sábado, 20 de maio de 2017

O PAI NOSSO: TEMAS TEOLÓGICOS ANALISADOS A PARTIR DA ORAÇÃO ENSINADA POR JESUS [Introdução]



“A oração é a conversa da alma com Deus (...) Um homem sem oração é necessária e totalmente irreligioso. Não pode haver vida sem atividade. Assim como o corpo está morte quando cessa sua atividade, assim a alma que não se dirige em suas orações a Deus, que vive como se não houvesse Deus, está espiritualmente morte” – Charles Hodge. [1]

A. Dirigida ao Pai (Mt 6.6,9)

A palavra de Deus nos ensina que nossa oração deve ser dirigida ao Pai. Em nosso orações devemos aprender logo de início que estamos falando com o nosso Pai; o nosso Deus é Pai, de quem podemos nos aproximar com confiante amor, certo de que ele está atento ao nosso clamor. “O Pai está sempre a disposição de seu filhos e nunca está preocupado demais que não possa ouvir o que eles têm a dizer. Esta é a base da oração cristã.” [2]

O conhecimento que temos de Deus Pai é nos revelado por Cristo; por sua graça o conhecemos. Jesus declara: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11.27). Falamos com o Pai – não com um estranho -, a Quem conhecemos pela graça.

Aqui há algo extremamente relevante que devemos mencionar. A paternidade de Deus sobre Israel é claramente reconhecida pelo povo do Antigo Testamento (DT 32.6; Sl 103.13,14; Jr 31.9,20); a idéia está sempre presente nas páginas do Antigo Testamento. Apesar de este substantivo ser usado mais de 1.200 vezes ali,[3] só ocorre 14 vezes referindo-se a Deus; todavia, nestes casos, é sempre empregado de forma reveladora.[4] Curiosamente, os sumerianos, cerca de três mil anos antes de Cristo, Já se referiam ao seu deus como um pai.[5]

O povo judeu era caracterizado por uma correta ênfase dada à oração. No Antigo Testamento, encontramos uma riqueza de referências à oração bem como uma demonstração vivida desta prática por parte do povo de Deus. Os ensinamentos rabínicos também traziam orientações diversas sobre a relevância e a necessidade dos homens manterem-se em comunhão com Deus por meio da oração.

Porém, com o passar do tempo – apesar de não haver nenhum ensinamento contrário -, penetraram alguns vícios na prática da oração. “O problema com qualquer sistema, comenta Barclay, não está no sistema em si, senão nos homens que o usam. Qualquer sistema de oração pode converter-se em um instrumento devocional autêntico ou em uma formalidade que deve despachar-se o mais rápido possível, sem pensar demasiado em seu conteúdo.” [6]
A corrupção de uma pratica geralmente está associada à matéria ou a forma; ou seja, em nome de uma suposta liberdade espiritual, podemos destruir toda a forma ensinada, considerando-a irrelevante; o que de fato pode acontecer. Outro modo de corrupção consiste em manter-se a forma estabelecida, tornando-se extremamente detalhista no aspecto visual, no seu aparato mas sem o espírito correto: destrói-se, assim, a essência do preceito. Parece-nos que este equivoco era o mais comum em Israel (1 Sm 15.22; Is 1.10-17; Os 6.6; Am 5.21,22; Mq 6.6-8), ainda que não o único (2 Cr 26.16-20; Ml 1.6-14).

Seguindo Barclay (1907-1978), podemos dizer que a palavra-chave para estes vícios era o formalismo.[7]

Na prática da oração dos judeus, observamos quatro características principais que não eram necessariamente erradas, mas que tendiam a fortalecer um costume apenas formal, destituído do genuíno espírito que deve caracterizar todo o nosso procedimento religioso. Ei-las:

1. Formalismo quanto ao tempo – Os judeus devotos oravam, ainda que não exclusivamente, três vezes ao dia: às três, às seis e às noves horas. Estas horas equivalem às nossas nove, doze e quinze horas. (Veja-se: Dn 6.10; At 3.1)

2. Formalismo quanto ao lugar – o lugar principal de oração era o Templo ou a Sinagoga.

3. Formalismo quanto à forma da oração – Os judeus tinham duas orações principais:

a) Shemá: [8] (“Ouve”), o “credo judeu”,[9] que consistia na leitura de Dt 6.4-9; 11.13-21 e Nm 15.37-41. O “Shemá” era repetido três vezes ao dia.[10]

b) Shemone Esreh: (“Dezoito Bênçãos”). Estas bênçãos consistiam em uma série de louvores a Deus.[11] Também deveriam ser recitadas três vezes durante o dia. Posteriormente, já no período neotestamentário, o número de bênçãos teve acréscimo de uma oração contra os hereges (Bênção nº 11); todavia para que o número 18 não fosse alterado, a bênção de nº 14 foi unida com a de nº 15.

Ambas as orações eram usadas liturgicamente.[12] Mesmo havendo alguns rabinos que se insurgissem contra a prática de se fixar as palavras desta oração, havia uma tendência de estabelecê-la de forma definida.[13]

4. Formalismo quanto à extensividade da oração – Muitos judeus entendiam que a oração para ser ouvida deveria ser longa e repetitiva.

Devemos observar que muitos judeus praticavam estes princípios com sinceridade; outros, entretanto, oravam de forma mecânica, como se estivesse repetindo uma série de sons sem sentido. Os rabinos, por sua vez, procuravam, em seus escritos, corrigir alguns destes desvios, mostrando o espírito correto que deve nortear a oração, contudo, os seus esforços se não foram em vão, não eliminaram tal prática.[14]

No Novo Testamento, Jesus Cristo enfatizou a necessidades de os seus discípulos orarem, sendo ele mesmo um modelo de oração para todos nós. Todavia, deve ser ressaltado que Jesus não exercitava a oração apenas para ser um exemplo para nós, antes “a oração foi, em algum sentido misterioso, uma parte necessária de sua vida ministerial”.[15]

No texto de Mateus 6.5-15, Jesus combate algumas práticas erradas de oração e apresenta princípios que devem nortear a oração cristã. Como a Bíblia – a Palavra de Deus – é o nosso manual de oração, precisamos aprender  com ela como devemos orar, por meio dos ensinamentos de Cristo.[16] A oração do Senhor se constitui num modelo de oração para toda a Igreja em todos os tempos; por meio de seu estudo, podemos, mediante a iluminação do Espírito Santo, aprender uma série de princípios e orientações que devem nos guiar na escola da oração. Estudarmos  a Oração Dominical sob a perspectiva de três temas principais, que se constituirão nos capítulos de nossa exposição. Devemos considerar também que Deus deseja que oremos com intensidade e integridade, não permitindo que as distrações de nossa mente nos afastem deste propósito santo.[17]

Na oração do Senhor – “que é a oração representativa de todas” -, [18] encontramos uma “fórmula”, um “roteiro”, no qual o Senhor Jesus “nos propôs tudo quanto dele é licito buscar, tudo quanto conduz ao nosso benefício, tudo quanto é necessário suplicar”, resume Calvino (1509-1564).[19] Acontece que, na prática, este privilégio só pode ser exercitado após termos aprendido. De forma vivencial, que tudo que é-nos necessário está em Deus.[20]

A Oração do Senhor sempre foi apreciada pela Igreja.[21] Quanto ao seu uso litúrgico, não sabemos a partir de quando ela passou a ser empregada. Todavia, esta prática pode ser atestada como algo corrente em meados do 4º século, conforme evidencia Cirilo de Jerusalém (c. 315-386) na sua 23ª “Catequese Mistagógica” (c. 350).[22]



O Pai Nosso: Temas Teológicos analisados a partir da oração ensinada por Jesus. Herminsten Maia Pereira da Costa. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 13-16.



[1] Charles Hodge, Sistematic Theology, Grand Rapids, Michigan, Erdmans: 1976 (Repinted), Vol III, p. 692.
[2] J. I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo, Mundo Cristã: 1980, p. 194.
[3] E. Jenni, Padre: In: Ernest & C. Westermann, eds. Diccionário Teológico Manuel del Antiguo Testamento, Madrei, Ediciones Cristiandad, 1978, Vol. I, p. 36.
[4] J. Jeremias, A Mensagem Central do Novo Testamento, PP 11,12; 2ª Ed. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 12ss
[5] Vd. J. Jeremias. A Mensagem central do Novo Testamento, PP 11,12; J. Jeremias, O Pai Nosso, pp 33,34. A referência ao seu deus como “Pai” é um fenômeno comum na história das religiões, quer dos povos mais primitivos quer dos mais evoluídos culturalmente. (Cf G. Schrenk, papai: In: G. Kittel & G. Friedrich, Eds. Theology Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Nichigan: Erdmans, 1983 (Reprinted), Vol V, p. 951)
[6] William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado. Buenos Aires: La Aurora, 1973 (Mateo I), vol 1, p. 208.
[7] Cf. W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora/ABAP, 1985, PP 22.32.
[8] É a primeira palavraque aparece em Dt 6.4, derivada do verbo (Shãma), “ouvir”, envolvendo normalmente a idéia de ouvir com afeição. (Vd. Hermann J. Austel, Shâma’: In: R. L. Harris, ET. AL. eds Thelogical Wordbook of the Old Testament,  2ª ed., Chicago, Moody Press, 1981, Vol. II, pp. 938-939).
[9] Conforme expressão de Edersheim (1852-1889). Vd. Alfred Edersheim, La Vida y los Tiempos de Jesus El Messias, Barcelona, CLIE, 1988, Vol. P. 491.
[10] Quanto ao emprego desta oração feita pelos judeus individualmente, Vd. Shemá: Alan Unterman, Dicionário Judaico de lendas e Tradições, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992, p. 242.
[11] A. Edersheim transcreve seis destas bênçãos; Vd.  La Vida y los tiempos de Jesus El Mesias, I, PP. 492-494.
[12] Vd Herminsten M. P. Costa, Teologia do Culto, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1987, p. 19.
[13] Compare as informações  de A. Edersheim, La Vida y los tiempos de Jesus El Messias, I, p. 492 com as de William D. Maxwell, El Culto Cristiano: Su Evolucion e Sus Formas, Buenos Aires, Methopress Editorial y Grafica, 1963, p. 17.
[14] A. W. Pink acredita que em virtude da nossa presunção, hipocrisia, insensibilidade, frieza e falta de fé, “o povo do Senhor, com toda probalidade, peca mais em seus esforços para orar do que em conexão com qualquer outra coisa que costuma fazer”. (A. W. Pink, Enriquecendo-se com a Bíblia,  São Paulo, FIEL, 1979, PP 39,40).
[15] James Hastings, La Doctrina Cristiana de La Oraciona,  Buenos Aires, reproduzida de “La Reforma”, Revista 1920, p. 91.
[16] Vejam-se, J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perguntas 255 e 256. In: Catecismo de La Igresia Reformada, Buenos Aires, La Aurora, 1962; Catecismo Menor de Westminster, pergunta 99.
[17] J. Calvino, As Institutas, III.20.5.
[18] James Hastings, La Doctrina Cristiana de La Oracion, p. 92.
[19] J. Calvino, As Institutas, III.20.34. Do mesmo modo diz Lutero (1483-1546), que nesta oração “estão compreendidas (...) todas as necessidades que incessantemente nos atingem, e cada qual é tão grande que deverá impedir-nos a rogar por causa dela ao longo de toda a nossa vida” (Catecismo Maior, III.34). Vd. Também, Catecismo de Genebra, Perg. 255; Catecismo Maior de Westminster, Perg.186.
[20] Vd. João Calvino. As Institutas, III.20.1.
[21] No Didaquê (c. 150), encontramos a recomendação de que esta oração fosse feita três vezes ao dia (Didaquê, Capítulo 8).
[22] Cirilo de Jerusalém, Cayechetical Lectures,  XXIII, in: P. Schaff&H. Wace, Eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church (Second Series), Grand Rapids, Michigan. Eerdmans, 1978, Vol VII, p. 155-157 (Doravante, citado como NPNF2). Vd. Comentário a respeito em J. Jeremias, O Pai Nosso: A Oração do Senhor, São Paulo, Paulinas, 1976, PP. 5,6.

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