WINGREN,
Gustav, A Vocação Segundo Lutero. Canoas, RS: Ed. Ulbra e Editora Concórdia,
2006. 268p.
É a
vocação um dos conceitos fundamentais no esquema teológico de Lutero, pois
corresponde ao ensino da santificação, doutrina essa que ele sempre entende como
a prática do amor numa relação com os outros e jamais em um aperfeiçoamento
moralista, solitário, individual, fora do mundo e dos relacionamentos
interpessoais.
Por isso, rejeita a santificação monástica entre quatro paredes e a imitação
dos santos, obras feitas não para o próximo, e, sim, para Deus, e, em última
análise, para o indivíduo que as pratica por acreditar que elas ajudam na
própria salvação.
Também não aceita Lutero a santificação proposta pelos Schwärmer (fanáticos ou
entusiastas), caracterizada por uma visão puramente negativa das coisas do
mundo, constituindo-se, desse modo, numa recaída na ética monástica medieval.
Este
texto está dividido em dois aspectos:
Primeiro,
transcrevi o prefácio da obra de Gustaf Wingren, intitulada “A Vocação segundo
Lutero”, publicada pela Editora Concórdia em 2006 e que foi escrito por um cara
de nome bem sugestivo – Martinho Lutero Hoffmann, tradutor da obra.
Segundo,
temos a um texto sobre “A Doutrina Bíblica e Reformada da Vocação”. Um texto
muito rico escrito por Gene Edward Veith. Tradução de Camila Rebeca Teixeira.
Revisão de André Aloísio Oliveira da Silva e publicado originalmente pelo
ministério fiel[1]
PREFÁCIO
Martinho
Lutero Hoffmann, tradutor da obra[2]
Pouco
se conhece no Brasil sobre o pensamento original de Lutero, embora haja um
milhão de luteranos no país, mais de mil pastores e, dentre esses, uma meia
dúzia de luterólogos. É que a produção nessa área tem sido pequena e, ainda
assim, pouco divulgada. Traduções também não são muitas. Nesse contexto, vale
destacar a tradução das obras de Lutero feita pela Comissão Interluterana de
Literatura (CIL) e publicada pelas editoras Concórdia e Sinodal, no início dos
anos 90. Cumpre citar A Nossa Vocação, de Einar Billing, um autor sueco a
exemplo de Wingren.
Por
outro lado, se Lutero não foi bem compreendido pelos adversários, igualmente
nem sempre o foi pelos próprios luteranos, pois a originalidade e abrangência
das suas posições requerem paciência, tempo e muita acuidade. Além disso, o
tamanho da sua obra alcança mais de cem volumes, cada qual tendo mais de mil
páginas, fato que levou um de seus biógrafos a fazer o seguinte cálculo: para
copiar à mão toda a sua produção literária, seria preciso um homem trabalhar
oito horas por dia durante dez anos.
No que
tange à temática vocação, o livro de Wingren toca em um ponto crucial do
pensamento lutérico, pois é a versão dele para a doutrina da santificação,
doutrina essa que Lutero entende sempre como a prática do amor numa relação
interpessoal e nunca num "aperfeiçoamento moral", individual, fora do
mundo, fora, pois, das relações interpessoais. Daí a sua recusa e condenação à
santificação monástica entre quatro paredes, à imitação dos santos, pois o que
eles faziam, na maioria das vezes, era uma obra sem correspondência com o
próximo; e à santificação dos Schwarmer (palavra alemã que fica a meio caminho
entre fanático e entusiasta) caracterizada puramente por uma visão negativa das
coisas do mundo, uma recaída, portanto, na ética monástica medieval. Para
Lutero, sem amor não há santificação, e amor se entende como o querer e fazer
bem ao próximo. O amor a Deus, por sua vez, que é também exigido pela lei e
criado no coração do ser humano pelo Espírito Santo mediante a palavra do
evangelho, esse amor, como dizia, manifesta-se unicamente pela fé, ou seja,
pela confiança na sua pessoa. Logo, não há o que dar para Deus, não há
sacrifício a fazer para ele. Se, então, há alguma coisa que o homem deseja
fazer movido pela graça que o traz à fé, essa coisa pode ser apenas as obras de
amor em favor do próximo, obras feitas num espírito espontâneo, pois não visam
a alcançar méritos face a Deus.
A
tradução, como tal, não apresentou sérias dificuldades. Somente lembro que Wingren
é sueco e escreveu na língua materna. Daí foi traduzido para o inglês por Carl
C. Rasmussen e publicado em 1957. Tradução de tradução implica sempre em mais
riscos. Sendo o português uma língua de pouca tradição luterana, a dificuldade
aumenta em razão de, em certos momentos, não haver uma palavra específica para
transmitir o sentido exato proposto pelo texto, fato que nos obriga a rodeios
ou a tentativas de criar um vocábulo novo. Além do mais, como o português é
pródigo em dentais (d e t) e o texto em inglês a toda hora nos apresentava
palavras que, traduzidas no primeiro instante, reclamavam uma correspondente em
ão (vocation - vocação; prayer - oração, etc.) isso nos obrigou a apelar para
sinônimos pouco usados e ainda mais rodeios ou, então, mudanças para adjetivos,
tendo como propósito evitar colisões e ecos e, ao mesmo tempo, tentar
proporcionar uma prosa limpa, fluente, elegante (isso, pelo menos, foi tentado)
- sem perder nem alterar o sentido original. Por isso, aparecem palavras como
lutérico (próprio de Lutero para diferenciar de luterano), orante (a pessoa que
ora), chamado (como sinônimo de vocação) e, de vez em quando, inversões no
interior das frases.
A
DOUTRINA BÍBLICA E REFORMADA DA VOCAÇÃO
Gene
Edward Veith
Os
cristãos atuais frequentemente falam sobre transformar a sociedade. Um exemplo
radical de como um ensino teológico teve um impacto social revolucionário é a
doutrina da Reforma sobre a vocação. Na Idade Média, a sociedade era altamente
estruturada, hierárquica e estática. Isso mudaria, começando no ano de 1500,
como uma consequência não intencionada da doutrina de Lutero sobre a vocação.
A
DOUTRINA DA VOCAÇÃO
Para
Lutero, vocação — a palavra latina para “chamado” — significa muito mais do que
um emprego ou profissão. Vocação é a doutrina de Lutero sobre a vida cristã.
Mais do que isso, a vocação é a maneira como Deus trabalha através dos seres
humanos para governar a sua criação e conceder os seus dons.
Deus
nos dá nosso pão diário por meio de fazendeiros, moleiros e padeiros. Ele cria
e cuida de uma nova vida por meio de pais e mães. Ele nos protege por meio das
autoridades legais. Ele proclama a sua Palavra e administra os seus sacramentos
por meio de pastores. A vocação, disse Lutero, é uma “máscara de Deus”, uma
maneira pela qual ele se esconde nas relações e tarefas comuns da vida humana.
Um
texto-chave para a vocação é 1 Coríntios 7.17: “Ande cada um segundo o Senhor
lhe tem distribuído, cada um conforme Deus o tem chamado”. O contexto imediato
dessa passagem tem relação com o casamento. Nossas famílias, nossa cidadania em
uma determinada comunidade ou sociedade, nossas congregações e, sim, nossos
locais de trabalho são todos facetas da vida para as quais Deus nos designou e
nos chamou.
O
propósito de todos os nossos chamados é amar e servir os próximos que cada
vocação introduz em nossas vidas (no casamento, nosso cônjuge; na paternidade,
nossos filhos; no local de trabalho, nossos clientes; e assim por diante).
Somos
salvos somente pela graça, pela fé na obra de Jesus Cristo. Mas, depois, somos
enviados de volta aos nossos chamados para que vivamos essa fé. Deus não
precisa das nossas boas obras, disse Lutero, pensando nos esforços exaustivos
para merecer a salvação para além do dom gratuito de Cristo, mas o nosso
próximo precisa das nossas boas obras. Nossa fé dá fruto em amor (Gálatas 5.6;
1 Timóteo 1.5), e isso acontece em nossas famílias, trabalho, comunidades e
congregações. Nesses chamados, também carregamos nossas cruzes, pecamos e
encontramos perdão, e crescemos em fé e santidade.
OS
ESTAMENTOS
A
sociedade medieval era dividida em três estamentos: o clero (“aqueles que
oram”); a nobreza (“aqueles que lutam”, ou, na prática, “aqueles que
governam”); e os plebeus (“aqueles que trabalham”).
Pensava-se
que o clero tinha uma “vocação”, um chamado distinto de Deus para buscar “a
vida espiritual” para além do mundo. Dedicar-se completamente à oração e aos
exercícios espirituais era considerado de muito maior valor do que aquilo que
poderia ser encontrado nos estamentos seculares. Entrar em uma ordem religiosa
exigia votos de celibato, pobreza e obediência. Para Lutero, essa busca por
mérito não somente era uma rejeição do evangelho, mas tais votos repudiavam os
próprios reinos da vida — família, trabalho, governo — que Deus estabeleceu.
Esses reinos, ele insistiu, também eram vocações cristãs.
Lutero
redefiniu os estamentos como instituições designadas por Deus para a vida
terrena. Essas instituições são a igreja, o Estado e o lar (a família e seu
trabalho econômico). Essas eram paralelas aos estamentos medievais do clero,
nobreza e plebeus. Mas enquanto na Idade Média essas eram três categorias
sociais separadas, para Lutero, essas são esferas de vida nas quais todo
cristão habita e nas quais todo cristão tem vocações.
As
distinções sociais rígidas entre três estamentos — aqueles que oravam, aqueles
que governavam e aqueles que trabalhavam — desmoronaram. A vida de oração não é
apenas para uma classe sacerdotal, mas para todos os crentes. O Estado não é
apenas a preocupação de uma elite governante, mas de todos os seus cidadãos. O
lar não é apenas para os plebeus. Todos, incluindo o clero, podem ser chamados
para o casamento e a paternidade. Todos, inclusive a nobreza, são chamados ao
trabalho produtivo. Todos oram. Todos (eventualmente) governam. Todos
trabalham.
O
IMPACTO SOCIAL DA REFORMA
Outra
nomenclatura para a doutrina da vocação é o sacerdócio de todos os crentes.
Deus chama alguns cristãos para serem pastores, mas ele chama outros cristãos
para exercerem o seu sacerdócio real ao ararem campos, forjarem aço e iniciarem
negócios. Mas todos os sacerdotes — incluindo os camponeses e moças serviçais —
precisam ter acesso à Palavra de Deus. Assim, durante a Reforma, as escolas
abriram e a alfabetização floresceu.
Os
plebeus instruídos subiram a escada social e poderiam governar, eventualmente.
Os trabalhadores que amavam e serviam os seus clientes por meio dos seus
trabalhos encontraram sucesso econômico. Enquanto Lutero se dirigia a uma
sociedade estática pós-medieval, Calvino e posteriormente os puritanos
adaptaram a vocação ao emergente mundo moderno. Eles deram ênfase aos chamados
do local de trabalho e encorajaram os cristãos a aceitarem as novas
oportunidades às quais Deus os estava chamando. Assim, a Reforma proporcionou
uma mobilidade social sem precedentes.
Estranhamente,
a doutrina da vocação tem sido esquecida hoje. O que uma redescoberta da
vocação faria à sociedade atual?
[1]
Link Original: http://ministeriofiel.com.br/artigos/detalhes/1197/A_doutrina_biblica_e_Reformada_da_vocacao
[2] Páginas
8-9.
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