O ÚLTIMO DIA DE OUTUBRO marca outro aniversário do nascimento da
Reforma. A Reforma é formalmente datada de 31 de outubro de 1517 - o dia em que
Martinho Lutero pregou na porta de uma capela em Wüttenberg as Noventa e Cinco
Teses que ele havia escrito. Essas teses foram traduzidas dentro de semanas
para a maioria das línguas europeias, e se espalhou por toda a Europa em poucos
meses. O Senhor havia estado amadurecendo a Europa para a Reforma, e quando
essas Teses foram espalhadas no exterior, as pessoas comuns passaram-nas de mão
em mão. Pela graça de Deus, a Reforma varreu grande parte da Europa.
Hoje nós somos filhos e filhas da Reforma, pelo menos em termos de
nossa herança. Nós temos que também examinar se somos filhos e filhas da
Reforma em nossas crenças e na prática diária de nossas vidas. É crítico que
examinemos o que Deus fez nas eras passadas à luz de Sua Palavra, e então
perguntemos a nós mesmos: “Estamos sendo verdadeiros quanto à herança bíblica
Reformada?” O Dia da Reforma é designado para reavivar em nós uma apreciação
não apenas pelo que Deus fez no passado, mas também para examinar o que Ele
está fazendo conosco, com nossas famílias, com nossa congregação no presente,
assim como para examinar o que nós estamos fazendo com Suas grandes verdades
reformadas.
Agora, em que consiste a grandeza da Reforma
de forma mais suprema?
Nossa resposta deve ser muito simples: consiste na restauração das
Sagradas Escrituras como guia único, inerrante e autoritativo para a fé e
prática da igreja e dos crentes individualmente. Nossa herança reformada é a
herança das Escrituras. Com a herança das Escrituras, uma grande herança se
desenvolveu, que afetou a igreja de forma espiritual em muitas formas que nós
admitimos como verdadeiras hoje.
O retorno às Escrituras ao primeiro lugar trouxe o retorno da pregação
bíblica. A pregação expositiva uma vez mais ganhou a primazia no culto, em
preferência a todos os outros tipos de liturgia.
O retorno à Escritura também serviu para promover a sã doutrina.
Catecismos e padrões de doutrina (símbolos de fé), ricos em conteúdo, jorraram
na trilha de um retorno às Sagradas Escrituras. Em nossa tradição holandesa,
claro, nós temos aprendido a estimar o Catecismo de Heidelberg, a Confissão
Belga, os Cânones de Dort – nossos padrões de doutrina (símbolos de fé) da
Europa Continental. Na tradição britânica, os padrões de Westminster: a Confissão
de Fé de Westminster, o Breve Catecismo e o Catecismo Maior; na tradição suíça,
a Primeira Confissão Helvética e a Segunda Confissão Helvética – todas essas
são grandes confissões, levando a mente a um retorno às doutrinas das
Escrituras. Dessa forma, as doutrinas apostólicas do Novo Testamento e a
doutrina de Agostinho com respeito à salvação tornaram a vir à frente com
vibrante realidade na vida das pessoas. Isso ocorreu conforme as pessoas iam adquirindo a Bíblia; liam-na,
buscavam-na, e descobriam as doutrinas da graça somente, da fé somente, da
Escritura somente, de Cristo somente e da glória de Deus somente. Milhares
abraçaram essas verdades pelo poder do Espírito; viveram-nas; verteram seu
sangue por elas. Isso é a nossa herança hoje.
O retorno às Escrituras também resultou na reestruturação da Igreja. A
hierarquia de cerca de quinze ofícios inventados pelo Catolicismo Romano foi
rejeitada, e a Igreja retornou a uma organização bíblica simples e aos
princípios bíblicos de disciplina.
O retorno à Escritura também trouxe de volta a renovação de uma vida
piedosa e isso no fundamento correto da gratidão e não do mérito. As boas obras
agora passaram a ser vistas como aquilo que flui da justificação e não como
aquilo que leva à justificação.
O retorno à Escritura também promoveu a educação cristã. Escolas foram
fundadas para ensinar as verdades escriturísticas. Educadores cristãos
objetivaram ensinar crianças pequenas a ler a Bíblia. Como Lutero uma vez
disse: “Um menino do campo armado com uma Bíblia em uma mão e meu catecismo na
outra seria capaz de defender as verdades da Palavra de Deus contra prelados e
bispos e até mesmo contra o próprio papa”. A dependência do sacerdote local
para a interpretação da Escritura foi quase abolida. Tudo isso veio à tona com
o retorno da Escritura ao
homem comum, abençoado pelo Espírito Santo.
Acima de tudo, o retorno da Escritura trouxe de volta a glória de Deus
no meio de Sua igreja. As tradições, ornamentos e ídolos dos homens deram
passagem à Palavra de Deus. Igrejas foram caiadas, ídolos foram quebrados. Deus
somente era adorado. O homem foi humilhado e Deus exaltado.
O retorno à Escritura trouxe de volta especialmente aqueles conceitos
bíblicos que estão no centro da mensagem da Escritura, particularmente a
doutrina da justificação pela graciosa fé somente. Isso é o que distingue os
precursores da Reforma dos reformadores. Por que não chamamos João Wycliffe,
João Huss, Pedro Valdo, Gregório de Rimini, Thomas Bradwardine, e outros
precursores de reformadores? Porque eles nunca chegaram a ter uma compreensão
clara desta doutrina da justificação pela fé somente.
Consequentemente, foi por volta de 1513, quando Martinho Lutero tinha
cerca de trinta anos, que a Reforma nasceu em seu coração, porque então as palavras
de nosso texto, “o justo viverá por fé” abriram seu coração ao evangelho e puseram
de cabeça para baixo seu ensino anterior que enfatizava que a salvação vinha,
pelo menos parcialmente, através do esforço humano.
O justo viverá por fé é o evangelho em poucas palavras. Paulo diz
em Romanos 1 que é isso que ele estava ansioso para trazer aos cristãos em Roma,
mas também para pregar esse evangelho em Roma a judeus e gentios. Por anos
Paulo tinha querido vir à assim chamada cidade eterna, a cidade de Roma, mas
toda vez algo parecia acontecer que tornava isso impossível para ele. Temendo
que os romanos começassem a pensar que ele não tinha nenhum desejo de estar com
eles, Paulo escreveu esta notável epístola na qual, talvez mais do que em
qualquer outro livro da Bíblia, as doutrinas da graça gratuita, livre e soberana,
são reveladas sistemática, criteriosa e persuasivamente, passo a passo,
seguindo a ordem da miséria, libertação e gratidão.
A miséria do homem é exposta nos capítulos de 1 a 3; libertação, nos
capítulos de 4 a 8; gratidão, nos capítulos de 9 a 16. O livro de Romanos, mais
do que qualquer outro no começo da Reforma, foi lido e relido. Vários
comentários foram escritos sobre ele. Costuma-se dizer, em parte corretamente,
que ninguém poderia ser um reformador verdadeiro se não tivesse escrito um comentário
sobre Romanos. O livro de Romanos representa o coração do evangelho, pois ali
nós vemos as gloriosas verdades do evangelho expostas vívida e poderosamente.
Paulo escreveu aos romanos para lhes explicar o evangelho. Após uma
poderosa introdução, ele lhes escreve, por assim dizer, “Por favor, não pensem
que eu estou tentando evitar vocês porque eu esteja com medo de vir à cidade
culta de vocês; pois ‘eu não me envergonho do evangelho de Cristo’. Eu não me
envergonho de levá-lo a nenhum lugar, e nem mesmo às pessoas cultas em Roma”.
E, claro, ao dizer que ele não se envergonhava, Paulo está usando um recurso literário;
ele está usando um negativo para expressar um positivo. Ele está dizendo, por
assim dizer: “Eu ficaria contente em levar o evangelho a vocês, pois eu me
glorio nesse evangelho, eu me vanglorio nesse evangelho. Eu estou pronto para pregar
esse evangelho em todo lugar, porque ele é a melhor notícia que o mundo já
ouviu. É o evangelho, a boa-nova, a gloriosa notícia de Jesus Cristo. É o poder
de Deus para a salvação de judeus e gentios. Portanto, eu não me envergonho
dele, mas me glorio no evangelho de Deus. Queridos romanos, esse é o tipo de
evangelho que vocês precisam”. Paulo continua dizendo em Romanos 1 que você e
eu, congregação, também precisamos do tipo de justiça que esse evangelho
apresenta, a saber, a justiça de Deus.
Ao falar aqui da justiça de Deus, Paulo não quer dizer, neste caso
particular, o atributo da justiça de Deus. Isso é como Lutero entendeu
isso no começo. Ao ler Romanos 1:16-17 em sua cela no monastério, Lutero se
tornou muito atribulado. A justiça de Deus foi uma fonte de grande temor para ele.
Deus era mais um tirano do que um Deus de amor e misericórdia. Ele não
conseguia entender como Paulo podia dizer que isso era sua glória, sua alegria,
e que ele podia viver pela justiça de Deus — “Visto que a justiça de Deus se revela de fé em fé”. Lutero
agonizava por causa do que isso queria dizer. Ele lutava e dizia a si mesmo:
“Como eu posso viver pela justiça de Deus, quando eu tenho gasto toda a minha
vida tentando evitar a justiça de Deus, porque a justiça de Deus deve me condenar?”.
Lutero tinha passado vários anos tentando alcançar as exigências da
justiça divina. Ele tinha dormido no chão de cimento por muitas noites seguidas.
Ele tinha negado a si mesmo todo tipo de privilégios básicos da vida, esperando
que de alguma forma pudesse satisfazer a Deus. Ele se voltou para o misticismo;
tentou se confessar com um sacerdote. Cansado de suas confissões sem fim, o
sacerdote finalmente lhe disse: “Lutero, por que você não dá uma saída e comete
algum pecado real uma vez, e depois venha comigo fazer a confissão!”. Lutero
estava sendo levado pelo Espírito Santo a ver seu pecado habitando em seu coração e ainda não
sabia que a solução para todo pecado estava exclusivamente na graça gratuita de
Deus. Ele pensou que a solução envolvia arrumar sua vida e estabelecer sua
própria justiça perante a justiça de Deus. E assim ele veio a temer progressivamente
a justiça de Deus.
Por dez anos Lutero lutou com a justiça de Deus em face de sua própria
injustiça. Ele tinha um conselheiro espiritual de nome Johann Staupitz que
permaneceu na Igreja Católica Romana, mas que tinha, ele mesmo, sido liberto
pelo sangue de Jesus Cristo somente.
Staupitz com freqüência encontrava Lutero caminhando para frente e para trás em
sua cela, lamentando e gemendo por seus pecados. Uma vez ele disse a Lutero:
“Seus votos nunca serão suficientes. A salvação somente é encontrada fora de si
mesmo, em Jesus Cristo”. Uma outra vez, quando Lutero estava andando na cela,
pressionando suas mãos e confessando: “Meus pecados, meus pecados, meus
pecados!”, Staupitz simplesmente citou o Credo dos Apóstolos: “Eu creio no
perdão dos pecados”, e foi embora. Essas coisas deixaram uma profunda impressão
em Lutero, mas ele ainda não podia entender como um Deus santo e justo, que não
poderia ter nenhuma compaixão com o pecado, pudesse alguma vez olhar para ele
com misericórdia.
Alguma vez já foi esta a sua luta, amigo querido? Não, eu não estou
dizendo que precisamos experimentar dez anos de luta como Martinho Lutero
experimentou. O próprio Lutero não diria isso. Uma vez ele escreveu à sua
congregação: “Eu estou lhes contando sobre minhas lutas não porque eu queira
que vocês as imitem, mas porque eu gostaria de livrá-los delas”. E então ele prosseguiu
dizendo algo assim: “Se vocês me tomarem como padrão, vocês estarão sendo
tolos. Fujam diretamente, exatamente como vocês estão, com todos os seus
pecados e todas as suas necessidades para a justiça comprada com o sangue do
Filho de Deus”.
Finalmente, as palavras de nosso texto irromperam para Lutero quando
ele tinha cerca de trinta anos. Foi como se num momento o evangelho fosse desvendado
perante seus olhos, e ele finalmente viu que Jesus Cristo é tudo para a justiça
de um pecador; que Ele fez tudo para um pecador; que Ele pagou o preço do
pecado; que Ele obedeceu à Lei. Mais tarde ele escreveu que foi como se sua
alma “traspassasse os portões abertos do paraíso”. Sua alma foi posta em
liberdade em
Cristo.
Hoje, se alguém vai expor uma estátua que tenha estado oculta até
então, há sempre uma data estabelecida para sua mostra conforme o escultor se
aproxima de sua conclusão. Uma cerimônia oficial de exposição acontece onde
todos possam vê-la pela primeira vez. Similarmente, quando Lutero viu que o
justo viverá por fé e não por obras; que a fé crê na mensagem do evangelho de que
Jesus fez tudo por um pecador que não pode fazer nada – quando ele viu as
verdades básicas do evangelho, e sua pobre alma foi lançada na justiça de
Cristo como sua única e suficiente esperança por todo o tempo e eternidade, foi
como se um lençol ou véu tivesse sido retirado de sobre o evangelho. Pela
primeira vez ele viu com clareza o evangelho da graça de Deus na pessoa de
Jesus Cristo que é tudo em todos por pecadores que não são de forma alguma
nada.
Vocês veem congregação, há duas coisas que vocês e eu nunca seremos
capazes de fazer e que deve ser feita por nós: primeiro, nós nunca poderemos
cumprir a Lei, e nós a devemos cumprir – seja por nós mesmos ou por outro
fazendo isso por nós, porque Deus não permitirá nos céus ninguém que tenha
transgredido a Lei e não tenha sido perdoado; segundo, nós nunca poderemos
pagar a punição de nossos pecados, por eles exigem um inferno eterno. O que
Lutero viu naqueles momentos foi que, através da justiça do evangelho, Cristo
fez aquelas duas coisas. Ele obedeceu à Lei perfeitamente por seu povo; isto é
o que os reformadores posteriormente chamariam de Sua obediência ativa.
E Cristo pagou por todos os pecados de seu povo; isto é o que os reformadores posteriormente
chamariam de Sua obediência passiva. Através dessas duas coisas Jesus
satisfez a
justiça de Deus. Dessa forma, crendo graciosamente nessas verdades, um
pobre pecador pode encontrar toda a sua justiça na justiça de Cristo Jesus, “visto
que a justiça se revela de fé em fé; como está escrito: o justo viverá pela fé”.
Lutero viu que aquela justiça estava disponível; sim, estava completa.
Ele viu pela primeira vez o que Jesus queria dizer quando disse na cruz: “Está
consumado”.
Mas ele também viu que aquela justiça deve ser recebida pela fé, pela
fé graciosamente operada pelo Espírito. Ele viu que aquela justiça recebida pela
fé seria plenamente aceitável para a vida toda do crente, não apenas para
torná-lo reto diante de Deus, mas também para mantê-lo reto diante de Deus. “O
justo viverá por fé”. Os justos não apenas são salvos pela fé; eles vivem
pela fé. Lutero viu que o único modo de ser um cristão era viver pela fé.
Hoje nós também vivemos na dispensação do Novo Testamento, quando o véu
está retirado; Cristo é exposto a todos que vêm ao evangelho. Mas nossos olhos
são cegos por natureza; nós não temos a fé que precisamos para crer no
evangelho; nós não vemos que tudo já está cumprido. Consequentemente, nós nos
mantemos ocupados, cuidando de estabelecer nossa própria justiça.
Pela graça, Lutero, em sua assim chamada experiência da torre, abraçou
a justiça de Jesus Cristo, como ele diria mais tarde, em seu pronome pessoal.
Ele podia agora dizer: “Jesus é minha justiça; a salvação se tornou
realidade para mim”. Lutero viu a justiça de Deus com os olhos da fé através
das Escrituras. Mais tarde ele escreveria:
“Ali estava eu em minha torre,
lendo e orando. Eu labutei diligentemente e ansiosamente para entender essas
palavras de Paulo – ‘a justiça de Deus revela-se no evangelho’. Eu busquei por muito
tempo e bati ansiosamente, pois a expressão
a justiça de Deus bloqueava meu caminho. Quanto mais eu lia essa
expressão, eu desejava que Deus não tivesse tornado o evangelho conhecido de modo
algum. Mas, então, um dia quando eu estava meditando na torre, eu vi a
diferença entre lei e evangelho pela primeira vez em minha vida. A luz penetrou
e, assim como antes eu havia odiado a expressão ‘a justiça de Deus’, agora eu a
considerava como a palavra mais reconfortante em toda a Bíblia. Falando a
verdade, essa linguagem de São Paulo era para mim a
verdadeira porta do paraíso”.
Dessa forma Lutero experimentou duas coisas que estão no coração da
Reforma, duas coisas que temos que saber: (1) Nós precisamos conhecer nossa
injustiça não-coberta, e (2) nós precisamos conhecer a justiça de Jesus Cristo
descoberta.
“Visto que a justiça de Deus
se revela de fé em fé ... O justo viverá por fé”. Isto se tornou a marca da
Reforma que foi espalhada por muitos outros lugares e povos. Essa doutrina
erguida por Calvino e Zwinglio na Suíça; por Knox na Escócia; por Bullinger, Beza, Bucer, e muitos outros. Essa doutrina custou mártires;
centenas foram queimadas na estaca. Essa doutrina por sua vez se tornou a
semente da igreja.
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Joel Beeke. Nossa Herança Reformada – O Justo viverá por fé. São Paulo:
Editora Os Puritanos, 2005, p.9-22
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