quinta-feira, 22 de junho de 2017

CRIME E CASTIGO [Comentários]



Há muitos motivos para ler o clássico de Dostoiévski, Crime e castigo. O primeiro é que se trata de uma maravilhosa obra de arte. “Numa magnífica noite de Julho, excessivamente quente”, o romance abre, “um rapaz saiu do quarto que ocupava nas águas-furtadas de um grande prédio de cinco andares, situado no bairro S…, e, com passos lentos e um ar irresoluto, tomou o caminho da ponte K”[1]. Esse “ar irresoluto” paira sedutoramente. Ele prenuncia um dos temais centrais do livro – o da autoilusão – e constitui-se numa taquigrafia útil para o estilo aparentemente confuso de Dostoiévski. O livro é um turbilhão de decisões e indecisões, irrupções, retrospectivas, sonhos e divagações que nos mergulham na mente de Raskolnikov – o rapaz que saiu para a rua com “ar irresoluto” e que, mais à frente, matou duas mulheres em sua “loucura”.

Mas também é um romance de grande risco, sutileza e verdade. Como Dostoiévski mostra, Raskolnikov não é louco no sentido clínico, mas no sentido espiritual. A loucura é o orgulho e ilusão de que ele é um ser autônomo, capaz de conduzir sua vida para os fins que ele escolhe. Para ele, não existe Deus nem coisas tais como o bem ou o mal, apenas sofrimento “liberdade e poder, sobretudo poder!” “Chega de miragens”, ele diz para si mesmo, “chega de falsos temores, chega de fantasmas! Que agora comece o reino da razão e da luz, da liberdade e da força”. É essa confiança resoluta em si mesmo e sua capacidade de determinar o que é certo para si mesmo (e os outros) que o leva a espancar duas idosas por um punhado de moedas e berloques para ajudar o pobre, diz consigo a certa altura. Resumindo, Raskolnikov torna-se um anticristo, bem aos moldes do Satanás de John Milton, que, em vez de estabelecer um reino de ressurreição e paz, contribui para um de homicídio e caos – tudo em nome de um suposto bem comum.

Além de ser um romance sobre ilusão, Crime e castigo também é, não obstante, um livro sobre o caráter absurdo e ofensivo do evangelho. Ele contém um dos mais comoventes retratos que caracterizam o evangelho na literatura na figura do bêbado Marmeladov, que não apenas fracassa em prover a subsistência de sua destituída família porque “está sempre bêbado”, mas rouba dinheiro de sua filha prostituída de 15 anos de idade para gastar com bebida. Em uma cena tocante, no início do livro, Marmeladov conta sua triste história a Raskolnikov num bar:

Pois bem, eu, como vê, gastei esses trinta copeques na bebida. E continuo bebendo! E já estou bêbado! Mas bem, quem é que se preocupa com um tipo como eu? Diga! O senhor tem pena de mim ou não? Diga lá, senhor, tem pena de mim ou não?.

Ninguém exceto Cristo. Vislumbrado o Dia do Juízo Final, Marmeladov diz a Raskolnikov:

Nesse dia, Ele há de aparecer e perguntar: “Onde está essa pobre moça que se vendeu por uma madrasta má e tísica e por umas crianças, que lhe não são nada? Onde está essa pobre moça que teve compaixão do pai, bêbado inveterado, sem se assustar como seu embrutecimento?” E depois dirá: “Anda, vem cá! Eu já te perdoei uma vez. Já te perdoei uma vez. Perdoados te sejam também agora os teus muitos pecados, porque amaste muito.” […] E, depois de julgar todos, inclinar-se-á também para nós: “Vinde cá”, dirá”, vós outros, também, vós, os bêbados, vinde cá, impudicos, vinde cá, porcalhões!” […] E ele dirá: “Meus filhos! Imagem bestial é a vossa e tendes a sua marca. Mas aproximai-vos também”.

A reação dos que estavam no bar é de escárnio: “Já disse a sua sentença! Mas que série de disparates! Funcionariozinho!”. E Raskolnikov, que não sabe o que fazer com Marmeladov, mais tarde expressará esse mesmo tipo de repulsa. Essa breve passagem não faz justiça à cena. Se você ler a coisa toda, haverá de chorar (ou ficar extremamente indignado se achar que Deus salva o bom).

O romance também oferece um desafio aos cristãos para refletir o amor autossacrificial de Cristo pelo pobre, sim, mas também por ateus militantes como Raskolnikov. Sem fazer concessões exageradas, a filha de Marmeladov, Sônia, não oferece qualquer prova racional de Deus para Raskolnikov. Ela entra em colapso quando ele põe em dúvida a existência de Deus. O que ela faz, com grande humildade e fé, é amar Raskolnikov, e é este amor que o desafia e silencia. É um amor que ele não consegue explicar nem tirar de sua mente perturbada.



Originalmente publicado em:




[1] Fiódor Dostoiévski. Crime e Castigo. Book House, 2016. Tradução de A. Augusto dos Santos. Edição Kindle. [Nota do tradutor].

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