quarta-feira, 10 de maio de 2017

A MANIFESTAÇÃO DO ESPÍRITO: A CONTEMPORANEIDADE DOS DONS À LUZ DE 1 CORINTIOS 12 - 14 [Introdução]


Em todo o campo da teologia cristã contemporânea e da experiência pessoal, poucos assuntos em voga são mais importantes do que os que estão associados com o que tem sido chamado comumente de “movimento carismático”. Tal designação, como veremos adiante, relaciona-se com o termo bíblico χάρισμα (charisma), que é empregado de forma equivocada; no entanto, por ser esse o termo usual, continuarei a empregá-lo. Em todo caso, o que torna o assunto difícil não é tanto a designação usada, mas sim seu conteúdo. O movimento abrange não somente as denominações “pentecostais” tradicionais, mas também minorias consideráveis em muitas das denominações da cristandade; e, em algumas partes do mundo — América do Sul, por exemplo —, o movimento é a principal voz do protestantismo, ao mesmo tempo que é um invasor bem-sucedido na Igreja Católica Romana. Sejam quais forem seus compromissos teológicos, jovens clérigos lutarão com questões levantadas pelo movimento carismático de forma tão freqüente e, em algumas ocasiões, tão dolorosa quanto qualquer outra questão que surgir em seu caminho.

À medida que o movimento carismático tem crescido, também tem se tornado mais diversificado, fazendo, portanto, que muitas generalizações a seu respeito sejam notavelmente reducionistas. Contudo, é justo dizer que os dois grupos, carismáticos e não carismáticos (continuo usando os termos de forma não bíblica), se alegram em usar ótimos estereótipos a respeito dos que pertencem ao partido oposto. Na opinião dos carismáticos, os não carismáticos tendem a ser teimosamente tradicionalistas que não creem na Bíblia e que não têm verdadeira fome pelo Senhor. São pessoas que têm medo de experiências espirituais profundas, são muito orgulhosas para se entregarem completamente a Deus, estão mais preocupadas com o ritual do que com a realidade e são mais apaixonadas pela verdade proposicional do que pela verdade encarnada. Eles são melhores na escrita de tratados teológicos do que no evangelismo; são beligerantes na argumentação, defensivos na postura, entediantes na adoração e desprovidos do poder do Espírito em sua experiência pessoal. Os não carismáticos, por sua vez, tendem obviamente a ver as coisas de forma um pouco diferente. Na opinião deles, os carismáticos sucumbiram ao amor atual pela “experiência”, mesmo que às custas da verdade. São vistos como pessoas profundamente não bíblicas, especialmente quando elevam suas experiências com o falar em línguas ao patamar de um xibolete teológico e espiritual pelo qual todo o restante é julgado. Se eles têm crescido, grande parte de sua força se deve ao seu triunfalismo destemido, seu elitismo populista e suas promessas de atalhos para santidade e poder. São melhores em dividir igrejas e roubar ovelhas do que são em evangelismo, mais conquistados pela exaltação espiritual de um único líder diante dos outros crentes do que pelo serviço humilde e fiel. São imperialistas na argumentação (somente eles têm o “evangelho todo”), abrasivos na postura, descontrolados na adoração e destituídos de qualquer entendimento real da Bíblia que vá além da mera citação de versículos.

Obviamente os dois grupos admitem exceções notáveis às caricaturas que apresentei; todavia, a profunda suspeita mútua faz com que o diálogo genuíno seja extremamente difícil. Isso é especialmente doloroso, até vergonhoso, diante do compromisso assumido pela maioria dos crentes de cada grupo em relação à autoridade da Bíblia. As posições estereotipadas dos dois lados são tão antagônicas, ainda que ambas se digam bíblicas, que devemos concluir uma destas três possibilidades: um dos grupos está correto em sua interpretação da Escritura sobre essas questões, e o outro está correspondentemente errado; ambos, até certo ponto, estão errados, e é necessário encontrar uma forma melhor de entender a Escritura; ou a Bíblia simplesmente não fala com clareza e coerência sobre esses assuntos, e os dois grupos em disputa extrapolaram os ensinos da Bíblia a fim de entrincheirarem-se em posições que não são defensáveis pela Escritura.

Seja qual for o caso, devemos voltar para a Escritura. Esse é o fundamento das exposições que serão realizadas neste livro. Não tenho a ilusão de que o que escrevo é particularmente inovador ou de que se provará perfeitamente convincente para todos os que têm pensado sobre essas questões; e a limitação do material a ser estudado — somente três capítulos do Novo Testamento — necessariamente restringe minhas conclusões. Ainda assim, espero que o capítulo conclusivo integre suficientemente outras porções do material bíblico, especialmente do livro de Atos, e que as conclusões não pareçam distorcidas. Além disso, por mais que grande parte de minha atenção esteja no texto de 1 Coríntios 12—14, minha preocupação em tornar este estudo uma exposição teológica (como apresenta o subtítulo) me forçará a interagir um pouco com outras doutrinas cristãs, bem como com conclusões de lingüistas, antropólogos sociais e historiadores e também com crenças práticas e populares da igreja contemporânea, mesmo quando tais considerações extrapolarem o domínio do estudante do Novo Testamento; isso porque estou convencido de que, se a igreja deseja encontrar paz quanto a esses assuntos, precisamos considerar, imparcialmente, todas as evidências relevantes, ainda que insistamos que a autoridade da Escritura deva prevalecer. Essa autoridade, obviamente, não deve ser transferida a mim, como intérprete da Escritura; por isso, em alguns momentos, indicarei o nível de certeza com o qual faço julgamentos interpretativos, a fim de que, mesmo não concordando em todos os detalhes, talvez a maioria de nós possa chegar à concordância na maior parte das questões centrais.


A Manifestação do Espírito: A contemporaneidade dos dons à luz de 1 Coríntios 12 – 14. D. A. Carson. São Paulo: Vida Nova, 2013. 232 p.

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