[1]Ainda elogiado como uma palavra
particularmente oportuna para a nossa época, descobrir que o famoso romance Admirável
Mundo Novo, de Aldous Huxley, completa 85 anos de idade este ano[2] é algo que pode causar espanto. Como uma obra de ficção
futurista, ele tem despertado muito diálogo sobre os valores e ideologias
explorados dentro de seu mundo imaginado.
O aniversário deste ano nos oferece um bom pretexto para
revisitar o clássico de Huxley e refletir sobre sua relevância no mundo
contemporâneo.
NOVA ORDEM MUNDIAL
Admirável Mundo Novo encontra sua premissa narrativa
e o objeto de sua crítica na ascendente ideologia fordista dos dias de Huxley,
projetada em um futuro distópico perturbador. Dentro do Estado Mundial de
Huxley, Henry Ford é reverenciado como uma figura messiânica quase mítica. Ele
é a base de seu sistema de datação (os eventos do livro ocorrem no ano 632 d.F
– depois de Ford), e seu nome – o do fundador do mundo novo – agora é empregado
onde antigamente se usava o nome de Deus. Produção e consumo em massa de
produtos descartáveis (“mais vale dar fim do que consertar” [3] ), bem como os valores da
predicabilidade e uniformidade, são princípios fundamentais da ordem mundial.
Os próprios seres humanos tornaram-se os objetos do
hiperfordismo do Estado Mundial. Dentro de um enorme projeto eugenista, as
pessoas são massas produzidas através de tecnologias reprodutivas e
condicionadas a serem dóceis e participantes úteis na sociedade, plenamente
envolvidas na produção e consumo que constituem o seu núcleo. Há cinco castas
ou modelos diferentes de humanidade, cada qual cuidadosamente planejada e
condicionada para servir a determinado propósito social. A individualidade e a
exclusividade do amor familiar ou monogâmico são repelidos como obstrução à
homogeneidade e conformidade sociais – “cada um pertence a todos”. [4]
Enquanto as crianças são modeladas através de processos
uniformes de produção em linha, a reprodução sexual, a monogamia e a noção de
mães e pais, tudo isso passou a ser encarado com asco. Os cidadãos são
encorajados a se envolver em sexo promíscuo estéril, para torná-los
complacentes a sua submissão e como um meio de impedir que afetos particulares
surjam. Como Huxley observa em sua introdução, “à medida que diminui a
liberdade política e econômica, a liberdade sexual tende a aumentar como
compensação”. [5]
A individualidade e a privacidade são tratadas com desconfiança.
A infantilização da população é uma política
governamental. O envelhecimento do corpo e o amadurecimento do caráter e mente
são reprimidos e evitados, mantendo as aptidões e predileções dos cidadãos do
Estado Mundial em uma permanente condição adolescente. Uma cultura de
entretenimento de m assa homogênea promove coesão e quietude sociais. Doses
intensas de sensação na forma de “sensíveis” (uma forma sensualmente
intensificada de entretenimento cinemático) a esportes populares estimulam as
pessoas a serem joguetes pueris de seus impulsos e desejos, incapazes de
retardar a gratificação, desenvolver convicções, sentir intensamente ou
dedicar-se inteiramente a qualquer causa. Mentes saturadas com sensação e
prazer – principalmente através da maravilha de droga alucinógena “soma” – são
imunizadas contra o raciocínio, a reflexão e a não-conformidade.
O título do livro é uma alusão irônica a um verso de A
Tempestade, de Shakespeare. A despeito de sua amenidade aparente, a
sociedade tecnocrata e estraga-prazeres do Estado Mundial sufoca todas as
paixões, propósitos, ideais e valores do elevado caráter da escrita de
Shakespeare. O sexo fácil sufoca o romantismo. O condicionamento e a
“eficiência” farmaceuticamente garantidas substituem e autonegação e a formação
do caráter. Conforto implacável, prazer e ausência de luta tornam a nobreza e o
heroísmo desnecessários. Poesia, sacrifício, sentido e o próprio Deus não têm
lugar nesse mundo.
REALIDADE INIMAGINÁVEL
Ler Admirável Mundo Novo pode ser uma experiência
peculiar, uma vez que o leitor é ao mesmo tempo atingido por elementos
divertidamente curiosos e assustadoramente oportunos. Embora a obra tenha
sobrevivido supreendentemente bem ao tempo, considerando-se que se trata de uma
ficção futurológica, ela é, contudo, um produto de sua época. A despeito da
premonição e perceptividade de Huxley, sua visão foi, em grande medida, uma
projeção e uma escalada a partir dinâmicas emergentes de sua época de produção,
consumo e sociedade em massa.
Essas dinâmicas têm sido superadas, ou pelo menos
consideravelmente dificultadas por muitos desenvolvimentos subsequentes. Em uma
economia pós-fordista e numa era digital de dispositivos personalizados, a
sociedade de massa não é mais tão cristalina como parecia outrora. Longe de ser
encarada como uma ameaça, por exemplo, a individualidade está, agora,
profundamente assimilada em nosso sistema econômico, uma vez que somos
estimulados a nos diferenciar, identificar e alienar por meio das formas de
consumo que escolhemos. O fato de que estamos todos envoltos no mesmo sistema é
menos óbvio quando todos usamos as algemas sob medida que escolhemos para nós
mesmos.
Na realidade, a partir de nossa posição contemporânea
privilegiada, uma série de elementos da visão de Huxley parecem demasiadamente
conservadores. Escrevendo antes do advento da genética moderna, Huxley
dificilmente teria imaginado a engenharia genética diretamente aplicada nos
seres humanos tal como hoje se apresenta em nosso horizonte, nem o grau de
domínio sobre nossa natureza que a ciência oferece. Tampouco ele parece ter
antecipado a forma de sexualidade de nossa época – todo o sexo promíscuo em Admirável
Mundo Novo é heterossexual. Ademais, conquanto exista dentro de um Estado
Mundial, a Inglaterra que fornece o cenário para a narrativa huxleyana parecer
surpreendentemente provinciana em alguns pontos: a globalização radical
aparentemente teve efeitos limitados.
Um detalhe impressionante na descrição de Huxley é que,
embora o Estado Mundial seja baseado na produção em massa, o processo de
automação é suprimido, com humanos executando trabalhos que facilmente poderiam
ser confiados a máquinas ou algoritmos (Huxley não explora a possibilidade das
máquinas quaseinteligentes). A partir de uma posição contemporânea privilegiada
isso pode exigir uma suspensão significativa de descrença para imaginar que uma
economia assim possa ser domada para servir a um fim social mais amplo, ainda
que distópico. Pode ser que Huxley tenha temido uma ideologia fordista forjada
e imposta pelos “Controladores do Mundo” dentro de uma economia de comando –
não um temor irrealista na época da ascensão do comunismo e do fascismo; nós,
hoje, parecemos ter muito mais motivos para temer nossa sujeição à lógica
insaciável e autônoma de um sistema capitalista desenfreado além do escopo ou
controle humanos. [6]
O Estado Mundial é uma sociedade intensivamente
planejada, que pode ser diretamente apresentado em proposições e é integrado
por uma visão humana unificada. Muito de Admirável Mundo Novo consiste
de diálogo expositivo, no qual a ideologia humana subjacente ao Estado Mundial é
explicitamente articulada. Contudo, os desenvolvimentos sociais que moldam
nosso mundo de forma muito poderosa não parecem mais ser planejados e
definitivamente não se apresentam a nós diretamente. Pelo contrário, eles são
normalmente dinâmicas tecnológicas e societárias que desencadeamos, cujo
objetivo de longo prazo é confuso e cujos efeitos progressivos em nós,
conquanto vastos no global e em retrospecto, só são percebidos no momento e no particular
– quando são percebidos de fato. Embora possamos ficar inconscientemente
condicionados, o condicionador é mais provavelmente uma tecnologia tal como a
internet do que uma inteligência humana.
DOMINADOS PELO DESEJO
Nos dias de hoje, temos mais a temer dos processos
desumanos incontroláveis e inexoráveis que desencadeamos, que se desdobram na
sociedade com uma inevitabilidade desmoralizante. Nosso mundo está à mercê das
forças siamesas do capitalismo totalizante e da tecnologia avançada. Enquanto
esta amplia o escopo do que é possível, aquela impulsiona níveis crescentes de
consumo e nossa capacidade irrestrita e incita a fazê-lo, sobrepujando todos os
obstáculos que possam restringi-los. Embora os seres humanos sejam os peões
dessas forças, a lógica propulsora das próprias forças domina sobre eles.
Este é o ponto chave em que a visão de Admirável Mundo
Novo repercute. Huxley percebeu, melhor do que muitos, a escravidão
degradante na qual podemos ser conduzidos por nosso desejo por prazer. Neil
Postman contrastou de forma memorável a obra de Huxley com 1984, de
George Orwell, observando o reconhecimento de Huxley de que podemos ser destruídos
e dominados mais facilmente através de nossos desejos do que de nossos temores.
Anestesiados por prazeres, entretenimentos, trivialidades, distrações, luxúrias
e sensualidade, podemos ficar habituados com a erosão constante de nossa
humanidade.
No mundo de hoje, como Slavoj Žižek observou, estamos
sujeitos ao totalitarismo suave que continuamente nos exorta a “desfrutar!”. O
mercado tem nos rodeado de produtos e propagandas que têm sido usadas como armas
para excitar e mobilizar nosso desejo de consumir e derrubar qualquer resistência
que possamos oferecer contra ele. Em nosso mundo supersaturado e hiper-real,
somos expostos a uma horda de estímulos criados artificialmente que excedem em
muito tudo o que teríamos encontrado anteriormente naturalmente – desde
alimentos quimicamente modificados até gráficos estonteantes de jogos, drogas
que alteram o estado mental, imagens vibrantes em nossas telas, pornografia
online, destinos turísticos cuidadosamente tratados, modelos maquiadas nas
capas de revista e a sociabilidade de um site como o Facebook. Todas essas
coisas são calculadas para excitar nosso apetite, vencer nossa resistência e
levar-nos a entregar-se. A onda de
prazeres intoxicados do capitalismo desarma todos os obstáculos
diante dele – censuras, restrições legais, tabus culturais, normais sociais,
virtudes religiosas, autocontrole.
Edmund Burke argumentou que controles e restrições sobre
os apetites humanos são essenciais à liberdade humana, e um dos nossos direitos
fundamentais. Sem esses controles, somos reduzidos a prisioneiros infantis do
prazer, incapazes de governar a nós mesmos. Um exemplo trágico é o imenso dano
que está sendo causado pela pornografia, seu poder de dominar pessoas aumentado
por novas tecnologias e a força do mercado, tornando-o mais atraente para
consumir e mais difícil de se opor. E embora uma sociedade vidrada no
entretenimento popular de massa e esportes estivesse em ascensão nos dias de
Huxley, a escala da nossa própria obsessão societária com essas coisas – e
nosso consumo relativamente tácito, como cristãos, da cultura pop – é comprovadamente
sem precedentes e digno de verdadeiro alerta.
OBJETOS
DESUMANIZADOS
Huxley, além disso, reconheceu o perigo de a natureza
humana ser sujeitada à lógica da produção. A realidade mais central do Estado
Mundial talvez seja a substituição da procriação sexual pela produção técnica:
os seres humanos deixam de procriar e começam a ser fabricados. Huxley, de modo
astuto, percebe exatamente quão crucial essa mudança é e chama a nossa atenção
para seus vários aspectos em grande detalhe: uma cultura de sexo puramente
contraceptivo e relativa neutralidade de gênero, a formação de crianças através
de processos semelhantes a correias transportadoras, a eliminação da família e
dos limites do amor nos quais os filhos são naturalmente recebidos e assim por
diante.
Novamente, este aspecto da obra de Huxley encontra um eco
preocupante em nosso mundo contemporâneo. Por meio de coisas como a ideologia
do aborto, avanços na tecnologia reprodutiva e a normatização do casamento
neutro entre os sexos, as crianças estão cada vez mais sujeitas à lógica da
escolha e da construção. A própria dignidade humana repousa, em grande parte,
no fato de que não somos fabricados, mas procriados – concebidos por
meio de uma dádiva amorosa de corpos que precedem e superam os âmbitos políticos,
legais, econômicos e tecnológicos da atividade humana. Uma cultura que resiste
ou negligencia essa verdade, como a nossa está propensa a fazer, corre o risco
de mudar o seu próprio entendimento e abordagem da humanidade em si mesma.
LUTANDO POR
LIBERDADE
Como cristãos no século 21, estamos encarando uma luta
crescente e profundamente hercúlea pela natureza e dignidade humanas. Devemos
lutar contra a subjugação da humanidade à tirania do prazer, contra a sensualidade
amniótica na qual nossa cultura nos encapsula, estupidificando-nos para
qualquer realidade que possa elevar nossa natureza suscitando-nos em dever,
amor ou adoração. Devemos resistir ao fascínio do domínio da técnica sobre a
natureza – um domínio que nos expõe à desumanização. E para que façamos essas
coisas, devemos reconhecer e vencer a infidelidade que existe em cada um dos
nossos corações, que nos derrubaria de dentro. Diante desses desenvolvimentos
acelerados, o Admirável Mundo Novo de Huxley nunca foi tão atual, nem o
alerta soa tão urgente.
Contra essas coisas, devemos reafirmar a importância do
autodomínio moral, da relação entre homem e mulher e da doação de vida que pode
resultar de seu amor, de limites morais que restrinjam os alcances do mercado e
o desenvolvimento da tecnologia, e do Senhor e Doador da vida a quem todos
somos devedores. Se falharmos nisso, correremos o risco de nos submeter à
servidão mais insidiosa jamais vista.
_______________________
Admirável
Mundo Novo. Aldous Huxley. 22ª edição. São Paulo. Globo, 2014.
314p.
[1] Texto originalmente
publicado no Voltemos ao Evangelho, in: https://goo.gl/pjvaVx
[2] O presente
texto foi escrito no ano passado. [Nota do Tradutor.]
[3] Huxley, Aldous. Admirável
Mundo Novo. Biblioteca Azul, 2014. Edição Kindle, posição 836. Tradução de
Leonel Vallandro e Vidal Serrano.
[4] Idem, posição 711.
[5] Idem, posição 190.
[6] A opinião do
articulista quanto a este quesito não representa a posição do VE. [Nota do Tradutor.]
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