quarta-feira, 16 de maio de 2018

A VOCAÇÃO SEGUNDO LUTERO [Prefácio e textos]


WINGREN, Gustav, A Vocação Segundo Lutero. Canoas, RS: Ed. Ulbra e Editora Concórdia, 2006. 268p.

É a vocação um dos conceitos fundamentais no esquema teológico de Lutero, pois corresponde ao ensino da santificação, doutrina essa que ele sempre entende como a prática do amor numa relação com os outros e jamais em um aperfeiçoamento moralista, solitário, individual, fora do mundo e dos relacionamentos interpessoais.

Por isso, rejeita a santificação monástica entre quatro paredes e a imitação dos santos, obras feitas não para o próximo, e, sim, para Deus, e, em última análise, para o indivíduo que as pratica por acreditar que elas ajudam na própria salvação.

Também não aceita Lutero a santificação proposta pelos Schwärmer (fanáticos ou entusiastas), caracterizada por uma visão puramente negativa das coisas do mundo, constituindo-se, desse modo, numa recaída na ética monástica medieval.

Este texto está dividido em dois aspectos:

Primeiro, transcrevi o prefácio da obra de Gustaf Wingren, intitulada “A Vocação segundo Lutero”, publicada pela Editora Concórdia em 2006 e que foi escrito por um cara de nome bem sugestivo – Martinho Lutero Hoffmann, tradutor da obra.

Segundo, temos a um texto sobre “A Doutrina Bíblica e Reformada da Vocação”. Um texto muito rico escrito por Gene Edward Veith. Tradução de Camila Rebeca Teixeira. Revisão de André Aloísio Oliveira da Silva e publicado originalmente pelo ministério fiel[1]


PREFÁCIO
Martinho Lutero Hoffmann, tradutor da obra[2]

Pouco se conhece no Brasil sobre o pensamento original de Lutero, embora haja um milhão de luteranos no país, mais de mil pastores e, dentre esses, uma meia dúzia de luterólogos. É que a produção nessa área tem sido pequena e, ainda assim, pouco divulgada. Traduções também não são muitas. Nesse contexto, vale destacar a tradução das obras de Lutero feita pela Comissão Interluterana de Literatura (CIL) e publicada pelas editoras Concórdia e Sinodal, no início dos anos 90. Cumpre citar A Nossa Vocação, de Einar Billing, um autor sueco a exemplo de Wingren.

Por outro lado, se Lutero não foi bem compreendido pelos adversários, igualmente nem sempre o foi pelos próprios luteranos, pois a originalidade e abrangência das suas posições requerem paciência, tempo e muita acuidade. Além disso, o tamanho da sua obra alcança mais de cem volumes, cada qual tendo mais de mil páginas, fato que levou um de seus biógrafos a fazer o seguinte cálculo: para copiar à mão toda a sua produção literária, seria preciso um homem trabalhar oito horas por dia durante dez anos.

No que tange à temática vocação, o livro de Wingren toca em um ponto crucial do pensamento lutérico, pois é a versão dele para a doutrina da santificação, doutrina essa que Lutero entende sempre como a prática do amor numa relação interpessoal e nunca num "aperfeiçoamento moral", individual, fora do mundo, fora, pois, das relações interpessoais. Daí a sua recusa e condenação à santificação monástica entre quatro paredes, à imitação dos santos, pois o que eles faziam, na maioria das vezes, era uma obra sem correspondência com o próximo; e à santificação dos Schwarmer (palavra alemã que fica a meio caminho entre fanático e entusiasta) caracterizada puramente por uma visão negativa das coisas do mundo, uma recaída, portanto, na ética monástica medieval. Para Lutero, sem amor não há santificação, e amor se entende como o querer e fazer bem ao próximo. O amor a Deus, por sua vez, que é também exigido pela lei e criado no coração do ser humano pelo Espírito Santo mediante a palavra do evangelho, esse amor, como dizia, manifesta-se unicamente pela fé, ou seja, pela confiança na sua pessoa. Logo, não há o que dar para Deus, não há sacrifício a fazer para ele. Se, então, há alguma coisa que o homem deseja fazer movido pela graça que o traz à fé, essa coisa pode ser apenas as obras de amor em favor do próximo, obras feitas num espírito espontâneo, pois não visam a alcançar méritos face a Deus.

A tradução, como tal, não apresentou sérias dificuldades. Somente lembro que Wingren é sueco e escreveu na língua materna. Daí foi traduzido para o inglês por Carl C. Rasmussen e publicado em 1957. Tradução de tradução implica sempre em mais riscos. Sendo o português uma língua de pouca tradição luterana, a dificuldade aumenta em razão de, em certos momentos, não haver uma palavra específica para transmitir o sentido exato proposto pelo texto, fato que nos obriga a rodeios ou a tentativas de criar um vocábulo novo. Além do mais, como o português é pródigo em dentais (d e t) e o texto em inglês a toda hora nos apresentava palavras que, traduzidas no primeiro instante, reclamavam uma correspondente em ão (vocation - vocação; prayer - oração, etc.) isso nos obrigou a apelar para sinônimos pouco usados e ainda mais rodeios ou, então, mudanças para adjetivos, tendo como propósito evitar colisões e ecos e, ao mesmo tempo, tentar proporcionar uma prosa limpa, fluente, elegante (isso, pelo menos, foi tentado) - sem perder nem alterar o sentido original. Por isso, aparecem palavras como lutérico (próprio de Lutero para diferenciar de luterano), orante (a pessoa que ora), chamado (como sinônimo de vocação) e, de vez em quando, inversões no interior das frases.


A DOUTRINA BÍBLICA E REFORMADA DA VOCAÇÃO
Gene Edward Veith

Os cristãos atuais frequentemente falam sobre transformar a sociedade. Um exemplo radical de como um ensino teológico teve um impacto social revolucionário é a doutrina da Reforma sobre a vocação. Na Idade Média, a sociedade era altamente estruturada, hierárquica e estática. Isso mudaria, começando no ano de 1500, como uma consequência não intencionada da doutrina de Lutero sobre a vocação.

A DOUTRINA DA VOCAÇÃO
Para Lutero, vocação — a palavra latina para “chamado” — significa muito mais do que um emprego ou profissão. Vocação é a doutrina de Lutero sobre a vida cristã. Mais do que isso, a vocação é a maneira como Deus trabalha através dos seres humanos para governar a sua criação e conceder os seus dons.

Deus nos dá nosso pão diário por meio de fazendeiros, moleiros e padeiros. Ele cria e cuida de uma nova vida por meio de pais e mães. Ele nos protege por meio das autoridades legais. Ele proclama a sua Palavra e administra os seus sacramentos por meio de pastores. A vocação, disse Lutero, é uma “máscara de Deus”, uma maneira pela qual ele se esconde nas relações e tarefas comuns da vida humana.

Um texto-chave para a vocação é 1 Coríntios 7.17: “Ande cada um segundo o Senhor lhe tem distribuído, cada um conforme Deus o tem chamado”. O contexto imediato dessa passagem tem relação com o casamento. Nossas famílias, nossa cidadania em uma determinada comunidade ou sociedade, nossas congregações e, sim, nossos locais de trabalho são todos facetas da vida para as quais Deus nos designou e nos chamou.

O propósito de todos os nossos chamados é amar e servir os próximos que cada vocação introduz em nossas vidas (no casamento, nosso cônjuge; na paternidade, nossos filhos; no local de trabalho, nossos clientes; e assim por diante).

Somos salvos somente pela graça, pela fé na obra de Jesus Cristo. Mas, depois, somos enviados de volta aos nossos chamados para que vivamos essa fé. Deus não precisa das nossas boas obras, disse Lutero, pensando nos esforços exaustivos para merecer a salvação para além do dom gratuito de Cristo, mas o nosso próximo precisa das nossas boas obras. Nossa fé dá fruto em amor (Gálatas 5.6; 1 Timóteo 1.5), e isso acontece em nossas famílias, trabalho, comunidades e congregações. Nesses chamados, também carregamos nossas cruzes, pecamos e encontramos perdão, e crescemos em fé e santidade.


OS ESTAMENTOS

A sociedade medieval era dividida em três estamentos: o clero (“aqueles que oram”); a nobreza (“aqueles que lutam”, ou, na prática, “aqueles que governam”); e os plebeus (“aqueles que trabalham”).

Pensava-se que o clero tinha uma “vocação”, um chamado distinto de Deus para buscar “a vida espiritual” para além do mundo. Dedicar-se completamente à oração e aos exercícios espirituais era considerado de muito maior valor do que aquilo que poderia ser encontrado nos estamentos seculares. Entrar em uma ordem religiosa exigia votos de celibato, pobreza e obediência. Para Lutero, essa busca por mérito não somente era uma rejeição do evangelho, mas tais votos repudiavam os próprios reinos da vida — família, trabalho, governo — que Deus estabeleceu. Esses reinos, ele insistiu, também eram vocações cristãs.

Lutero redefiniu os estamentos como instituições designadas por Deus para a vida terrena. Essas instituições são a igreja, o Estado e o lar (a família e seu trabalho econômico). Essas eram paralelas aos estamentos medievais do clero, nobreza e plebeus. Mas enquanto na Idade Média essas eram três categorias sociais separadas, para Lutero, essas são esferas de vida nas quais todo cristão habita e nas quais todo cristão tem vocações.

As distinções sociais rígidas entre três estamentos — aqueles que oravam, aqueles que governavam e aqueles que trabalhavam — desmoronaram. A vida de oração não é apenas para uma classe sacerdotal, mas para todos os crentes. O Estado não é apenas a preocupação de uma elite governante, mas de todos os seus cidadãos. O lar não é apenas para os plebeus. Todos, incluindo o clero, podem ser chamados para o casamento e a paternidade. Todos, inclusive a nobreza, são chamados ao trabalho produtivo. Todos oram. Todos (eventualmente) governam. Todos trabalham.


O IMPACTO SOCIAL DA REFORMA

Outra nomenclatura para a doutrina da vocação é o sacerdócio de todos os crentes. Deus chama alguns cristãos para serem pastores, mas ele chama outros cristãos para exercerem o seu sacerdócio real ao ararem campos, forjarem aço e iniciarem negócios. Mas todos os sacerdotes — incluindo os camponeses e moças serviçais — precisam ter acesso à Palavra de Deus. Assim, durante a Reforma, as escolas abriram e a alfabetização floresceu.

Os plebeus instruídos subiram a escada social e poderiam governar, eventualmente. Os trabalhadores que amavam e serviam os seus clientes por meio dos seus trabalhos encontraram sucesso econômico. Enquanto Lutero se dirigia a uma sociedade estática pós-medieval, Calvino e posteriormente os puritanos adaptaram a vocação ao emergente mundo moderno. Eles deram ênfase aos chamados do local de trabalho e encorajaram os cristãos a aceitarem as novas oportunidades às quais Deus os estava chamando. Assim, a Reforma proporcionou uma mobilidade social sem precedentes.

Estranhamente, a doutrina da vocação tem sido esquecida hoje. O que uma redescoberta da vocação faria à sociedade atual?


[1] Link Original: http://ministeriofiel.com.br/artigos/detalhes/1197/A_doutrina_biblica_e_Reformada_da_vocacao
[2] Páginas 8-9.

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