Em todo o campo da teologia cristã contemporânea e da experiência
pessoal, poucos assuntos em voga são mais importantes do que os que estão
associados com o que tem sido chamado comumente de “movimento carismático”. Tal
designação, como veremos adiante, relaciona-se com o termo bíblico χάρισμα
(charisma), que é empregado de forma equivocada; no entanto, por ser esse o
termo usual, continuarei a empregá-lo. Em todo caso, o que torna o assunto
difícil não é tanto a designação usada, mas sim seu conteúdo. O movimento
abrange não somente as denominações “pentecostais” tradicionais, mas também
minorias consideráveis em muitas das denominações da cristandade; e, em algumas
partes do mundo — América do Sul, por exemplo —, o movimento é a principal voz
do protestantismo, ao mesmo tempo que é um invasor bem-sucedido na Igreja
Católica Romana. Sejam quais forem seus compromissos teológicos, jovens clérigos
lutarão com questões levantadas pelo movimento carismático de forma tão freqüente
e, em algumas ocasiões, tão dolorosa quanto qualquer outra questão que surgir
em seu caminho.
À medida que o movimento carismático tem crescido, também tem se
tornado mais diversificado, fazendo, portanto, que muitas generalizações a seu
respeito sejam notavelmente reducionistas. Contudo, é justo dizer que os dois
grupos, carismáticos e não carismáticos (continuo usando os termos de forma não
bíblica), se alegram em usar ótimos estereótipos a respeito dos que pertencem
ao partido oposto. Na opinião dos carismáticos, os não carismáticos tendem a
ser teimosamente tradicionalistas que não creem na Bíblia e que não têm
verdadeira fome pelo Senhor. São pessoas que têm medo de experiências
espirituais profundas, são muito orgulhosas para se entregarem completamente a
Deus, estão mais preocupadas com o ritual do que com a realidade e são mais
apaixonadas pela verdade proposicional do que pela verdade encarnada. Eles são
melhores na escrita de tratados teológicos do que no evangelismo; são
beligerantes na argumentação, defensivos na postura, entediantes na adoração e
desprovidos do poder do Espírito em sua experiência pessoal. Os não
carismáticos, por sua vez, tendem obviamente a ver as coisas de forma um pouco
diferente. Na opinião deles, os carismáticos sucumbiram ao amor atual pela
“experiência”, mesmo que às custas da verdade. São vistos como pessoas
profundamente não bíblicas, especialmente quando elevam suas experiências com o
falar em línguas ao patamar de um xibolete teológico e espiritual pelo qual
todo o restante é julgado. Se eles têm crescido, grande parte de sua força se
deve ao seu triunfalismo destemido, seu elitismo populista e suas promessas de
atalhos para santidade e poder. São melhores em dividir igrejas e roubar
ovelhas do que são em evangelismo, mais conquistados pela exaltação espiritual
de um único líder diante dos outros crentes do que pelo serviço humilde e fiel.
São imperialistas na argumentação (somente eles têm o “evangelho todo”),
abrasivos na postura, descontrolados na adoração e destituídos de qualquer
entendimento real da Bíblia que vá além da mera citação de versículos.
Obviamente os dois grupos admitem exceções notáveis às caricaturas que
apresentei; todavia, a profunda suspeita mútua faz com que o diálogo genuíno
seja extremamente difícil. Isso é especialmente doloroso, até vergonhoso,
diante do compromisso assumido pela maioria dos crentes de cada grupo em
relação à autoridade da Bíblia. As posições estereotipadas dos dois lados são
tão antagônicas, ainda que ambas se digam bíblicas, que devemos concluir uma
destas três possibilidades: um dos grupos está correto em sua interpretação da
Escritura sobre essas questões, e o outro está correspondentemente errado;
ambos, até certo ponto, estão errados, e é necessário encontrar uma forma
melhor de entender a Escritura; ou a Bíblia simplesmente não fala com clareza e
coerência sobre esses assuntos, e os dois grupos em disputa extrapolaram os ensinos
da Bíblia a fim de entrincheirarem-se em posições que não são defensáveis pela
Escritura.
Seja qual for o caso, devemos voltar para a Escritura. Esse é o
fundamento das exposições que serão realizadas neste livro. Não tenho a ilusão
de que o que escrevo é particularmente inovador ou de que se provará
perfeitamente convincente para todos os que têm pensado sobre essas questões; e
a limitação do material a ser estudado — somente três capítulos do Novo
Testamento — necessariamente restringe minhas conclusões. Ainda assim, espero
que o capítulo conclusivo integre suficientemente outras porções do material
bíblico, especialmente do livro de Atos, e que as conclusões não pareçam
distorcidas. Além disso, por mais que grande parte de minha atenção esteja no texto
de 1 Coríntios 12—14, minha preocupação em tornar este estudo uma exposição
teológica (como apresenta o subtítulo) me forçará a interagir um pouco com
outras doutrinas cristãs, bem como com conclusões de lingüistas, antropólogos
sociais e historiadores e também com crenças práticas e populares da igreja
contemporânea, mesmo quando tais considerações extrapolarem o domínio do
estudante do Novo Testamento; isso porque estou convencido de que, se a igreja
deseja encontrar paz quanto a esses assuntos, precisamos considerar,
imparcialmente, todas as evidências relevantes, ainda que insistamos que a
autoridade da Escritura deva prevalecer. Essa autoridade, obviamente, não deve
ser transferida a mim, como intérprete da Escritura; por isso, em alguns
momentos, indicarei o nível de certeza com o qual faço julgamentos
interpretativos, a fim de que, mesmo não concordando em todos os detalhes,
talvez a maioria de nós possa chegar à concordância na maior parte das questões
centrais.
A Manifestação do Espírito: A contemporaneidade dos dons à luz de 1
Coríntios 12 – 14. D. A. Carson. São Paulo: Vida Nova, 2013. 232 p.
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