quarta-feira, 19 de julho de 2017

NOSSA HERANÇA REFORMADA - O JUSTO VIVERÁ PELA FÉ


O ÚLTIMO DIA DE OUTUBRO marca outro aniversário do nascimento da Reforma. A Reforma é formalmente datada de 31 de outubro de 1517 - o dia em que Martinho Lutero pregou na porta de uma capela em Wüttenberg as Noventa e Cinco Teses que ele havia escrito. Essas teses foram traduzidas dentro de semanas para a maioria das línguas europeias, e se espalhou por toda a Europa em poucos meses. O Senhor havia estado amadurecendo a Europa para a Reforma, e quando essas Teses foram espalhadas no exterior, as pessoas comuns passaram-nas de mão em mão. Pela graça de Deus, a Reforma varreu grande parte da Europa.

Hoje nós somos filhos e filhas da Reforma, pelo menos em termos de nossa herança. Nós temos que também examinar se somos filhos e filhas da Reforma em nossas crenças e na prática diária de nossas vidas. É crítico que examinemos o que Deus fez nas eras passadas à luz de Sua Palavra, e então perguntemos a nós mesmos: “Estamos sendo verdadeiros quanto à herança bíblica Reformada?” O Dia da Reforma é designado para reavivar em nós uma apreciação não apenas pelo que Deus fez no passado, mas também para examinar o que Ele está fazendo conosco, com nossas famílias, com nossa congregação no presente, assim como para examinar o que nós estamos fazendo com Suas grandes verdades reformadas.

Agora, em que consiste a grandeza da Reforma de forma mais suprema?

Nossa resposta deve ser muito simples: consiste na restauração das Sagradas Escrituras como guia único, inerrante e autoritativo para a fé e prática da igreja e dos crentes individualmente. Nossa herança reformada é a herança das Escrituras. Com a herança das Escrituras, uma grande herança se desenvolveu, que afetou a igreja de forma espiritual em muitas formas que nós admitimos como verdadeiras hoje.

O retorno às Escrituras ao primeiro lugar trouxe o retorno da pregação bíblica. A pregação expositiva uma vez mais ganhou a primazia no culto, em preferência a todos os outros tipos de liturgia.

O retorno à Escritura também serviu para promover a sã doutrina. Catecismos e padrões de doutrina (símbolos de fé), ricos em conteúdo, jorraram na trilha de um retorno às Sagradas Escrituras. Em nossa tradição holandesa, claro, nós temos aprendido a estimar o Catecismo de Heidelberg, a Confissão Belga, os Cânones de Dort – nossos padrões de doutrina (símbolos de fé) da Europa Continental. Na tradição britânica, os padrões de Westminster: a Confissão de Fé de Westminster, o Breve Catecismo e o Catecismo Maior; na tradição suíça, a Primeira Confissão Helvética e a Segunda Confissão Helvética – todas essas são grandes confissões, levando a mente a um retorno às doutrinas das Escrituras. Dessa forma, as doutrinas apostólicas do Novo Testamento e a doutrina de Agostinho com respeito à salvação tornaram a vir à frente com vibrante realidade na vida das pessoas. Isso ocorreu conforme as pessoas iam adquirindo a Bíblia; liam-na, buscavam-na, e descobriam as doutrinas da graça somente, da fé somente, da Escritura somente, de Cristo somente e da glória de Deus somente. Milhares abraçaram essas verdades pelo poder do Espírito; viveram-nas; verteram seu sangue por elas. Isso é a nossa herança hoje.

O retorno às Escrituras também resultou na reestruturação da Igreja. A hierarquia de cerca de quinze ofícios inventados pelo Catolicismo Romano foi rejeitada, e a Igreja retornou a uma organização bíblica simples e aos princípios bíblicos de disciplina.

O retorno à Escritura também trouxe de volta a renovação de uma vida piedosa e isso no fundamento correto da gratidão e não do mérito. As boas obras agora passaram a ser vistas como aquilo que flui da justificação e não como aquilo que leva à justificação.

O retorno à Escritura também promoveu a educação cristã. Escolas foram fundadas para ensinar as verdades escriturísticas. Educadores cristãos objetivaram ensinar crianças pequenas a ler a Bíblia. Como Lutero uma vez disse: “Um menino do campo armado com uma Bíblia em uma mão e meu catecismo na outra seria capaz de defender as verdades da Palavra de Deus contra prelados e bispos e até mesmo contra o próprio papa”. A dependência do sacerdote local para a interpretação da Escritura foi quase abolida. Tudo isso veio à tona com o retorno da Escritura ao
homem comum, abençoado pelo Espírito Santo.

Acima de tudo, o retorno da Escritura trouxe de volta a glória de Deus no meio de Sua igreja. As tradições, ornamentos e ídolos dos homens deram passagem à Palavra de Deus. Igrejas foram caiadas, ídolos foram quebrados. Deus somente era adorado. O homem foi humilhado e Deus exaltado.

O retorno à Escritura trouxe de volta especialmente aqueles conceitos bíblicos que estão no centro da mensagem da Escritura, particularmente a doutrina da justificação pela graciosa fé somente. Isso é o que distingue os precursores da Reforma dos reformadores. Por que não chamamos João Wycliffe, João Huss, Pedro Valdo, Gregório de Rimini, Thomas Bradwardine, e outros precursores de reformadores? Porque eles nunca chegaram a ter uma compreensão clara desta doutrina da justificação pela fé somente.

Consequentemente, foi por volta de 1513, quando Martinho Lutero tinha cerca de trinta anos, que a Reforma nasceu em seu coração, porque então as palavras de nosso texto, “o justo viverá por fé” abriram seu coração ao evangelho e puseram de cabeça para baixo seu ensino anterior que enfatizava que a salvação vinha, pelo menos parcialmente, através do esforço humano.

O justo viverá por fé é o evangelho em poucas palavras. Paulo diz em Romanos 1 que é isso que ele estava ansioso para trazer aos cristãos em Roma, mas também para pregar esse evangelho em Roma a judeus e gentios. Por anos Paulo tinha querido vir à assim chamada cidade eterna, a cidade de Roma, mas toda vez algo parecia acontecer que tornava isso impossível para ele. Temendo que os romanos começassem a pensar que ele não tinha nenhum desejo de estar com eles, Paulo escreveu esta notável epístola na qual, talvez mais do que em qualquer outro livro da Bíblia, as doutrinas da graça gratuita, livre e soberana, são reveladas sistemática, criteriosa e persuasivamente, passo a passo, seguindo a ordem da miséria, libertação e gratidão.

A miséria do homem é exposta nos capítulos de 1 a 3; libertação, nos capítulos de 4 a 8; gratidão, nos capítulos de 9 a 16. O livro de Romanos, mais do que qualquer outro no começo da Reforma, foi lido e relido. Vários comentários foram escritos sobre ele. Costuma-se dizer, em parte corretamente, que ninguém poderia ser um reformador verdadeiro se não tivesse escrito um comentário sobre Romanos. O livro de Romanos representa o coração do evangelho, pois ali nós vemos as gloriosas verdades do evangelho expostas vívida e poderosamente.

Paulo escreveu aos romanos para lhes explicar o evangelho. Após uma poderosa introdução, ele lhes escreve, por assim dizer, “Por favor, não pensem que eu estou tentando evitar vocês porque eu esteja com medo de vir à cidade culta de vocês; pois ‘eu não me envergonho do evangelho de Cristo’. Eu não me envergonho de levá-lo a nenhum lugar, e nem mesmo às pessoas cultas em Roma”. E, claro, ao dizer que ele não se envergonhava, Paulo está usando um recurso literário; ele está usando um negativo para expressar um positivo. Ele está dizendo, por assim dizer: “Eu ficaria contente em levar o evangelho a vocês, pois eu me glorio nesse evangelho, eu me vanglorio nesse evangelho. Eu estou pronto para pregar esse evangelho em todo lugar, porque ele é a melhor notícia que o mundo já ouviu. É o evangelho, a boa-nova, a gloriosa notícia de Jesus Cristo. É o poder de Deus para a salvação de judeus e gentios. Portanto, eu não me envergonho dele, mas me glorio no evangelho de Deus. Queridos romanos, esse é o tipo de evangelho que vocês precisam”. Paulo continua dizendo em Romanos 1 que você e eu, congregação, também precisamos do tipo de justiça que esse evangelho apresenta, a saber, a justiça de Deus.

Ao falar aqui da justiça de Deus, Paulo não quer dizer, neste caso particular, o atributo da justiça de Deus. Isso é como Lutero entendeu isso no começo. Ao ler Romanos 1:16-17 em sua cela no monastério, Lutero se tornou muito atribulado. A justiça de Deus foi uma fonte de grande temor para ele. Deus era mais um tirano do que um Deus de amor e misericórdia. Ele não conseguia entender como Paulo podia dizer que isso era sua glória, sua alegria, e que ele podia viver pela justiça de Deus — “Visto que a justiça de Deus se revela de fé em fé”. Lutero agonizava por causa do que isso queria dizer. Ele lutava e dizia a si mesmo: “Como eu posso viver pela justiça de Deus, quando eu tenho gasto toda a minha vida tentando evitar a justiça de Deus, porque a justiça de Deus deve me condenar?”.

Lutero tinha passado vários anos tentando alcançar as exigências da justiça divina. Ele tinha dormido no chão de cimento por muitas noites seguidas. Ele tinha negado a si mesmo todo tipo de privilégios básicos da vida, esperando que de alguma forma pudesse satisfazer a Deus. Ele se voltou para o misticismo; tentou se confessar com um sacerdote. Cansado de suas confissões sem fim, o sacerdote finalmente lhe disse: “Lutero, por que você não dá uma saída e comete algum pecado real uma vez, e depois venha comigo fazer a confissão!”. Lutero estava sendo levado pelo Espírito Santo a ver seu pecado habitando em seu coração e ainda não sabia que a solução para todo pecado estava exclusivamente na graça gratuita de Deus. Ele pensou que a solução envolvia arrumar sua vida e estabelecer sua própria justiça perante a justiça de Deus. E assim ele veio a temer progressivamente a justiça de Deus.

Por dez anos Lutero lutou com a justiça de Deus em face de sua própria injustiça. Ele tinha um conselheiro espiritual de nome Johann Staupitz que permaneceu na Igreja Católica Romana, mas que tinha, ele mesmo, sido liberto pelo sangue de  Jesus Cristo somente. Staupitz com freqüência encontrava Lutero caminhando para frente e para trás em sua cela, lamentando e gemendo por seus pecados. Uma vez ele disse a Lutero: “Seus votos nunca serão suficientes. A salvação somente é encontrada fora de si mesmo, em Jesus Cristo”. Uma outra vez, quando Lutero estava andando na cela, pressionando suas mãos e confessando: “Meus pecados, meus pecados, meus pecados!”, Staupitz simplesmente citou o Credo dos Apóstolos: “Eu creio no perdão dos pecados”, e foi embora. Essas coisas deixaram uma profunda impressão em Lutero, mas ele ainda não podia entender como um Deus santo e justo, que não poderia ter nenhuma compaixão com o pecado, pudesse alguma vez olhar para ele com misericórdia.

Alguma vez já foi esta a sua luta, amigo querido? Não, eu não estou dizendo que precisamos experimentar dez anos de luta como Martinho Lutero experimentou. O próprio Lutero não diria isso. Uma vez ele escreveu à sua congregação: “Eu estou lhes contando sobre minhas lutas não porque eu queira que vocês as imitem, mas porque eu gostaria de livrá-los delas”. E então ele prosseguiu dizendo algo assim: “Se vocês me tomarem como padrão, vocês estarão sendo tolos. Fujam diretamente, exatamente como vocês estão, com todos os seus pecados e todas as suas necessidades para a justiça comprada com o sangue do Filho de Deus”.

Finalmente, as palavras de nosso texto irromperam para Lutero quando ele tinha cerca de trinta anos. Foi como se num momento o evangelho fosse desvendado perante seus olhos, e ele finalmente viu que Jesus Cristo é tudo para a justiça de um pecador; que Ele fez tudo para um pecador; que Ele pagou o preço do pecado; que Ele obedeceu à Lei. Mais tarde ele escreveu que foi como se sua alma “traspassasse os portões abertos do paraíso”. Sua alma foi posta em liberdade em
Cristo.

Hoje, se alguém vai expor uma estátua que tenha estado oculta até então, há sempre uma data estabelecida para sua mostra conforme o escultor se aproxima de sua conclusão. Uma cerimônia oficial de exposição acontece onde todos possam vê-la pela primeira vez. Similarmente, quando Lutero viu que o justo viverá por fé e não por obras; que a fé crê na mensagem do evangelho de que Jesus fez tudo por um pecador que não pode fazer nada – quando ele viu as verdades básicas do evangelho, e sua pobre alma foi lançada na justiça de Cristo como sua única e suficiente esperança por todo o tempo e eternidade, foi como se um lençol ou véu tivesse sido retirado de sobre o evangelho. Pela primeira vez ele viu com clareza o evangelho da graça de Deus na pessoa de Jesus Cristo que é tudo em todos por pecadores que não são de forma alguma nada.

Vocês veem congregação, há duas coisas que vocês e eu nunca seremos capazes de fazer e que deve ser feita por nós: primeiro, nós nunca poderemos cumprir a Lei, e nós a devemos cumprir – seja por nós mesmos ou por outro fazendo isso por nós, porque Deus não permitirá nos céus ninguém que tenha transgredido a Lei e não tenha sido perdoado; segundo, nós nunca poderemos pagar a punição de nossos pecados, por eles exigem um inferno eterno. O que Lutero viu naqueles momentos foi que, através da justiça do evangelho, Cristo fez aquelas duas coisas. Ele obedeceu à Lei perfeitamente por seu povo; isto é o que os reformadores posteriormente chamariam de Sua obediência ativa. E Cristo pagou por todos os pecados de seu povo; isto é o que os reformadores posteriormente chamariam de Sua obediência passiva. Através dessas duas coisas Jesus satisfez a
justiça de Deus. Dessa forma, crendo graciosamente nessas verdades, um pobre pecador pode encontrar toda a sua justiça na justiça de Cristo Jesus, “visto que a justiça se revela de fé em fé; como está escrito: o justo viverá pela fé”. Lutero viu que aquela justiça estava disponível; sim, estava completa. Ele viu pela primeira vez o que Jesus queria dizer quando disse na cruz: “Está consumado”.

Mas ele também viu que aquela justiça deve ser recebida pela fé, pela fé graciosamente operada pelo Espírito. Ele viu que aquela justiça recebida pela fé seria plenamente aceitável para a vida toda do crente, não apenas para torná-lo reto diante de Deus, mas também para mantê-lo reto diante de Deus. “O justo viverá por fé”. Os justos não apenas são salvos pela fé; eles vivem pela fé. Lutero viu que o único modo de ser um cristão era viver pela fé.

Hoje nós também vivemos na dispensação do Novo Testamento, quando o véu está retirado; Cristo é exposto a todos que vêm ao evangelho. Mas nossos olhos são cegos por natureza; nós não temos a fé que precisamos para crer no evangelho; nós não vemos que tudo já está cumprido. Consequentemente, nós nos mantemos ocupados, cuidando de estabelecer nossa própria justiça.

Pela graça, Lutero, em sua assim chamada experiência da torre, abraçou a justiça de Jesus Cristo, como ele diria mais tarde, em seu pronome pessoal. Ele podia agora dizer: “Jesus é minha justiça; a salvação se tornou realidade para mim”. Lutero viu a justiça de Deus com os olhos da fé através das Escrituras. Mais tarde ele escreveria:

“Ali estava eu em minha torre, lendo e orando. Eu labutei diligentemente e ansiosamente para entender essas palavras de Paulo – ‘a justiça de Deus revela-se no evangelho’. Eu busquei por muito tempo e bati ansiosamente, pois a expressão a justiça de Deus bloqueava meu caminho. Quanto mais eu lia essa expressão, eu desejava que Deus não tivesse tornado o evangelho conhecido de modo algum. Mas, então, um dia quando eu estava meditando na torre, eu vi a diferença entre lei e evangelho pela primeira vez em minha vida. A luz penetrou e, assim como antes eu havia odiado a expressão ‘a justiça de Deus’, agora eu a considerava como a palavra mais reconfortante em toda a Bíblia. Falando a verdade, essa linguagem de São Paulo era para mim a verdadeira porta do paraíso”.

Dessa forma Lutero experimentou duas coisas que estão no coração da Reforma, duas coisas que temos que saber: (1) Nós precisamos conhecer nossa injustiça não-coberta, e (2) nós precisamos conhecer a justiça de Jesus Cristo descoberta.

 “Visto que a justiça de Deus se revela de fé em fé ... O justo viverá por fé”. Isto se tornou a marca da Reforma que foi espalhada por muitos outros lugares e povos. Essa doutrina erguida por Calvino e Zwinglio na Suíça; por Knox na Escócia; por Bullinger, Beza, Bucer, e muitos outros. Essa doutrina custou mártires; centenas foram queimadas na estaca. Essa doutrina por sua vez se tornou a semente da igreja.
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Joel Beeke. Nossa Herança Reformada – O Justo viverá por fé. São Paulo: Editora Os Puritanos, 2005, p.9-22

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