terça-feira, 13 de junho de 2017

A FELICIDADE SEGUNDO JESUS: REFLEXÕES SOBRE AS BEM-AVENTURANÇAS [Introdução]



As bem-aventuranças são a introdução ao Sermão da Montanha, que cristãos e pagãos reconhecem igualmente como uma das declarações mais importantes, em todos os tempos, do caráter moral. O significado que Jesus pretendia transmitir aos seus discípulos - e, por extensão, a nós também - precisa de interpretação e de aplicação séria ao nosso viver diário. Afinal de contas, foram os discípulos que se aproximaram de Jesus quando ele se assentou diante das multidões (Mt 5.1). A eles Jesus escolhera para proclamarem a sua salvação e estabelecerem a sua igreja. Não é aqui que se deve procurar um cristianismo popular, feito sob medida para as vicissitudes populares, que se interessa em adquirir benefícios materiais e bem-estar físico. O alvo do sermão é a perfeição que reflete a santidade de Deus (Mt 5.48). As bem aventuranças resumem e destilam as qualidades que Deus conclama seus filhos a porem em prática na vida na comunidade e no mundo.

Anteriormente, Jesus chamara quatro dos seus discípulos para que deixassem seus barcos de pesca e para fazer deles "pescadores de homens" (Mt 4.18,19). Abandonaram seus meios de obter o sustento material garantido, mas não conseguiram tão facilmente deixar para trás o seu caráter. Jesus ao convidá-los a segui-lo, pretendia iniciá-los num período de transformação interior necessária.

Da mesma forma que Moisés trouxe do monte Sinai os mandamentos escritos pelo dedo de Deus, Jesus assentou-se, noutra montanha, para ensinar os princípios fundamentais do Reino (Mt 7.24-27). As bem-aventuranças sintetizam a lei de Cristo, da mesma forma que os Dez Mandamentos epitomam a lei de Moisés.

Somente um compromisso sério com Jesus como Senhor e Salvador faz desse sermão um código moral e espiritual sério. Realmente, as exigências que Jesus apresenta são tão contundentes e abrangentes que várias interpretações já foram postuladas para esse sermão, com a intenção de abrandar ou anular essas exigências. Alguns dispensacionalistas, no passado, relegavam-no ao milênio, quando, então, os corações humanos seriam mais brandos e dispostos a seguir os ensinos do Rei Jesus.

Leo Tolstoy, escritor russo de renome, procurou implantar os ideais do sermão numa colônia, um tipo de encrave cristão dentro do mundo caído. Seu sonho não se realizou. Já faz muito tempo que os teólogos liberais apelam ao sermão para exemplificar o ensino maravilhoso de Jesus. Supunha-se que semelhante idealismo criaria o modelo para aqueles que quisessem implantar o Reino de Deus na terra. Duas guerras mundiais desmascararam o mal radical no coração humano e a futilidade dos esforços humanos que visam eliminar o egoísmo, quer individual, quer coletivo.

Albert Schweitzer, teólogo alemão de renome e missionário em Lambarene, na República do Gabão, achava que o sermão refletia a ética interina de Jesus. Conforme a teoria de Schweitzer, no começo do século XX, esse sermão tratava de atitudes e ações a serem adotadas para o período de crise que Jesus previa como um prelúdio para a vinda do Reino que ele buscava estabelecer. Mas (segundo essa teoria) Jesus fracassou, pois o Reino não passou a existir na realidade. A ética radical do Reino foi repudiada. Se Schweitzer tivesse razão, os historiadores e os antiquários seriam os que mais se interessariam pelo estudo desse sermão.[1]

Todos aqueles, porém, que confiam na Bíblia para receberem as instruções divinas para a sua vida, evitarão entrar em qualquer um desses becos sem saída. Para tais pessoas, esse sermão representa as exigências legítimas do Reino de Deus. E aqui, mais do que em qualquer outro lugar, que procurarão conhecer os ideais que Jesus Cristo ensinava. Talvez seja verdadeira a declaração de John Stott, feita diante da Convenção de Keswick de 1972, de que esse sermão é a parte mais conhecida, mas possivelmente a menos seguida, dos ensinos de Jesus. Mesmo assim, ela descreve os verdadeiros "filhos do reino", ou seja: aqueles que, pela graça, foram regenerados pelo Espírito Santo (Jo 3.6). É possível que nunca tenhamos conhecido alguém que vivesse perfeitamente à altura dessas exigências, mas nem por isso o sermão deixa de ser o padrão divino para hoje e para todos os tempos. Esse sermão é o código de santidade promulgado por Deus.

Willliam L. Pettingill, um dos principais colaboradores da primeira edição da Bíblia de Scofield, entendia que o Sermão da Montanha tinha o propósito de descrever a vida durante o reino milenar. Alegava que esse sermão não era o caminho de salvação para os pecadores. "Nem e a regra de vida para os cristãos... O Sermão da Montanha é pura lei, e o cristão não está debaixo da lei, mas da graça."[2] - Depois de ter excluído tanto os ímpios quanto os fiéis, não lhe, restou outra escolha senão relegar esse sermão ao milênio futuro. [3]

Pettingill estava errado, com toda a certeza. Mateus escreveu para as igrejas dos seus próprios dias e tempos - para a era da graça. Jesus não fez uma exposição da vontade de Deus para um futuro distante, mas para a igreja, o povo da Nova Aliança. A promessa segundo os profetas seria cumprida mediante a vinda do Espírito. A lei de Deus seria escrita no coração dos crentes. Assim como a lei corretamente entendida não podia ser observada dependendo-se de esforço próprio, esse sermão envolve a graça e o perdão. Jesus declarou que, para aqueles cuja justiça não exceder a dos escribas e dos fariseus, a porta de entrada no Reino permanecerá fechada (Mt 5.20). Com isso queria dizer que a justiça aos próprios olhos não era a essência da lei, nem é ela o âmago desse sermão. Jesus, mediante a sua morte e ressurreição, atribui a sua justiça a todos quantos nele crerem (1 Co 1.30). Deve haver, no entanto, um reflexo da santidade interior que o Espírito Santo implanta naqueles que o conhecem. Há mandamentos a serem obedecidos por aqueles que declaram que Deus neles habita (Jo 14.23). C. F. Hogg e J. B. Watson declaram; "Nada existe no sermão que não se ache noutra forma nas epístolas; e, realmente, pouquíssima coisa que não se ache implícita ou explicitamente naquelas escritas pelo apóstolo enquanto era prisioneiro em Roma.[4] ''As verdadeiras características dos "filhos do reino" são demonstradas nas bem-aventuranças mais claramente do que em qualquer outra parte do sermão. Nesse trecho, não há maneira de deixar despercebida a contracultura do caráter do Rei vivendo a sua vida nos seus discípulos e através deles. Aqui descobrimos a "imagem" do Filho de Deus (cf. Rm 8.29) e a perfeição que o Pai exige dos seus filhos (Mt 5.48). Devemos imitar essa viva descrição de Cristo. Somente ele pôs em prática na carne humana a bem aventurança das bem-aventuranças, pois somente ele exemplificou com perfeição todas elas. Nisso conseguimos captar melhor a intenção de Paulo ao escrever: "Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nada disponhais para a carne..." (Rm 13.14).

Antes de convidar o leitor a notar a riqueza de significado em cada uma das bem-aventuranças, quero ressaltar algumas considerações. Em se tratando da unidade das bem-aventuranças, não há dúvida de que Stott tem razão. As oito bem-aventuranças não descrevem cristãos diferentes que possuem uma ou outra dessas características. Pelo contrário, visam caracterizar todos os seguidores genuínos de Cristo. As bem-aventuranças não são como presentes dados aos misericordiosos, ou humildes, mas que, entre tanto, não são mansos. O cristão que possui uma das bem-aventuranças deve possuir todas elas.

Cada uma das oito descrições é de uma qualidade espiritual fundamental, mais do que uma representação de realidades físicas ou políticas. Isso não significa, no entanto, que essas virtudes têm pouca ou nenhuma aplicabilidade ao mundo real e à nossa existência de todos os dias. Pelo contrário, é exatamente por serem espirituais que são de suprema importância em todos os relacionamentos e atitudes humanos. Assim como o Verbo (Logos) que se tornou carne a fim de tornar real, tangível e visível a glória de Deus, as características espirituais do cristão "bem-aventurado" devem ser reconhecíveis. Por certo, é justamente por isso que as bem-aventuranças parecem contradizer o bom-senso. Nelas, a cidadania celestial reveste-se, na terra, de expressões visíveis (cf, Fp 1.27; 3.20; 1 Pe 1.1, 17).

Devemos entender que as bem-aventuranças proclamadas por Jesus são bênçãos verdadeiras. A palavra "bem-aventurado" (Makarios,em grego) significa "feliz", não por causa das circunstâncias externas, mas por causa da fé mediante a qual o crente recebe antecipadamente os benefícios que Deus lhe prometeu (Hb 11.1), Jesus promete aquela alegria espiritual que também conhecemos como fruto do Espírito Santo (G1 5.22), As bênçãos, assinaladas sempre na segunda parte,de cada bem-aventurança, descrevem os privilégios de pertencer ao reino de Deus e de gozar dele. Cada uma das bem aventuranças devem ser considerada parte essencial de um todo. Quem, portanto, recebe uma das bênçãos aqui prometidas deve desfrutar de todas elas.

Desejo, agora, explicar aos meus leitores o que penso ser o significado de cada uma das bem-aventuranças e oferecer minha tentativa de aplicá-las de modo relevante.

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A felicidade segundo Jesus: reflexões sobre as bem-aventuranças. Russell P. Shedd. São Paulo: Vida Nova, 2001, p.9-13


[1] Veja John F Genung: "Proverbs", International Standard Bible Encyclopedia. G. Rapids: Eerdmans, 1939, IV, p. 2470.
[2] W. L. Pettingill: The Gospel of the Kingdom. Findlay, Ohio, Fundamental Truth Pubs., s.d., p. 57,58
[3].Cf Donald Burdick: “The Sermon on the Mount: Eschatological Ethic or Present Ideal” na série de estudos para o Seminário Teológico Batista Conservador de Denver (EUA), s.d., p.2
[4] On the Sermon on the Mount, Londres: Pickering and Inglis, 1947, p.16, 107-127, citado em D. Burdick, ibid., p.8

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