O Sermão do Monte é provavelmente a parte mais conhecida dos
ensinamentos de Jesus, embora se possa argumentar que seja a menos compreendida
e, certamente, a menos obedecida. De tudo o que ele disse, essas suas palavras
são as que mais se aproximam de um manifesto, pois descrevem o que ele desejava
que os seus seguidores fossem e fizessem. Penso que nenhuma outra expressão
resume melhor a intenção de Jesus, ou indica mais claramente o seu desafio para
o mundo moderno, do que a expressão "contracultura cristã". Vou lhes
dizer por quê.
Os anos que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial, em 1945,
foram marcados por um idealismo inocente. O horrível pesadelo terminara.
"Reconstrução" era o alvo universal. Seis anos de destruição e
devastação eram coisas do passado; a tarefa agora era construir um novo mundo
de cooperação e paz. Mas a irmã gêmea do idealismo é a desilusão, desilusão com
aqueles que não participam do ideal, ou (pior) com os que se lhe opõem, ou
(pior ainda) com os que o traem. E a desilusão com o que é continua alimentando
o idealismo do que poderia ser.
Parece que atravessamos décadas de desilusão. Cada geração que se
levanta odeia o mundo que herdou. Às vezes, a reação tem sido ingênua,
embora não possamos dizer que tenha sido hipócrita. Os horrores do Vietnã
não terminaram com aqueles que distribuíam flores e rabiscavam o seu lema
"Faça amor, não faça guerra", embora o seu protesto não tenha
passado despercebido. Hoje em dia, há pessoas que repudiam a opulência
ávida do ocidente, que parece ficar cada vez mais gordo, através do esbulho do
meio-ambiente natural, ou através da exploração de nações em
desenvolvimento, ou através de ambas as coisas ao mesmo tempo; essas
pessoas exprimem a totalidade da sua rejeição vivendo com simplicidade,
vestindo-se negligentemente, andando descalças e evitando o desperdício.
Em lugar do simulacro da socialização burguesa, estão famintas de
relacionamentos de amor autênticos. Desprezam a superficialidade, tanto do
materialismo descrente como do conformismo religioso, pois sentem que há uma
"realidade" impressionante muito maior do que essas trivialidades, e
buscam essa dimensão "transcendental" ilusória através da meditação,
de drogas ou do sexo. Abominam até o próprio conceito do corre-corre da
sociedade de consumo e acham que é mais honesto "cair fora" do que
participar. Tudo isso é sintoma da incapacidade da geração mais jovem de adaptar-se
ao status quo ou de aclimatar-se à cultura prevalecente. Não se sentem à
vontade. Estão alienados.
E em sua busca de uma alternativa, "contracultura" é a
palavra que usam. Ela expressa um amplo raio de ação de idéias ou ideais,
experiências e alvos. Encontramos uma boa documentação a esse respeito em The
Making of a Counter-culture (A Criação de uma Contracultura, 1969) de
Theodore Roszak; em The Dust of Death (A Poeira da Morte, 1973) de Os Guinness, e em Youthquake (Terremoto
Jovem, 1973) de Kenneth Leech.
De um certo modo, os cristãos consideram esta busca de uma cultura
alternativa um dos mais promissores, e até mesmo excitantes, sinais dos tempos.
Pois reconhecemos nisso a atividade do Espírito, o qual, antes de confortar,
perturba; e sabemos a quem a busca deles conduzirá, se quiserem encontrar a resposta.
Na verdade, é significativo que Theodore Roszak, encontrando dificuldade para
expressar a realidade que a juventude contemporânea procura, alienada como está
pela insistência dos cientistas quanto à "objetividade", sente-se
obrigado a recorrer às palavras de Jesus: "Que aproveita ao homem ganhar o
mundo inteiro e perder a sua alma?” [1]
Mas, ao lado da esperança que esta disposição de protesto e busca inspira
aos cristãos, há também (ou deveria haver) um sentimento de vergonha. Pois, se
a juventude de hoje está à procura das coisas certas (significado, paz, amor,
realidade), ela as tem procurado nos lugares errados. O primeiro lugar onde deveriam
procurar é um lugar que normalmente ignoram, isto é, a Igreja. Pois, com
demasiada freqüência, o que vêem nas igrejas não é a contracultura, mas o
conformismo; não uma nova sociedade que concretiza seus ideais, mas uma versão
da velha sociedade a que renunciaram; não a vida, mas a morte. Prontamente endossariam
o que Jesus disse de uma igreja do primeiro século: "Tens nome de que
vives, e estás morto".[2]
Urge que não somente vejamos, mas também sintamos, a grandeza dessa
tragédia, pois, na medida em que uma igreja se conforme com o mundo, e as duas
comunidades pareçam ser meramente duas versões da mesma coisa, essa igreja está
contradizendo a sua verdadeira identidade. Nenhum comentário poderia ser mais
prejudicial para o cristão do que as palavras: "Mas você não é diferente
das outras pessoas!"
O tema essencial de toda a Bíblia, desde o começo até o fim, é que o
propósito histórico de Deus é chamar um povo para si mesmo; que este povo é um
povo "santo", separado do mundo para lhe pertencer e obedecer; e que
a sua vocação é permanecer fiel à sua identidade, isto ê, ser "santo"
ou "diferente" em todo o seu pensamento e em todo o seu
comportamento.
Foi assim que Deus falou ao povo de Israel logo depois que o tirou da escravidão
egípcia e fez dele o seu povo especial através da aliança: "Eu sou o
Senhor vosso Deus. Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que
habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos
levo, nem andareis nos seus estatutos. Fareis segundo os meus juízos, e os meus
estatutos guardareis, para andardes neles: Eu sou o Senhor vosso Deus."[3] Este apelo que Deus fez a seu povo, é preciso
notar, tanto começou como terminou com a declaração de que ele era o Senhor seu
Deus. Pelo fato de ser o seu Deus, com quem eles firmaram um pacto, e porque
eles constituíam o seu povo especial, tinham de ser diferentes de quaisquer outras
pessoas. Tinham de seguir os mandamentos de Deus e não os padrões daqueles que
os cercavam.
Através dos séculos seguintes, o povo de Israel continuou se esquecendo
da sua singularidade como povo de Deus. Embora nas palavras de Balaão fosse
"povo que habita só, e (que) não será reputado entre as nações", na
prática, entretanto, eles continuaram assimilando-se aos povos que os rodeavam:
"Antes se mesclaram com as nações, e lhes aprenderam as obras".[4] Por isso exigiram que um
rei os governasse "como todas as nações", e quando Samuel os advertiu
com base no fato de ser Deus o rei deles, foram obstinados em sua insistência:
"Não, mas teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as
nações."[5]
Pior ainda do que o estabelecimento da monarquia foi a sua idolatria.
"Seremos como as nações", diziam para si mesmos. . . Servindo ao pau
e à pedra. "[6]
Por isso Deus continuou lhes enviando os seus profetas para que lembrassem quem
eram e para insistir com eles a seguirem o caminho de Deus. "Não aprendais
o caminho dos gentios", falou-lhes através de Jeremias e Ezequiel,
"não vos contamineis com os ídolos do Egito; eu sou o Senhor vosso Deus. "[7] Mas o povo de Deus não
queria ouvir-lhe a voz, e o motivo específico apresentado, pelo qual o juízo de
Deus caiu primeiro sobre Israel e, depois, cerca de 150 anos mais tarde, sobre
Judá, foi o mesmo: "Os filhos de Israel pecaram contra o Senhor seu Deus...
andaram nos estatutos das nações . . .
Também Judá não guardou os mandamentos do Senhor seu Deus; antes, andaram nos costumes
que Israel introduziu. ”[8]
Tudo isso constitui um cenário essencial para se compreender o Sermão
do Monte. O Sermão encontra-se no Evangelho de Mateus, logo no começo do
ministério público de Jesus. Imediatamente após o seu batismo e tentação,
Cristo começou a anunciar as boas novas de que o reino de Deus, há muito
prometido no período do Velho Testamento, estava agora às portas. Ele mesmo
viera para inaugurá-lo. Com ele nascia a nova era e o reinado de Deus irrompia
na História. "Arrependei-vos", clamava, "porque está próximo o
reino dos céus."[9] Na verdade,
"percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o
evangelho do reino" (v. 23). O Sermão do Monte, então, deve ser visto
neste contexto. Descreve o arrependimento (metanóia, a total
transformação da mente) e a retidão, que fazem parte do reino; isto é, descreve
como ficam a vida e a comunidade humana quando se colocam sob o governo da
graça de Deus.
E como é que ficam? Tornam-se diferentes! Jesus enfatizou que os seus
verdadeiros discípulos, os cidadãos do reino de Deus, tinham de ser
inteiramente diferentes. Não deveriam tomar como padrão de conduta as pessoas
que os cercavam, mas sim Deus, e assim provar serem filhos genuínos do seu Pai celestial.
Para mim, o texto-chave do Sermão do Monte é 6:8: "Não vos assemelheis, pois,
a eles." Imediatamente nos faz lembrar a palavra de Deus a Israel, na
antigüidade: "Não fareis como eles.” [10] É o mesmo convite para
serem diferentes. E este tema foi desenvolvido através de todo o Sermão do
Monte. O caráter deles teria de ser completamente diferente daquele que era
admirado pelo mundo (as bem-aventuranças). Deveriam brilhar como luzes nas
trevas reinantes. A justiça deles teria de exceder à dos escribas e fariseus,
tanto no comportamento ético quanto na devoção religiosa, enquanto que o seu
amor deveria ser maior, e a sua ambição mais nobre do que a dos pagãos
vizinhos.
Não há um parágrafo no Sermão do Monte em que não se trace este
contraste entre o padrão cristão e o não-cristão. É o tema subjacente e
unificador do Sermão; tudo o mais é uma variação dele. Às vezes, Jesus contrasta
os seus discípulos com os gentios ou com as nações pagãs. Assim, os pagãos
amam-se e saúdam-se uns aos outros, mas os cristãos têm de amar os seus
inimigos (5:44-47); os pagãos oram segundo um modelo, com "vãs
repetições", mas os cristãos devem orar com a humilde reflexão de filhos
do seu Pai no céu (6:7-13); os pagãos estão preocupados com as suas próprias
necessidades materiais, mas os cristãos devem buscar primeiro o reino e a
justiça de Deus (6:23, 33).
Em outros pontos, Jesus contrasta os seus discípulos, não com os
gentios, mas com os judeus, ou seja, não com pessoas pagãs mas com pessoas
religiosas; especificamente, com os "escribas e fariseus". O Professor
Jeremias, sem dúvida, está certo ao dizer que são "dois grupos de pessoas
totalmente diferentes", pois "os escribas são os mestres de teologia
que tiveram alguns anos de estudo; os fariseus, por outro lado, não são
teólogos, mas sim grupos de leigos piedosos de todas as camadas da
sociedade".[11]
Certamente Jesus opõe a moral cristã à casuística ética dos escribas (5:21-48)
e a devoção cristã à piedade hipócrita dos fariseus (6:1-18).
Assim, os discípulos de Jesus têm de ser diferentes: tanto da igreja
nominal, como do mundo secular; tanto dos religiosos, como dos irreligiosos. O
Sermão do Monte é o esboço mais completo, em todo o Novo Testamento, da
contracultura cristã. Eis aí um sistema de valores cristãos, um padrão ético,
uma devoção religiosa, uma atitude para com o dinheiro, uma ambição, um estilo
de vida e uma teia de relacionamentos: tudo completamente diferente do mundo
que não é cristão. E esta contracultura cristã é a vida do reino de Deus, uma
vida humana realmente plena, mas vivida sob o governo divino.
Chegamos à introdução editorial dada por Mateus ao Sermão, a qual é
breve mas impressionante: indica a importância que ele lhe atribuía.
____________________________
A Mensagem do Sermão do Monte:
Contracultura Cristã. John Stott. São Paulo: Abu Editora, 2011. 235p.
[1] The Making of a Counter-Culture, Anchor
Books, Doubleday, 1969, p. 233.
[2] Ap
3:l.
[3] Lv
18:1-4.
[4] Nm
23:9; SI 106:35.
[5] 1 Sm
8:5,19,20.
[6] Ez
20:32.
[7] Jr
10:1, 2; Ez 20:7.
[8] 2 Rs
17:7, 8,19; cf. Ez 5:7; 11:12.
[9] Mt
4:17.
[10] Lv
18:3.
[11] The
Sermon on the Mount de Joachim Jeremias. Universiry of London, Athlone Press, 1961). p.23.
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