quinta-feira, 6 de julho de 2017

TRIUNFO DA FÉ: LIDANDO COM O PROBLEMA DO SOFRIMENTO [Introdução]


O livro que você tem em mãos busca oferecer reflexões bíblicas sobre o sofrimento do ser humano, o tipo de problema que todos os seres humanos têm que lidar em maior ou menor medida. Tais reflexões tratam dos problemas que pastores e líderes eclesiásticos lidam semanalmente. Portanto, esses sermões que se seguem não são uma discussão filosófica acerca da origem e natureza do mal. No apêndice, todavia, procuro apresentar de forma simplificada a discussão que acontece no âmbito da filosofia da religião e na apologética sobre essa questão do problema do mal. No entanto, se engana quem pensa que a abordagem filosófica do apêndice ou a abordagem teológica dos capítulos são menos bíblicas do que abordagens pastorais. Não importa se tratamos do problema do mal com uma abordagem filosófica em resposta aos céticos, ou se nos engajamos em discussões teológicas em discordância de alguns teólogos, ou se falamos do sofrimento em uma abordagem pastoral aos crentes, todas elas devem trabalhar com aspectos bíblicos no fundamento de sua argumentação. Não faz uso da Bíblia apenas os que a estudam exegeticamente, analisando as nuances do texto e contexto para formular uma teologia bíblica. Outras áreas também podem e devem ser bíblicas, articuladas a partir do entendimento das verdades contidas no texto sagrado. A apologética cristã não deve apenas fazer uso de argumentos lógicos, nem a teologia sistemática deve discutir teólogos renomados e teologias contemporâneas, muito menos a teologia pastoral deve estar calcada em psicologias humanistas. O que as torna genuinamente cristãs são suas premissas bíblicas. Os sermões desse livro visam não só uma abordagem pastoral, mas também filosófica e teológica que sejam bíblicas.

Devo acrescentar que entendo que todas as três abordagens – filosófica,  teológica e pastoral - também devem buscar aplicações para as nossas vidas a fim de que as discussões sobre um assunto tão delicado como o sofrimento não ganhe um caráter meramente teórico. Aprender que tanto as profundas discussões filosóficas quanto as teológicas podem trazer lições práticas e encorajadoras à alma tem sido um deleite para mim. Esse livro é uma simples tentativa de ilustrar essa praticidade das Escrituras.


UM PANORAMA

Antes de entrarmos no texto do livro do profeta Habacuque, quero apresentar um rápido panorama dos aspectos contextuais para melhor entendimento do texto. Praticamente não há informação bíblica que seja sólida sobre a vida do profeta que nos ajude a compreender sua profecia. Seu nome possivelmente significava "abraçado", mas a hipótese de que ele era de família levítica, por se mostrar qualificado para o canto litúrgico no templo (3.19), é questionável. A Escritura não fornece mais pistas sobre esse arauto do Senhor.

Porém, conhecer quando a profecia foi proferida (data), o que acontecia na época (contexto histórico), como o livro foi escrito (formato de diálogo), e a crença do profeta (temas teológicos) iluminará nossa compreensão de sua mensagem.


DATA DA PROFECIA

Existem diferentes opiniões concernentes à data da profecia de Habacuque. Vejamos algumas posições de estudiosos de acordo com a ordem cronológica.

1. A pecaminosidade descrita no início do livro (1.2-4) poderia ter acontecido durante os últimos dias do reinado de Manasses (696-641 a.C.), que foi marcado por grande iniqüidade (veja 2 Rs 21).[1] O problema com essa posição está no fato de Deus levantar os babilônicos [2] "em vossos dias" (1.5) para disciplinar Judá (1.12). Acontece que a Babilônia só ataca Judá em 597 a.C., o que seria mais de uma geração após a profecia. Isto descaracterizaria a expressão "em vossos dias". Uma possível defesa é que a expressão de tempo estaria se referindo apenas aos caldeus se tornarem uma potência mundial. Em outras palavras, o que ocorria "em vossos dias" seria apenas o "suscitar" dos caldeus (1.6). Isto estaria em acordo com a cronologia mundial, pois Nabopolassar retirou das mãos dos assírios o controle da Babilônia em 626 a.C., em parceria com os medos atacou o restante das forças assírias em 614 a.C., e em 612 a.C. os caldeus destruíram Nínive. A consumação desse processo de crescimento imperial dos Babilônicos veio com a vitória sobre o Egito, o único poder militar que restava no Oriente Médio, em 605 a.C. Ao menos os primeiros eventos descritos acima estariam mais próximos do reinado de Manasses.

2. A iniqüidade descrita pelo profeta Habacuque poderia ter acontecido na primeira década do reinado de Josias (639-609 a.C.), [3] como um resquício da iniqüidade do período de Manasses, e antes de Josias começar as suas reformas em 628 a.C. (veja 2 Cr 34.1-3). A vantagem dessa posição é trazer a predição de juízo sobre Judá para mais perto de sua realização em 597 a.C., fortalecendo a idéia de que tudo ocorreria "em vossos dias". Ela também sustenta o fato de Deus levantar os caldeus como o novo império devastador como tendo um caráter surpreendente, inacreditável (1.5). Qualquer data próxima da virada do século – por exemplo, durante o reinado de Jeoaquim (609-598 a.C.) - enfraquece o elemento preditivo. Contudo, a mensagem de juízo ao invés de chamada ao arrependimento não parece se encaixar no período anterior ao reavivamento durante o longo reinado de Josias, que trouxe tranqüilidade e prosperidade à nação. Veja como a profecia de Sofonias, que descreve a pecaminosidade Reinante, mas também apresenta uma chamada ao arrependimento, se encaixa melhor nesse período.

3. Há ainda a proposta de Chisholm, que toma o fato dos babilônicos já terem estabelecido uma reputação como um poder imperialista para datar a profecia entre 626 e 605 a.C.[4] Entretanto, esta proposta desconsidera o fato de que até a morte de Josias (609 a.C.), a pecaminosidade não poderia ter sido tão pervasiva na sociedade judaica já que o povo seguia a estilo piedoso de seu rei (veja 2 Cr 34.33). É verdade que o contraste da santa reforma de Josias com a permanência da ira divina por causa dos pecados de Manasses (veja 2 Rs 23.24-27) pode lançar dúvidas sobre este período como um verdadeiro avivamento. A maioria dos estudiosos classificam esse avivamento como superficial. Mas a avaliação do Cronista não pode ser desconsiderada. Creio que a melhor solução seja entender o período de Josias como um retardar do castigo divino por causa do "sal" que foi Josias (retardando o apodrecimento moral da nação judaica), assim como a conversão dos ninivitas no tempo de Jonas - genuína, mas não duradoura - deve ter atrasado o castigo de Deus sobre a Assíria.

4. Sendo assim, existem aqueles que preferem localizar a profecia durante os primeiros anos do reinado de Jeoaquim, antes da batalha de Carquêmis em 605 a.C.[5] Esta visão ainda está tentando manter o aspecto inacreditável da revelação de Deus, mas ela desconsidera os eventos anteriores a 605 a.C. Em outras palavras, essa posição afirma que parte da revelação surpreendente de Deus era os caldeus chegarem à posição de potência inigualável depois de derrotarem o Egito e não restarem mais inimigos que lhes fizessem frente. Porém, não pode ser muito antes de 605 a.C. para que a conquista de Jerusalém (597 a.C.) ainda estivesse dentro do período daquela geração, isto é, que acontecesse "em vossos dias" (v. 5).

5. Robinson assume que Judá ainda não fora invadida, mas o Líbano já estava sofrendo (2.14) e a aproximação do inimigo estava produzindo um efeito negativo na vida de Judá (1.4). Por isso, ele considera que uma data logo após a batalha de Carquêmis é preferível (c. 603 a.C.).[6] Essa posição parece bastante frágil em suas asseverações acerca do Líbano em relação a 2.14 e do efeito produzido pela aproximação dos caldeus. Suas premissas são muito subjetivas. Mas uma posição semelhante é cogitada por estudiosos de renome no meio evangélico quando afirmam que "as vivas descrições das façanhas militares dos caldeus (v. 6-11) podem apontar para urna data posterior a 605, quando, na batalha de Carquêmis as forças de Nabucodonozor provaram seu poder e capacidade derrotando os egípcios." [7] R. K. Harrison também sustenta o período entre 605 e 598 a.C. como o mais provável. [8] Luiz Sayão segue Harrison nessa proposta. [9]

6. Por último, existem aqueles que preferem ver as partes do diálogo entre Deus e o profeta como acontecendo em períodos diferentes. [10] Assim sendo, a pecaminosidade reportada em1.2-4 teria acontecido nos primeiros anos do reinado de Jeoaquim, enquanto a reclamação de 1.12-17 já seria uma expressão de quem experimentou a invasão dos caldeus. Concernente ao aspecto inacreditável da revelação, ela poderia ser uma referência ao choque da invasão para aqueles que pensavam que Jerusalém nunca seria tomada, assim como a surpresa de ver a Babilônia superando o Egito em Carquêmis. [11]

Nenhum ponto de vista apresentado acima está livre de complicações. Todavia, eu irei assumir a quarta proposta como a mais provável, ou seja, que a profecia foi dada nos primeiros anos do reinado de Jeoaquim, embora as duas últimas também pareçam plausíveis. Uma diferença marcante, porém, entre a quarta e a quinta em relação à sexta posição esta na interpretação do tempo verbal de 3.17 (presente ou futuro). Em outras palavras, a quarta e a quinta propostas veriam a destruição de Judá como ainda por acontecer, enquanto a sexta retrataria o profeta já experimentando a devastação.

Ao assumirmos que a data mais provável seja o reinado de Jeoaquim. ficará mais fácil entender o sentimento de frustração do profeta, sua expectativa de mudança, o anúncio de juízo divino iminente e sem volta, e, ao final, a postura confiante do profeta como lição para leitores que ainda passariam pelo sofrido período de tirania babilônica.


CONTEXTO HISTÓRICO

Como o grande evento político para o qual o livro de Habacuque aponta é o cativeiro babilônico, é importante traçarmos um panorama histórico focando na derrocada de Judá que culminou nesse fatídico castigo de Deus. O profeta Isaías já previra que a Babilônia tomaria riqueza e descendentes do rei Ezequias em decorrência de ter mostrado suas riquezas à comitiva babilônica com o provável intuito de fazer aliança política (2 Rs 20.16-18). Contudo, o autor do Livro dos Reis afirma que foi por causa dos pecados do rei Manasses que Nabucodonozor subiu contra Judá (2 Rs 24.1-4). Robertson escreve: "O rei Manasses deve ser pessoalmente responsabilizado por introduzir as abominações da prostituição sagrada e do sacrifício humano dento do culto de Israel (2 Rs 21.6-9; 2 Cr 33.6-9)... Por essas poluições, ele selou o destino de Israel a despeito de arrependimentos subseqüentes [2 Cr 33.11-20]". [12] O longo reinado de Manasses de 55 anos proporcionou uma institucionalização de pecados que marcou mais de uma geração em Judá. Suas mudanças pós-arrependimento foram, ao menos parcialmente, desfeitas pelo seu filho Amon durante o curto reinado de dois anos (640-642 a.C.). Judá caminhava a passos largos para a sua maior disciplina.

Quando o piedoso rei Josias (640-609 a.C.) promove uma vasta reforma politico-religiosa em Judá, vemos um grande reavivamento acontecer. [13] O rei começa a buscar o Senhor ainda muito jovem e é impulsionado nessa busca com a descoberta do livro da Lei na casa do Senhor (2 Cr 34.3-18). Josias limpa a idolatria do país,conduz o povo a renovar a aliança com Deus e celebra memorável Páscoa. O êxito de Josias coincide com uma fraqueza sem precedentes e a conseqüente queda do império assírio, até então a maior potência política mundial. Os ares eram favoráveis ao povo de Deus, provavelmente despertando esperanças de uma guinada no cenário político-militar. John Bright apresenta até um lado conquistador de Josias, supondo que ele tenha marchado para recuperar algumas províncias no Reino do Norte que os assírios haviam dividido. [14] Afinal, sua reforma não atingiu somente o Reino do Sul, de Judá, mas também o Reino do Norte, de Israel (2 Cr 34.3-7).

Esse período áureo da história de Judá foram os prováveis dias da juventude do profeta Habacuque. Sendo assim, há de se compreender que tendo Josias revertido situação tão adversa produzida por Manasses e Amom, é natural que Habacuque tivesse essa expectativa de mais uma vez enxergar os pecados de seus dias revertidos por reavivamento divino. Lamentar a partida desse rei tão importante na trajetória do reino de Judá tornou-se um costume na nação (2 Cr 35.25) tal era o amor que povo tinha por esse reformador. Ele trouxera de volta a expectativa de uma Judá mais gloriosa.

Entretanto, com a morte de Josias Judá ficou temporariamente sob o domínio egípcio [15] e os reinados dos filhos de Josias (Jeoacaz, Jeoaquim, Zedequias)  e do seu neto (Joaquim) foram a decadência final que culminou no cativeiro com a queda de Jerusalém em 587/586 a.C. Esse foi um período de transição não somente porque houve troca de poderio mundial, da Assíria para a Babilônia (isolando-se em poderio ao vencer o Egito na Batalha de Carquêmis em 605 a.C.), mas também porque Deus cessou de demonstrar sua paciência para com o povo. O juízo era tão iminente que ele não mais conduziu os profetas em chamada ao arrependimento. O profeta Jeremias, contemporâneo de Habacuque, foi proibido de interceder pelo povo de Judá (Jr 7.16; 11.14; 14.11-12). E nós sabemos que quando não há profecia, o povo se corrompe (Pv 29.18). Habacuque viveu nesse período, provavelmente durante o reinado de Jeoaquim, em que a maldade se multiplicou em Judá; violência, ganância e idolatria são apenas alguns dos pecados que se agigantaram nesses dias (cf. Jr 22). Essa é a razão do profeta Habacuque ter ficado tão pesaroso com a situação de Judá (Hc 1.2-4).


FORMATO DO LIVRO

Uma possível divisão de Habacuque é: capítulo 1 fala de uma sentença espantosa e difícil de ser aceita, o 2 fala de uma revelação gloriosa de Deus, e o 3 fala de um cântico de adoração a esse Deus glorioso. Os comentaristas também ressaltam que o salmo no capítulo 3 é bem diferente do estilo dos capítulos 1 e 2. Embora o gênero literário permita entendermos essas duas partes do livro, há um sentido em que ele pode ser visto integralmente como um diálogo.

Habacuque relata a sua própria experiência, assim como Jonas possivelmente tenha sido o autor do livro que leva o seu nome, a fim de que os leitores aprendessem com a sua própria história. Esse relato acontece em formato de diálogo retratando uma jornada do “temor à fé", nas palavras de Martyn Lloyd-Jones. [16] Habacuque começa reclamando do pecado em Judá e pergunta a Deus até quando ele toleraria (1.1-4). Deus responde que levantaria os caldeus como instrumento do castigo sobre Judá (1.5-11). O profeta reage com mais preocupação, pois aparentemente Deus estaria proliferando mais injustiça (1.12-2.1). Deus responde mostrando que os caldeus também seriam punidos por causa de sua soberba, enquanto o justo viveria pela fé (2.2-5). Deus complementa essa revelação trazendo cinco palavras de maldição sobre os soberbos, demonstrando sua glória sobre todas as nações (2.6-20). A última reação de Habacuque é de louvor cantado expressando espanto diante de um Deus tão grandioso, mas também descanso em ser povo dele (3.1-19).

Hernandes Dias Lopes destaca o que julga ser um aspecto sui generis do profeta Habacuque. "Habacuque não confrontou o povo, mas a Deus. Em vez de falar à nação da parte de Deus, ele falou a Deus da parte da nação. Em vez de chamar a rebelde Jerusalém ao arrependimento, ele cobrou de Deus sua inação diante das calamidades que saltavam aos seus olhos.” [17] Em outras palavras, não conhecemos o profeta Habacuque à medida em que ele fala com o povo. Nós apenas o conhecemos na sua intimidade com o seu Deus.

O fato do livro de Habacuque ser um diálogo entre Deus e o profeta ajuda a criar um ambiente bem pessoal, repleto de franqueza quanto a dilemas existenciais, com o qual podemos nos identificar. O profeta encarna algumas das nossas crises mais profundas quanto ao sofrimento ao nosso redor. Ele pergunta coisas a Deus que alguns crentes teriam vontade de fazê-lo, mas temem pecar. Porém, ele também recebe palavras vindas de Deus que o transformam a tal ponto que despertam uma confiança inabalável. Habacuque termina o seu livro expressando essa confiança com palavras que estão entre as mais queridas e amadas de todo o Antigo Testamento.

Esse diálogo traz lições bem práticas. A primeira diz respeito à vida de oração. Podemos ser francos em nossas conversas a Deus, expressando nossas fraquezas e temores na vida. Devemos ter intimidade inigualável com ele. Essa intimidade é bastante convidativa para que conversemos mais e mais com o nosso Pai. Porém, não se trata de intimidade desrespeitosa. Por isso, a Escritura fala tanto do temor para com Deus. Quem se achega a Deus deve fazê-lo com temor por quem ele é. Ao contrário de nossa cultura contemporânea que opta ou por formalidade ou por descontração, a Escritura diz que intimidade e temor andam juntas: "A intimidade do Senhor é para os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança." (SI 25.14).

A segunda lição diz respeito ao culto, seja ele público ou privado. Devemos entender oculto como um diálogo entre Deus e o seu povo. A estrutura do culto, ou liturgia, deve seguir essa lógica. Falamos com Deus através de orações, cânticos e até de textos bíblicos que expressam nossa suplica ao Santíssimo. Deus fala conosco através de sua Palavra explicada e aplicada ao público, mas também através de textos bíblicos e cânticos que expressem a mensagem de Deus ao seu povo. Esse intercalar entre a voz de Deus e a voz do povo ensina-nos a responder melhor ao que o Senhor nos fala. Por exemplo, adoramos melhor quando contemplamos a grandeza desse Deus. Também somos fortalecidos quando nossas súplicas são seguidas de promessas divinas. Foi exatamente isso que aconteceu com Habacuque.


TEMAS TEOLÓGICOS

Há vários pontos teológicos trabalhados de maneira vivida nesse pequeno livro profético. Os sermões que se seguem lidarão com temas relacionados à pessoa de Deus, seus atributos gloriosos que moldam a relação do Santo com a pecaminosidade humana, mas também a relação de Redentor para com o seu povo. Além disso, as mensagens abordarão as atitudes dos fiéis para com Deus, isto é, a adoração e a confiança mesmo em meio a situações adversas. Também haverá espaço de reflexão sobre as relações humanas, a indignação para com injustiças sociais e a inversão de valores.

Entretanto, há três temas desse livro sagrado que merecem destaque nessa introdução pela proeminência dos mesmos e a riqueza de informações com que são tratados em Habacuque. Os três lemas são providência, oração, e juízo. É impressionante como um livro tão pequeno das Escrituras possa contribuir tão significativamente no entendimento dessas três doutrinas. De fato, toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para nos ensinar e corrigir (2 Tm 3.16), mesmo essa pequena porção.

A doutrina da providência é o tema mais explorado neste livro de reflexões em Habacuque. Essa doutrina nos leva a um entendimento adequado de Deus, seu controle na história, e nossa participação na mesma. Popularmente usamos a palavra "providência" de forma muito limitada, para destacar as "boas intervenções de Deus", por assim dizer. Ninguém sofre um acidente ou é assaltado e diz "providência de Deus" a não ser que tenha enxergado um livramento maior logo em seguida. Contudo, a doutrina da providência diz respeito ao governo de Deus sobre toda a criação, inclusive os detalhes de nossa vida, mesmo quando não enxergamos um bom propósito imediato para algo ruim que nos acontece. Deus não só controla fenômenos da natureza ou seres inanimados (ex: Jn 1), mas ele controla seres humanos dirigindo inclusive suas livres escolhas (veja Pv 16.9; 21.1), como veremos nos capítulos a seguir.

Tal controle impressionante não deve despertar incômodo e indignação de nossa parte, mas louvor, como despertou em Habacuque. Acredito verdadeiramente que quanto mais conhecemos o Deus a quem amamos, mais amamos ao Deus que conhecemos.

E lamentável que alguns evangélicos pareçam mais deistas em seu entendimento de Deus, do que bíblicos. O deísmo propõe um Deus relojoeiro, isto é, criador de um mecanismo capaz de funcionar por si só. Há muitos que sustentam uma idéia de um Deus que intervém, que age pontualmente em certos momentos da história fazendo algo maravilhoso e miraculoso, como se Deus só precisasse intervir ocasionalmente no relógio da sua criação. O Deus das Escrituras não é um Deus que intervém em certos momentos da história, ele é o Deus que age em toda a história, sempre conduzindo a conforme o seu propósito. [18] Deus não só se preocupa com pardais, flores e fios de cabelo (Mt 6.25-30; 10.29-30; Lc 21.18), mas ele também tem nas mãos as estratégias militares de super potências como a Babilônia, como nos mostra a história de Habacuque.

O soberano controle desse Deus é que nos inspira a orar, o segundo tema que merece destaque. Não oramos porque a oração tem poder em si mesma, mas porque o Deus que atende as orações é poderoso. [19] Quando os discípulos pedem a Jesus mais fé porque julgavam que não conseguiriam perdoar tanto, Jesus não confirma que a fé deles era pequena demais para tal feito. O Salvador os repreende dizendo que se a fé deles fosse minúscula, do tamanho da menor semente conhecida dos judeus, já seria suficiente para grandes feitos (Lc 17.3-10). Em outras palavras, o tamanho do feito não é proporcional ao tamanho de nossa fé, mas ao tamanho do Deus em quem cremos. Oramos porque confiamos no poder de Deus, não no poder de nossas súplicas. Na verdade, tem tudo a ver com fraqueza, dependência total de Deus. Habacuque começa o seu livro totalmente desacreditado no seu povo, suplicando em total dependência ao Deus supremo. Esse é o espírito da oração do justo.

Ainda sobre oração, a luta de Habacuque nos traz lições importantes sobre como orar. A Bíblia se preocupa não só com o fato de orarmos, mas como oramos e o que pedimos (Tg 4.2-3). As palavras do profeta dirigidas a Deus nesse livro ilustram tanto a postura de quem ora enquanto aflito como a postura daquele que foi confortado. Elas nos ensinam a ver o que esperar de Deus mesmo quando Ele não promete vida mansa e tranqüila. Elas também nos relembram que orações não são somente súplicas, mas excelentes momentos para expressarmos nossa adoração ao Deus grandioso. Vale lembrar que em Habacuque Deus é adorado inclusive pela sua disciplina para com o seu povo e pelo juízo sobre os ímpios.

Isso nos leva ao terceiro tema, o juízo divino sobre todos os homens. O capítulo dois de Habacuque é uma tremenda revelação acerca do que Deus faz com o justo que vive pela fé em contraste com o destino dos soberbos que vivem baseados em seus próprios feitos. A justiça retributiva de Deus não deixa impune aqueles que quebram os seus mandamentos. O tempo do julgamento de Deus pode permanecer um mistério, mas em algum momento o juízo virá, ainda que seja só no fim (SI 73). O sofrimento do justo é temporário, mas o castigo do ímpio é final. [20]

Existem duas lições preciosas quanto ao juízo final, uma em relação a Deus e outra em relação ao seu povo. O juízo final é uma declaração pública acerca do destino dos homens. Trata-se de uma declaração pública que glorifica a Deus, pois o que estava oculto foi manifesto aos homens. [21] Por essa razão é que Deus fala a Habacuque que esse será o tempo em que a glória do Senhor cobrirá a terra como as águas cobrem o mar (Hc 2.14). Em relação a nós que somos seu povo, o juízo futuro de Deus deveria ser objeto de nosso descanso presente. Habacuque sobrevive a despeito da disciplina de Deus sobre Judá e tal ensinamento deveria ser transmitido às gerações vindouras (Hc 2.2-4; 3.16-19). [22] Somos tão ansiosos por ver o que Deus fará por nós no presente para que continuemos a confiar nele que nos esquecemos do que ele prometeu fazer no futuro. Lutamos contra o nosso espírito imediatista e não encarnamos um descanso que deveria ser comum ao cristão. Falta-nos perspectiva escatológica. A história de Habacuque nos ensinará o bem que faz quando conseguimos trazer o futuro para o presente.


Triunfo da Fé: Lidando com o problema do sofrimento [Um estudo em Habacuque]. Heber Carlos Campos Jr. São José dos Campos: Editora Fiel, 2012. 159p.





[1] Essa era posição da tradição judaica. “O tratado midráxico Seder ‘Olam Rabbah (século 2 ou 3) coloca Habacuque no reinado de Manassés (695-642).” Luiz Saião. O Problema do Mal no Antigo Testamento: O caso de habacuque (São Paulo: Hagnos, 2012), 90. Também foi defendida por alguns  eruditos modernos tal como C. F. Keil, Commentary on the old Testament vol 10 – The Twlvw Minor Prophects, part 2 (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), 51-53. Mathew Henry afirma que essa conjectura judaica é provável não só pela pecaminosidade do período de manasses, mas também porque esse rei foi levado a Babilônia (veja 2 Cr 33.11) como sinal do que estava por vir.  Matthew Henry’s Commentary On The whole Bible vol 4 (Hendriksen, 1194), 1064.
[2] O termo “babilônico”, no decorrer da discussão de Habacuque, é sinônimo de “Caldeus”. Porém, é importante distinguir entre a etnia dos caldeus e a cidade da Babilônia que esteve nas mãos de povos diferentes no decorrer dos séculos. No tempo da profecia de Habacuque é a dinastia caldeia (chamada de “neo-babilônico” por acadêmicos) que controla a região da Babilônia. Por isso, “Caldeus” e “babilônicos” se tornam sinônimos a partir da queda da Assíria.
[3] Andrew E. Hill e John H Walton, A Survery oh the Old Testament (Zondervan: 2001, 2ª ed.), 515; C. Hassel Bullock, An Introduction to the Old Testament Prophetic Books (Moody, 1986), 182-183.
[4] Robert B. Chisholm, Jr., Interpreting the Minor Prophects (Zondervan, 1990), 183-184. Num livro publicado posteriormente, Chisholm afirma que talvez a melhor forma de entender o livro seja classificando-o como uma coleção de mensagens de períodos diferentes da carreira do profeta. O trecho de 1.5-11 teria sido proferido antes de 605 a.C., enquanto o final do livro (3.16-19) já se encaixaria melhor no início do sexto século antes de Cristo. Robert. B. Chisholm Jr., Handbook on the Prophects (Baker, 2002), 433. Esta visão sera descrita no sexto ponto de vista.
[5] O. Palmer Robertson, The Books of Nahum, Habakkuk, and Zephaniah – NICOT (Eerdmans, 1990), 37; idem, The Christ oh the prophects (Phillipsburg: P&R, 2004), 261; Hernandes Dias Lopes, Habacuque: Como trasnformar o desespero em cântico de vitória, Comentários Expositivos Hagnos (Hagnos, 2007), 16, 19; Stanley A. Ellisen, Conheça Melhor o Antigo Testamento (Vida, 1991), 320; Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento (Luz para o Caminho, 1995), 616. Posteriormente, Van Griningen muda a sua posição e data a profecia de Habacuque entre 605 e 598 a.C., seguindo a posição a ser descrita em seqüência (no. 5). Gerard Van Griningen, From Creation to Consummation vol 2(Dordt College Press, 2003), 197.
[6] George I. Robinson, The Twelve Minor Prophects (Baker, 1926), 120-121.
[7] William S. LaSor, David A. Hubbard, Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, trad. Lucy Yamakami (São Paulo: Vida Nova, 1999), 349.
[8] Roland Kenneth Harrison, Introduction to the Old Testament (Eerdmans, 1969), 936.
[9] Sayão, O Problema do Mal no Antigo Testamento, 93.
[10] Carl E. Armeding, “Habakkuk”, The Expositor’s Bible Commentary vol 7 (Zondervan, 1985), 493; F. F. Bruce, “Habakkuk”, The Minor Prophects vol 2, ed. Thomas Deward McComiskey (Baker, 1993), 834; Chisholm, Handbook on the prophects, 433.
[11] Bruce, “Habakkuk”, 847.
[12] Robertson, The Books of Nahum, Habakkuk, and Zephaniah, 5.
[13] Cf Heber Carlos de Campos. “Crescimento de Igreja: com reforma ou com reavivamento?” Fides Reformata nº 1, vol 1 (1996): 34-47. John Bright. Historia de Israel (São Paulo: Paulus, 1978, 6ª edição), 426, 427, 430.
[14] Bright, História de Isarel, 427.
[15] Bright, História de Isarel, 438-440.
[16] Hernandes Dias Lopes articula assim: “O profeta, que começa o livro chorando, termina-o cantando. Seu cântico não é em virtude da mudança circunstancial. As circunstâncias continuavam pardacentas, mas a verdade de Deus enchera sua alma de esperança”. Lopes, Habacuque, 22.
[17] Lopes, Habacuque, 17
[18] John D. Legg. When Don’t Understand: God’s ways Jonah and Hanakkuk (evangelical Press), 56
[19] Legg, When Don’t Understand, 57.
[20] Lopes, Habacuque, 27-28.
[21] A Confissão de Fé de Westminster (XXXIII.2) afirma: “O fim que Deus tem em vista, determinando esse dia, é manifestar a sua glória – a glória de sua misericórdia na eterna salvação dos eleitos, e a glória de sua justiça na condenação dos réprobos, que são perversos e desobedientes.”
[22] Robertson, The Books of Nahum, Habakkuk, and Zephaniah, 22

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