado pela obediência, pelo pecado de Suas criaturas.

Brunner, em Herdeiros de Deus, escreveu:

Se for verdade que realmente há tais coisas como a misericórdia de Deus e a ira de Deus, então Deus, também, é afetado pelo que acontece a Suas criaturas. Ele não é como aquela divindade do platonismo, que é despreocupada e que, portanto, não se comove com todas as coisas que acontecem na terra, mas segue sua vida no céu sem olhar ao seu redor, sem considerar o que está acontecendo aqui. Deus decidiu “olhar ao redor”; Ele em definitivo importa-se com o que acontece ao homem. Ele se preocupa com as mudanças na terra. [1]

Um exemplo primário é visto no Senhor Jesus Cristo, que, apesar de ser Deus, chorou pela cidade de Jerusalém e no túmulo de Lázaro.


UMA VERDADE PERTUBADORA E CONFORTANTE

A imutabilidade de Deus também se aplica a Seus atributos. O Breve Catecismo de Westminster [2] define Deus como sendo espírito, infinito, eterno e imutável em Seu ser, sabedoria, poder, santidade, justiça, bondade e verdade.

Deus tem todo o conhecimento e a sabedoria, e Ele sempre terá toda a sabedoria. Ele é soberano e sempre o será. Ele é santo e sempre será santo. Ele é justo e sempre será justo, bom, verdadeiro. Nada que acontece jamais diminuirá Deus nesses ou em qualquer de Seus atributos.

Essa verdade tem dois lados: é perturbadora para aqueles que estão em rebelião contra Deus e é confortante para aqueles que vieram a conhecê-lo por intermédio de Cristo. O primeiro é evidente no que dissemos nos três capítulos anteriores. Se for verdade que a sabedoria, santidade e onisciência de Deus são conceitos improváveis para o homem natural, o fato de que Deus não mudará em nenhuma dessas áreas é ainda mais perturbador.

A pessoa que não está salva não se sentiria tão incomodada pela sabedoria de Deus se pudesse pensar que um dia Deus se tornaria menos soberano, e o indivíduo mais autônomo. Seria concebível que ela, ou a humanidade, poderia substituir Deus um dia.

De novo, esse indivíduo não ficaria tão perturbado pelos pensamentos sobre a santidade de Deus se fosse possível imaginar que com o tempo Deus se tornaria menos santo, chamando o que Ele hoje considera como pecado de não pecado, e ignoraria a culpa. Ou, se Deus pudesse esquecer, logo o mal não seria tão problemático; se fosse dado tempo, ele poderia desvanecer-se na memória de Deus.

Todavia, a imutabilidade de Deus significa que Ele será sempre soberano, sempre santo, sempre onisciente. Por consequência, todas as coisas devem ser trazidas à luz e julgadas diante dele.

Outro lado dessa doutrina diz respeito ao cristão. Para nós é um grande conforto. Neste mundo as pessoas nos esquecem, mesmo quando trabalhamos duro e as servimos. Elas mudam de atitude em relação a nós à medida que suas próprias necessidades e circunstâncias determinam. Com frequência são injustas, como nós somos também, Contudo, Deus não é assim.
           
Sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo par o Pai, com havia amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim. (João 13.1)

Tozer escreveu sobre o conforto encontrado na imutabilidade de Deus:

Que paz traz ao coração do cristão entender que o Pai celestial nunca fica diferente de si mesmo. Ao aproximar-nos dele em qualquer momento não precisamos perguntar-nos se o encontraremos numa posição receptiva. Ele sempre é receptivo à tristeza e à necessidade, assim como ao amor e à fé. Ele não segue um horário comercial nem reserva períodos em que não verá ninguém. Ele também não muda de opinião a respeito de nada. Hoje, neste momento, Ele está voltado para Suas criaturas, para os bebês, para os doentes, para os decaídos, para os ímpios, com exatidão como fazia quando enviou Seu único Filho ao mundo para morrer pela humanidade. Deus nunca muda Seu humor, esfria em suas afeições ou perde Seu entusiasmo.[3]

Assim, temos grande conforto aqui. Se Deus variasse como Suas criaturas variam, se Ele quisesse uma coisa hoje e outra amanhã, quem confiaria nele ou seria encorajado por Ele? Ninguém. No entanto, Deus é sempre o mesmo. Sempre o encontraremos como Ele se revelou ser em Cristo Jesus.


PLANOS IMUTÁVEIS

Deus também é imutável em Seus propósitos e planos. Em geral temos uma visão falha para antecipar tudo o que pode acontecer, ou falta-nos o poder para executar o que nos propomos. Deus não é como nós a esse respeito. “Infinito em sabedoria, não pode haver erro na concepção de Seus planos; infinito em poder, não pode haver falha na Sua realização” [4]  (HODGE,1960, p. 390).

Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, par que se arrependa; porventura, diria Ele e não o faria? Ou falaria e não o confirmaria? (Números 23.19)

Arrependimento significa revisar o plano de ação de alguém, entretanto Deus nunca faz assim. Seus planos são feitos com base no perfeito conhecimento, e Seu poder perfeito providencia sua realização.

O conselho do SENHOR permanece para sempre; os intentos do seu coração, de geração em geração. (Salmo 33.11)

O SENHOR dos Exércitos jurou, dizendo: Como pensei, assim sucederá; e, como determinei, assim se afetuará. (Isaías 14.24)

Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim; que anuncio o fim desde o princípio e, desde antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade. (Isaías 46.9,10)

Salomão escreveu: Muitos propósitos há no coração do homem, mas o conselho do SENHOR permanecerá (Pv 19.21).

Quais são as consequências da imutabilidade de Deus? Primeiro, se os propósitos de Deus não mudam, então os propósitos de Deus para Cristo também não mudarão. Seu propósito é glorificar Cristo.

Pelo que também Deus o exaltou soberanamente e lhe deu um nome que é sobre todo o nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai. (Filipenses 2 .9-11)

É tolice resistir à glória de Cristo. Podemos fazer isso agora, como muitos fazem, contudo está chegando o dia quando Jesus terá de ser confessado como Senhor mesmo por aqueles que não o aceitaram como Senhor nesta vida. Nesses versículos a palavra que é traduzida como confesse, exbomologeo, significa reconhecer com ação de graças.

Por exemplo, é usada como um reconhecimento ou uma confissão de pecado e da concordância de Judas com os príncipes dos sacerdotes para trair seu Mestre. É nesse sentido de reconhecimento que a palavra é usada sobre aqueles que se rebelaram contra a autoridade de Cristo e a glória de Sua vida. Eles o rejeitaram aqui, mas vão reconhecê-lo na eternidade. Eles não vão confessar com alegria que Jesus Cristo é o Senhor, no entanto vão confessá-lo enquanto estão sendo banidos de sua presença sempre.

Porque, quando Deus fez a promessa a Abraão, como não tinha outro maior por quem jurasse, jurou por si mesmo, dizendo: Certamente, abençoado, te abençoarei e, multiplicando, te multiplicarei. E assim, esperando com paciência, alcançou a promessa. Porque os homens certamente juram por alguém superior a eles, e o juramento para confirmação é, para eles, o fim de toda contenda. Pelo que, querendo Deus mostrar mais abundantemente a imutabilidade do seu conselho aos herdeiros da promessa, se interpôs com juramento, para que por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, tenhamos a firme consolação, nós, os que pomos o nosso refúgio em reter a esperança proposta. (Hebreus 6.13-18)

O propósito de Deus é trazer os Seus para desfrutar pleno de Sua prometida herança. Ele o confirma por meio de um juramento imutável. Nesse propósito cada filho redimido de Deus deve ter ânimo.

Por fim, o propósito de Deus para os ímpios não mudará. É seu propósito julgá-los, e Ele irá fazê-lo. Deus ao culpado não tem por inocente (Êx 34.7c). Muitas outras passagens declaram com frequência o julgamento em si.

A imutabilidade do julgamento divino deve ser uma advertência para qualquer um que não se voltou para o Senhor Jesus como Salvador, e deve impeli-lo a Cristo enquanto ainda há esperança.

A imutabilidade de Deus também significa que a verdade de Deus não muda.

Os homens, às vezes, fazem afirmativas que não sentem porque não conhecem sua própria mente; também porque suas perspectivas mudam, eles com frequência descobrem que não podem mais ficar firmes em relação ao que disseram no passado. Todos nós, às vezes, temos de revogar nossas palavras, porque fatos duros as refutam. As palavras dos homens são instáveis. Todavia, não é assim com a Palavra de Deus. Ela fica para sempre. Nenhuma circunstância vai induzi-lo a revogá-la; nenhuma mudança em Seu próprio pensamento exige que Ele a corrija. Isaías escreveu: Toda carne é erva [...]. Seca-se a erva, [...] mas a palavra de nosso Deus subsiste eternamente (Is 40.6-8). [5]

Os cristãos devem ficar firmes nas palavras e promessas do Deus imutável. As promessas do Senhor não são “relíquias de eras passadas”, com Packer observa, mas sim a revelação inalterável e válida da vontade do nosso Pai celestial. Suas promessas não se alterarão. Um homem e uma mulher sábios confiam nessa verdade.

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Fundamentos da Fé Cristã: Uma Manual de teologia ao alcance de todos. James Montgomery Boice. São Paulo: Central Gospel, 2011, p. 124-128


[1] BRUNNER, Emil. The Christian Doctrine of God: Dogmatics [A doutrina cristã de Deus: teologia
dogmática], Vol. 1. Philadelphia: Westminster, 1950, P.268
[2] O Breve Catecismo de Westminster foi formulado por teólogos ingleses e escoceses da Assembléia de Westminster, no séc. 17. É um catecismo resumido, de orientação calvinista, composto de 107 questões. Ao lado da Confissão de Fé de Westminster e do catecismo Maior de Westminster, compõe os símbolos de fé das igrejas presbiterianas ao redor do mundo.
[3] TOZER, A. W. The Knowledge o f the Holy [O conhecimento do sagrado], New York: Harper &
Row, 1961, p.59
[4] HODGE, Charles. Systematic Theology [Teologia Sistemática]. London: James Clarke & Co., 1960, p.390.
[5] PACKER, J. I. Knowing God [Conhecendo a Deus], Illinois: IVP, 1973, p.70

segunda-feira, 17 de julho de 2017

O ZELO EVANGELÍSTICO DE GEORGE WHITEFIELD [Prefácio]


O evangelho deveria ser recuperado para as nações, e  Deus havia preparado Whitefield para pregá-lo. - lain H. Murray [1]

Se eu pudesse ser qualquer figura da história da igreja, desejaria ser George Whitefield. Digo isso, não por sua grande habilidade de oratória nem sua fama mundial, mas principalmente por seu ardente zelo evangelístico. Preeminentemente, Whitefield instilou em mim uma paixão pela pregação.

Fui motivado a buscar maior ousadia pela verdade por meio de Martinho Lutero. Adquiri maior desejo de pregar a Escritura de maneira seqüencial, expositiva, através de João Calvino. Fui desafiado em termos de disciplina na vida cristã por meio de Jonathan Edwards. Aprendi a necessidade de um intenso foco no evangelho em cada sermão através de Charles Spurgeon. Mas,  quando chego a George Whitefield, sou cativado por seu zelo impar na proclamação da mensagem do evangelho até os confins da terra.

Neste livro, é meu desejo desvendar o coração de um homem que ardia por realizar a obra de Deus. Minha sincera esperança é que o exemplo de George Whitefield renove a sua paixão por levar o nome de Cristo às nações. Oro para que este livro mova uma nova geração de pregadores do evangelho, que avancem nos campos do mundo, brancos para a colheita. Mas, antes de examinar a vida e o ministério desse homem extraordinário, permita-me estabelecer primeiramente o ambiente histórico no qual ele viveu.

Para o mundo de língua inglesa, o século XVIII foi um período monumental de despertamento espiritual. Martyn Lloyd-Jones chamou este tempo de "a maior manifestação do poder do Espírito Santo desde os dias apostólicos".[2]  Essa era provou ser tempo sem precedentes de esforços evangelísticos e renovação espiritual Seus efeitos se estenderam por dois continentes e foram especialmente dramáticos, dada a letargia espiritual que permeava a igreja e a cultura da época. Este tempo provou ser nada menos que uma "segunda reforma".

Desde o século XVII a pregação do evangelho havia se esfriado em toda a Europa, mas especialmente na Inglaterra. A igreja estatal já estava em declínio espiritual. O presbiterianismo havia se enfraquecido, e os batistas gerais começavam uma escorregadia descida do arminianismo para o unitarianismo.

Diversos fatores causaram tais dias de sequidão. Muitas igrejas não exigiam mais uma membresia regenerada e eram descuidadas quanto a quem admitiam à Mesa do Senhor. O puritanismo sofreu um golpe devastador quando o  parlamento provou o Ato de Uniformidade em 1662, que dividiu permanentemente a Igreja da Inglaterra de todas as demais igrejas protestantes, dali em diante conhecidas como "Dissidentes".[3]  Debaixo de Carlos II, este decreto determinou uma forma mais católica de orações públicas, o sacerdócio, os sacramentos, e outros ritos na Igreja da Inglaterra.Pastores puritanos foram obrigados a abandonar as suas ordenações originais e serem reordenados sob essa nova forma da igreja do estado.

A crise que se fomentava chegou ao ápice em 24 de agosto de 1662, no dia de São Bartolomeu, quando dois mil ministros puritanos foram enxotados de suas igrejas. Em um dia só dia, a maior geração de pregadores do evangelho foi despedida do púlpito e proibida de pregar. Esses pastores puritanos sofreram restrições ainda maiores com a aprovação do Ato De Conventicle, em 1664. Foram banidos da pregação em campos ou condução de cultos particulares de adoração nos lares dos párocos. Restrições ainda maiores vieram com o Ato das Cinco Milhas, em1665, que proibia os pastores expulsos de chegar mais perto que cinco milhas das suas antigas igrejas, bem como de qualquer cidade ou vilarejo em que tivessem pastoreado anteriormente.

Essa perseguição foi retirada em 1689 pelo Ato de Tolerância, sob Guilherme e Maria [William e Mary], mas até chegar esse tempo,a maioria dos principais pastores puritanos já havia morrido. Proibidos de serem enterrados em cemitérios adjacentes às igrejas inglesas, muitos pastores puritanos foram sepultados em um cemitério separado, não conformista, em Bunhill Fields, fora De Londres. Incluídos nesse cemitério desprezado estavam pessoas de renome como John Bunyan, John Owen, Isaac Watts e Thomas Goodwin. Considerados párias indignos, estes homens de Deus eram sepultados fora dos limites da cidade. A influência puritana havia declinado fortemente.

Ao mesmo tempo, muitos púlpitos anglicanos altamente estimados ensinavam uma corrupção moralista e legalista da justificação pela fé. Tal declínio doutrinário deixava a igreja inglesa com pouco apetite pela pregação da Palavra. Havia desvanecido qualquer interesse pelos perdidos. Como os apóstolos no  jardim de Getsêmane, os pastores ingleses tinham deixado de vigiar e eram acalentados em profundo sono. As convicções bíblicas foram substituídas pelas filosofias seculares prevalecentes. Havia verdadeira fome na terra por ouvir a Palavra de Deus.

Foi nesse vazio espiritual que Deus levantou o evangelista inglês George Whitefield. Como um raio vindo de um céus em nuvens, Whitefield subiu ao palco mundial como o mais eloqüente arauto do evangelho desde os dias do Novo Testamento. Deus deu poder a Whitefield para se tomar como uma lâmpada de chamas fortes, colorada sobre uma montanha, no meio do negro império de Satanás.

Esta figura poderosa, de incomum fervor evangélico, encabeçou um ressurgimento cristão sem precedentes. Sua retumbante voz foi catalisadora de despertamento espiritual, à medida que sua pregação tomou conta das Ilhas Britânicas como tempestade, dando choques elétricos às colônias americanas. Através de seu zelo evangelístico, Whitefield atiçou as chamas do avivamento até que se espalhassem no coração de incontáveis homens e mulheres. Pode-se afirmar que mediante a sua pregação, as Ilhas Britânicas foram salvas do que seria equivalente à Revolução Francesa. E do outro lado do Atlântico, uma nação nasceria com o despertar de sua proclamação do evangelho.

Dados os muitos males que contaminam a igreja de hoje, a presente geração necessita uma forte dose de George Whitefield. Ao olharmos o cristianismo dos dias atuais, existe muito pelo qual ser grato, especialmente à luz do ressurgimento reformado dos anos recentes. Contudo, tem se tornado uma tendência para muitos deste movimento se afastar em uma clausura calvinista, tendo pouco impacto sobre o mundo a seu redor. Whitefield, mediante seu intenso envolvimento com o mundo e sua fervorosa proclamação do evangelho, tem muito a nos ensinar sobre aquilo que tem de ser desesperadamente recobrado.

Temos muitos apologetas pobres, dando palestras inócuas em nossos púlpitos hoje em dia. A necessidade da hora é de calorosos proclamadores de Deus e de sua graça salvadora – não apenas explanadores filosóficos. É muito fácil nos emaranharmos nas teias das pressões sociais e políticas que deslocam nosso dever principal de pregar a Cristo. Na presente hora, é necessário recuperar a profunda crença de Whitefield na soberana graça de Deus, junto com um desejo zeloso de chamar os perdidos ao arrependimento e fé em Cristo. Whitefield via como maior necessidade do ser humano o estar bem diante de Deus. Whitefield cumpria o chamado de Deus, de conclamar compaixão a um mundo perdido que perecia, para que cressem no evangelho. Nós também precisamos fazer o mesmo.

Que o Senhor use o exemplo de Whitefield, quer você seja leigo quer pregador, para dar-lhe coragem em seu compromisso com a causa de Cristo e o expandir de seu evangelho. Nestes dias, quando há gritante necessidade de coragem, tanto no púlpito quanto nos bancos da igreja, que possamos ver a restauração até a pureza cristalina da igreja de Cristo mediante uma nova reforma.

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O Zelo Evangelístico de George Whitefield. Steven Lawson. São José dos Campos: Editora Fiel, 2014, p.13-18.


[1] Iain H. Murray, Heroes (Edimburgo: Banner of Truth, 2009), 53.
[2] Martin Lloid-Jones, The Puritans: Their Origins and Successors (Edimburgo: Banner of Thuth, 1996), 107.
[3] Murray, Heroes, 49.