quinta-feira, 15 de junho de 2017

A MENSAGEM DO SERMÃO DO MONTE [Introdução]


O Sermão do Monte é provavelmente a parte mais conhecida dos ensinamentos de Jesus, embora se possa argumentar que seja a menos compreendida e, certamente, a menos obedecida. De tudo o que ele disse, essas suas palavras são as que mais se aproximam de um manifesto, pois descrevem o que ele desejava que os seus seguidores fossem e fizessem. Penso que nenhuma outra expressão resume melhor a intenção de Jesus, ou indica mais claramente o seu desafio para o mundo moderno, do que a expressão "contracultura cristã". Vou lhes dizer por quê.

Os anos que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial, em 1945, foram marcados por um idealismo inocente. O horrível pesadelo terminara. "Reconstrução" era o alvo universal. Seis anos de destruição e devastação eram coisas do passado; a tarefa agora era construir um novo mundo de cooperação e paz. Mas a irmã gêmea do idealismo é a desilusão, desilusão com aqueles que não participam do ideal, ou (pior) com os que se lhe opõem, ou (pior ainda) com os que o traem. E a desilusão com o que é continua alimentando o idealismo do que poderia ser.

Parece que atravessamos décadas de desilusão. Cada geração que se levanta odeia o mundo que herdou. Às vezes, a reação tem sido ingênua, embora não possamos dizer que tenha sido hipócrita. Os horrores do Vietnã não terminaram com aqueles que distribuíam flores e rabiscavam o seu lema "Faça amor, não faça guerra", embora o seu protesto não tenha passado despercebido. Hoje em dia, há pessoas que repudiam a opulência ávida do ocidente, que parece ficar cada vez mais gordo, através do esbulho do meio-ambiente natural, ou através da exploração de nações em desenvolvimento, ou através de ambas as coisas ao mesmo tempo; essas pessoas exprimem a totalidade da sua rejeição vivendo com simplicidade, vestindo-se negligentemente, andando descalças e evitando o desperdício. Em lugar do simulacro da socialização burguesa, estão famintas de relacionamentos de amor autênticos. Desprezam a superficialidade, tanto do materialismo descrente como do conformismo religioso, pois sentem que há uma "realidade" impressionante muito maior do que essas trivialidades, e buscam essa dimensão "transcendental" ilusória através da meditação, de drogas ou do sexo. Abominam até o próprio conceito do corre-corre da sociedade de consumo e acham que é mais honesto "cair fora" do que participar. Tudo isso é sintoma da incapacidade da geração mais jovem de adaptar-se ao status quo ou de aclimatar-se à cultura prevalecente. Não se sentem à vontade. Estão alienados.

E em sua busca de uma alternativa, "contracultura" é a palavra que usam. Ela expressa um amplo raio de ação de idéias ou ideais, experiências e alvos. Encontramos uma boa documentação a esse respeito em The Making of a Counter-culture (A Criação de uma Contracultura, 1969) de Theodore Roszak; em The Dust of Death (A Poeira da Morte, 1973) de Os Guinness, e em Youthquake (Terremoto Jovem, 1973) de Kenneth Leech.

De um certo modo, os cristãos consideram esta busca de uma cultura alternativa um dos mais promissores, e até mesmo excitantes, sinais dos tempos. Pois reconhecemos nisso a atividade do Espírito, o qual, antes de confortar, perturba; e sabemos a quem a busca deles conduzirá, se quiserem encontrar a resposta. Na verdade, é significativo que Theodore Roszak, encontrando dificuldade para expressar a realidade que a juventude contemporânea procura, alienada como está pela insistência dos cientistas quanto à "objetividade", sente-se obrigado a recorrer às palavras de Jesus: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” [1]

Mas, ao lado da esperança que esta disposição de protesto e busca inspira aos cristãos, há também (ou deveria haver) um sentimento de vergonha. Pois, se a juventude de hoje está à procura das coisas certas (significado, paz, amor, realidade), ela as tem procurado nos lugares errados. O primeiro lugar onde deveriam procurar é um lugar que normalmente ignoram, isto é, a Igreja. Pois, com demasiada freqüência, o que vêem nas igrejas não é a contracultura, mas o conformismo; não uma nova sociedade que concretiza seus ideais, mas uma versão da velha sociedade a que renunciaram; não a vida, mas a morte. Prontamente endossariam o que Jesus disse de uma igreja do primeiro século: "Tens nome de que vives, e estás morto".[2]

Urge que não somente vejamos, mas também sintamos, a grandeza dessa tragédia, pois, na medida em que uma igreja se conforme com o mundo, e as duas comunidades pareçam ser meramente duas versões da mesma coisa, essa igreja está contradizendo a sua verdadeira identidade. Nenhum comentário poderia ser mais prejudicial para o cristão do que as palavras: "Mas você não é diferente das outras pessoas!"

O tema essencial de toda a Bíblia, desde o começo até o fim, é que o propósito histórico de Deus é chamar um povo para si mesmo; que este povo é um povo "santo", separado do mundo para lhe pertencer e obedecer; e que a sua vocação é permanecer fiel à sua identidade, isto ê, ser "santo" ou "diferente" em todo o seu pensamento e em todo o seu comportamento.

Foi assim que Deus falou ao povo de Israel logo depois que o tirou da escravidão egípcia e fez dele o seu povo especial através da aliança: "Eu sou o Senhor vosso Deus. Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos levo, nem andareis nos seus estatutos. Fareis segundo os meus juízos, e os meus estatutos guardareis, para andardes neles: Eu sou o Senhor vosso Deus."[3]  Este apelo que Deus fez a seu povo, é preciso notar, tanto começou como terminou com a declaração de que ele era o Senhor seu Deus. Pelo fato de ser o seu Deus, com quem eles firmaram um pacto, e porque eles constituíam o seu povo especial, tinham de ser diferentes de quaisquer outras pessoas. Tinham de seguir os mandamentos de Deus e não os padrões daqueles que os cercavam.

Através dos séculos seguintes, o povo de Israel continuou se esquecendo da sua singularidade como povo de Deus. Embora nas palavras de Balaão fosse "povo que habita só, e (que) não será reputado entre as nações", na prática, entretanto, eles continuaram assimilando-se aos povos que os rodeavam: "Antes se mesclaram com as nações, e lhes aprenderam as obras".[4] Por isso exigiram que um rei os governasse "como todas as nações", e quando Samuel os advertiu com base no fato de ser Deus o rei deles, foram obstinados em sua insistência: "Não, mas teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as nações."[5] Pior ainda do que o estabelecimento da monarquia foi a sua idolatria. "Seremos como as nações", diziam para si mesmos. . . Servindo ao pau e à pedra. "[6] Por isso Deus continuou lhes enviando os seus profetas para que lembrassem quem eram e para insistir com eles a seguirem o caminho de Deus. "Não aprendais o caminho dos gentios", falou-lhes através de Jeremias e Ezequiel, "não vos contamineis com os ídolos do Egito; eu sou o Senhor vosso Deus. "[7] Mas o povo de Deus não queria ouvir-lhe a voz, e o motivo específico apresentado, pelo qual o juízo de Deus caiu primeiro sobre Israel e, depois, cerca de 150 anos mais tarde, sobre Judá, foi o mesmo: "Os filhos de Israel pecaram contra o Senhor seu Deus...  andaram nos estatutos das nações . . . Também Judá não guardou os mandamentos do Senhor seu Deus; antes, andaram nos costumes que Israel introduziu. ”[8]

Tudo isso constitui um cenário essencial para se compreender o Sermão do Monte. O Sermão encontra-se no Evangelho de Mateus, logo no começo do ministério público de Jesus. Imediatamente após o seu batismo e tentação, Cristo começou a anunciar as boas novas de que o reino de Deus, há muito prometido no período do Velho Testamento, estava agora às portas. Ele mesmo viera para inaugurá-lo. Com ele nascia a nova era e o reinado de Deus irrompia na História. "Arrependei-vos", clamava, "porque está próximo o reino dos céus."[9] Na verdade, "percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino" (v. 23). O Sermão do Monte, então, deve ser visto neste contexto. Descreve o arrependimento (metanóia, a total transformação da mente) e a retidão, que fazem parte do reino; isto é, descreve como ficam a vida e a comunidade humana quando se colocam sob o governo da graça de Deus.

E como é que ficam? Tornam-se diferentes! Jesus enfatizou que os seus verdadeiros discípulos, os cidadãos do reino de Deus, tinham de ser inteiramente diferentes. Não deveriam tomar como padrão de conduta as pessoas que os cercavam, mas sim Deus, e assim provar serem filhos genuínos do seu Pai celestial. Para mim, o texto-chave do Sermão do Monte é 6:8: "Não vos assemelheis, pois, a eles." Imediatamente nos faz lembrar a palavra de Deus a Israel, na antigüidade: "Não fareis como eles.” [10] É o mesmo convite para serem diferentes. E este tema foi desenvolvido através de todo o Sermão do Monte. O caráter deles teria de ser completamente diferente daquele que era admirado pelo mundo (as bem-aventuranças). Deveriam brilhar como luzes nas trevas reinantes. A justiça deles teria de exceder à dos escribas e fariseus, tanto no comportamento ético quanto na devoção religiosa, enquanto que o seu amor deveria ser maior, e a sua ambição mais nobre do que a dos pagãos vizinhos.

Não há um parágrafo no Sermão do Monte em que não se trace este contraste entre o padrão cristão e o não-cristão. É o tema subjacente e unificador do Sermão; tudo o mais é uma variação dele. Às vezes, Jesus contrasta os seus discípulos com os gentios ou com as nações pagãs. Assim, os pagãos amam-se e saúdam-se uns aos outros, mas os cristãos têm de amar os seus inimigos (5:44-47); os pagãos oram segundo um modelo, com "vãs repetições", mas os cristãos devem orar com a humilde reflexão de filhos do seu Pai no céu (6:7-13); os pagãos estão preocupados com as suas próprias necessidades materiais, mas os cristãos devem buscar primeiro o reino e a justiça de Deus (6:23, 33).

Em outros pontos, Jesus contrasta os seus discípulos, não com os gentios, mas com os judeus, ou seja, não com pessoas pagãs mas com pessoas religiosas; especificamente, com os "escribas e fariseus". O Professor Jeremias, sem dúvida, está certo ao dizer que são "dois grupos de pessoas totalmente diferentes", pois "os escribas são os mestres de teologia que tiveram alguns anos de estudo; os fariseus, por outro lado, não são teólogos, mas sim grupos de leigos piedosos de todas as camadas da sociedade".[11] Certamente Jesus opõe a moral cristã à casuística ética dos escribas (5:21-48) e a devoção cristã à piedade hipócrita dos fariseus (6:1-18).

Assim, os discípulos de Jesus têm de ser diferentes: tanto da igreja nominal, como do mundo secular; tanto dos religiosos, como dos irreligiosos. O Sermão do Monte é o esboço mais completo, em todo o Novo Testamento, da contracultura cristã. Eis aí um sistema de valores cristãos, um padrão ético, uma devoção religiosa, uma atitude para com o dinheiro, uma ambição, um estilo de vida e uma teia de relacionamentos: tudo completamente diferente do mundo que não é cristão. E esta contracultura cristã é a vida do reino de Deus, uma vida humana realmente plena, mas vivida sob o governo divino.

Chegamos à introdução editorial dada por Mateus ao Sermão, a qual é breve mas impressionante: indica a importância que ele lhe atribuía.

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A Mensagem do Sermão do Monte: Contracultura Cristã. John Stott. São Paulo: Abu Editora, 2011. 235p.


[1] The Making of a Counter-Culture, Anchor Books, Doubleday, 1969, p. 233.
[2] Ap 3:l.
[3] Lv 18:1-4.
[4] Nm 23:9; SI 106:35.
[5] 1 Sm 8:5,19,20.
[6] Ez 20:32.
[7] Jr 10:1, 2; Ez 20:7.
[8] 2 Rs 17:7, 8,19; cf. Ez 5:7; 11:12.
[9] Mt 4:17.
[10] Lv 18:3.
[11] The Sermon on the Mount  de Joachim Jeremias. Universiry of London, Athlone Press, 1961). p.23.

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