segunda-feira, 7 de agosto de 2017

A NATUREZA HUMANA DE CRISTO [Aula 02]


1. A NATUREZA HUMANA REAL DE CRISTO [1]

Uma verdade muito preciosa com respeito ao nosso Senhor é que ele é como nós em todas as coisas, exceto no pecado (Hb. 4:15). Que ele é como nós significa que ele teve nossa natureza humana em adição à sua natureza divina. Ele é tanto Deus como homem numa pessoa.

Quando falamos da natureza humana de Cristo, existem várias verdades importantes enfatizadas, especialmente cinco. Ele tinha uma natureza humana real, completa, sem pecado e fraca, e uma natureza humana central procedente da linha do pacto.

Cada uma dessas verdades é da maior importância possível para a nossa salvação.

Que Cristo tinha uma natureza humana real precisa ser enfatizado contra o ensino – de alguns na igreja primitiva e algumas seitas hoje – que Cristo somente apareceu na forma de um homem, mas não tinha de fato um corpo humano real, de carne e sangue, e nem uma alma humana real como nós temos. Sua humanidade, é dito, era somente uma aparência – algo como um anjo aparecendo na forma de um homem.

Mas se Cristo não tinha uma natureza humana real, nossa salvação não é real também. Se sua natureza humana era somente uma aparência, assim também o seu sofrimento e morte, e a nossa salvação. A realidade da nossa salvação depende da realidade de sua natureza humana. Hebreus 2:14, 15 diz: “E, visto como os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que, pela morte, aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo, e livrasse todos os que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à servidão”.

A Bíblia ensina a realidade da natureza humana de Cristo não somente enfatizando o fato que ele era como nós em tudo, mesmo em ser tentado (Hb 4:15), mas em muitas outras formas também. A realidade de sua natureza humana é ensinada em todas aquelas passagens que falam de Jesus nascendo, crescendo, aprendendo, obedecendo, comendo, bebendo, ficando cansado, chorando, sofrendo e morrendo. Todas elas nos falam que ele era realmente um homem, como nós em todas as coisas. Duvidar da realidade de sua agonia no Getsêmani, sua dor na negação de Pedro e traição de Judas, e sua agonia ao ser abandonado na cruz, é duvidar não somente de sua honestidade, mas também da nossa salvação por meio desses sofrimentos.

Cristo é, portanto, osso dos nossos ossos e carne da nossa carne (Ef. 5:30), capaz de nos representar diante de Deus, e dar sua vida como um sacrifício pelos nossos pecados. Ele, sendo homem, pôde pagar pelo pecado do homem e nos levar a Deus.


2. A NATUREZA HUMANA COMPLETA DE CRISTO

Apontamos que existem cinco verdades que precisam ser cridas sobre a natureza humana de Cristo: que ela era real, completa, sem pecado, fraca e centralmente procedente da linha do pacto.

Olhemos agora para a verdade maravilhosa que Cristo tinha uma natureza humana completa, significando que quando Cristo nasceu em nossa carne, não nasceu simplesmente com um corpo humano. Ele tinha também uma alma ou espírito humano (Lucas 23:46; João 12:27), uma mente humana (Fp. 2:5), uma vontade (João 6:38), um coração (Mt. 11:29) e tudo o mais que pertence à nossa natureza humana.

Ele não era metade homem e metade Deus, mas plenamente homem e plenamente Deus; todavia, ele é um Cristo somente. Essa é a maravilha, o mistério e a glória de sua encarnação.

Essa verdade tem sido negada na história da igreja. Alguns tentaram explicar a encarnação dizendo que Cristo tinha somente um corpo humano, e que sua natureza divina tomou o lugar da mente ou alma humana. Por analogia, portanto, ele seria como uma criatura que tinha uma mente humana num corpo de um animal. Nesse caso, Cristo não teria uma natureza humana completa, mas somente parte dela.

Contudo, é de extrema importância crermos que Cristo tinha uma natureza humana completa. Nossa salvação depende disso!

Cristo tinha que tomar cada parte da nossa natureza humana, pois cada parte precisava ser redimida. A verdade bíblica da depravação total diz que somos corrompidos e depravados em cada parte.

Nosso corpo é vil (Fp. 3:21), nossa arma é perdida (Mt. 16:26), nossa vontade está em cativeiro (Rm. 6:16), nossa mente é carnal, cheia de inimizade contra Deus, que forma que não pode ser sujeita à lei de Deus (Rm. 8:7,8), e nosso coração é enganoso acima de todas as coisas e desesperadamente corrupto (Jr. 17:9). Não existe nenhuma parte da nossa natureza humana que seja boa.

Portanto, Cristo tomou sobre si nossa natureza humana completa, para que pudesse sofrer nela, fazendo expiação pelo pecado em cada parte. Dessa forma, ele nos redimiu – coração, mente, alma e força – do domínio e poder do pecado e nos fez, com tudo o que somos, servos e filhos do Deus vivo.

Cristo é um Salvador completo. Graças a Deus por ele. Certamente não existe outro além dele.


3. A NATUREZA HUMANA SEM PECADO DE CRISTO

Já apresentamos as duas primeiras verdades que precisam ser cridas sobre a natureza humana de Cristo. Olhamos para os ensinos maravilhosos que ele tinha uma natureza humana real e completa. Agora nos voltaremos para a importante verdade que Cristo tinha uma natureza humana sem pecado.

Que ele não tinha pecado é ensinado mui claramente em Hebreus 4:15. Isso é ensinado também em Isaías 53:9, Lucas 1:35 e 2 Coríntios 5:21. Contudo, Hebreus 4:15 levanta a questão se Cristo era capaz de pecar, visto que foi tentado como nós em todas as coisas. Em outras palavras, a impecabilidade de Cristo significa apenas que ele não pecou, ou que ele não poderia pecar?

Alguns têm dito que as tentações de Cristo poderiam ser reais somente se fosse possível para ele pecar em sua natureza humana. Que ele não pecou é devido apenas ao fato dele ser Deus também. Em face de tal ensino, devemos enfatizar a verdade que não era possível que ele pecasse. Devemos lembrar que não é uma natureza que peca, mas uma pessoa, e Cristo é uma pessoa somente, o Filho de Deus. Como uma pessoa divina, ele não poderia pecar. Dizer que era possível que ele pecasse em sua natureza humana é dizer que Deus poderia pecar, pois pessoalmente, mesmo em nossa natureza humana, ele é o Filho eterno de Deus. Essa, cremos, é uma das verdades ensinadas em 2 Coríntios 5:21, que diz que ele não conheceu pecado, e em Hebreus 7:26, que diz que ele era “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores”.

Que Cristo não tinha pecado significa que ele não tinha o pecado original, o pecado que temos de Adão (Rm. 5:12). Nesse respeito, também, ele era imaculado. O nascimento virginal de Jesus e o fato que Deus era seu Pai, também o Pai de sua natureza humana, garantiu que dentre todos os descendentes de Adão, Cristo somente nasceu puro e santo.

Ele não somente não tinha o pecado original; ele também não tinha nenhum pecado real. Durante toda a sua vida, desde o tempo quando nasceu, Cristo nunca quebrou os mandamentos de Deus, nunca errou (nem infinitesimamente), e nunca falou uma palavra frívola que não glorificasse a Deus. Ele era perfeito!

Em suma, portanto, sua impecabilidade significa que ele não tinha o pecado original, nem qualquer pecado real e não tinha a possibilidade de pecar. Isso, como Hebreus nos diz, é a razão dele poder ser nosso Salvador.

Como alguém sem pecado, ele não precisava oferecer sacrifício primeiro pelos seus próprios pecados, mas foi capaz de oferecer em nosso favor um sacrifício perfeito (Hb. 7:27). Portanto, ele pôde se fazer pecado em nosso lugar, para que pudéssemos ser feitos a justiça de Deus nele (2 Co. 5:21).

A impecabilidade de Cristo, então, é a garantia que sua justiça é perfeita, e que ela é nossa. Tudo o que ele mereceu por sua morte ele não precisava para si mesmo; ele adquiriu para nós, que estávamos em tão grande necessidade.


4. A NATUREZA HUMANA FRACA DE CRISTO

Olhemos agora para a quarta grande verdade sobre a natureza humana de Cristo: que aquele que agora tem uma natureza humana glorificada, teve uma natureza humana fraca enquanto na terra. Sua natureza humana, além de real, completa e sem pecado, era fraca.

Porque Cristo tinha uma natureza humana fraca, durante seu tempo de vida terreno ele esteve sujeito a todos os males resultantes do pecado, embora não ao próprio pecado. Ele esteve sujeito à doença, fome, sofrimento, dor, fraqueza e até mesmo à morte, assim como nós. Ele foi “tocado com o sentimento das nossas fraquezas” (Hb. 4:15, KJV).

Romanos 8:3, que diz que Cristo veio em semelhança da carne do pecado, também ensina essa verdade. Visto que o versículo não pode significar que ele mesmo era pecador, o mesmo pode se referir apenas ao fato que ele estava sujeito a todos os males que o pecado trouxe sobre nós, a saber, às fraquezas da nossa carne do pecado.

Cristo, então, não veio em semelhança da carne sem pecado. Ele não era como Adão, que após ser criado desfrutou de toda a glória e esplendor do seu primeiro estado. Ele foi feito como nós, que perdemos aquele estado e recebemos não somente a depravação e culpa, mas também a maldição de Deus.

Essa é uma verdade importante. Enfermidade, sofrimento, dor e morte são resultados do nosso pecado e da maldição de Deus sobre nós. Cristo ter suportado as nossas fraquezas é parte dele ter sido feito maldição para nós. Ele tomou todas as nossas fraquezas sobre si, tomando nossa maldição e afastando-a de nós. Que conforto para nós, portanto, são todas as suas fraquezas!

Isaías disse tudo isso quando profetizou de Cristo e o chamou de “homem de dores e que sabe o que é padecer” (Is. 53:3, RA). Seus sofrimentos, disse Isaías, deveriam ser explicados assim: “Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si… ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades”. Por seu sofrimento, dor e tristeza “o castigo que nos traz a paz estava sobre ele” (vv. 4,5).

Não foi apenas a morte de Cristo que teve poder expiatório, mas também o sofrimento que ele suportou durante toda a sua vida sobre a terra. Ele confessou isso quando disse: “Porque a minha vida está gasta de tristeza, e os meus anos, de suspiros; a minha força descai por causa da minha iniqüidade, e os meus ossos se consomem” (Sl. 31:10).

Existe conforto adicional para nós nas aflições e sofrimentos de Cristo; elas significam que ele conhece nossas provações e sofrimentos por experiência própria. Ele passou por elas, e não podemos dizer que ninguém pode entender verdadeiramente nossas provações. Cristo entende!

Dessa forma, também, as fraquezas, dores, tristezas e sofrimentos do nosso Salvador são parte da nossa salvação. Que não apenas contemplemos e vejamos que não existe nenhuma dor como a sua (Lm. 1:2), mas creiamos nisso!


[1] Doctrine according to Godliness, Ronald Hanko, Reformed Free Publishing Association, p. 129-133. Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto. Originalmente publico no Monergismo - https://goo.gl/vSCLgc

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

CRISTO E OS PROFESSOS CRISTÃOS E A TEMPESTADE ACALMADA [Mateus 8.16-27]


Chegada a tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados; e ele meramente com a palavra expeliu os espíritos e curou todos os que estavam doentes;  para que se cumprisse o que fora dito por intermédio do profeta Isaías: Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças. Vendo Jesus muita gente ao seu redor, ordenou que passassem para a outra margem. Então, aproximando-se dele um escriba, disse-lhe: Mestre, seguir-te-ei para onde quer que fores. Mas Jesus lhe respondeu: As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça. E outro dos discípulos lhe disse: Senhor, permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Replicou-lhe, porém, Jesus: Segue-me, e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Então, entrando ele no barco, seus discípulos o seguiram. E eis que sobreveio no mar uma grande tempestade, de sorte que o barco era varrido pelas ondas. Entretanto, Jesus dormia. Mas os discípulos vieram acordá-lo, clamando: Senhor, salva-nos! Perecemos! Perguntou-lhes, então, Jesus: Por que sois tímidos, homens de pequena fé? E, levantando-se, repreendeu os ventos e o mar; e fez-se grande bonança. E maravilharam-se os homens, dizendo: Quem é este que até os ventos e o mar lhe obedecem? (Mt 8.16-27)

Na primeira parte destes versículos, encontramos um notável exemplo da sabedoria de nosso Senhor ao tratar com os que manifes­tam a disposição de se tomarem seus discípulos.  Este trecho lança tanta luz sobre um assunto freqüentemente mal compreendido em nossos dias, que merece consideração especial.

O texto diz, que um certo escriba ofereceu-se para seguir nosso Senhor por onde quer que Ele fosse. É uma proposta admirável, quando consideramos a classe social que aquele homem pertencia e a ocasião em que foi pro­ferida. Mas, a proposição recebe uma resposta igualmente admirável, que não foi diretamente aceita, embora também não fosse manifesta­mente rejeitada. Nosso Senhor tão somente faz uma réplica solene: “as raposas têm seus covis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”.

Este outro discípulo de nosso Senhor se apresenta em seguida, pedindo que lhe fosse permitido sepultar o pai, antes de assumir total­mente os deveres de discípulo. À primeira vista, tal pedido parece natural e legítimo. Entretanto, a resposta dos lábios de nosso Senhor não foi menos solene do que a primeira: “Segue-me, e deixa aos mortos o se­pultar os seus próprios mortos”.

Há algo de profundamente impressionante em ambas as respos­tas. Elas deveriam ser devidamente consideradas por todos os que se professam cristãos.

O ensinamento é bem claro: as pessoas que mani­festam o desejo de vir a frente, e se professam verdadeiros discípulos de Cristo, deveriam ser claramente advertidas a “calcular o custo” antes de começarem.
Será que estão preparados para suportar as difi­culdades?
Estão prontos a carregar a cruz?

Se assim não é , tais pessoas ainda não estão aptas para começar.

As respostas de Jesus nos ensinam claramente que há ocasiões em que o cristão precisa literalmente de­sistir de tudo por amor a Cristo e, se necessário, mesmo deveres tão importantes, como o sepultamento de pai ou mãe, devem ser deixados ao encargo de outras pessoas. Sempre haverá quem esteja pronto a com­parecer em nosso lugar; mas tais deveres em tempo nenhum podem ser comparados ao dever maior, que é o de pregar o evangelho e tra­balhar pela causa de Cristo no mundo.

Seria bom se estas palavras fossem mais constantemente relem­bradas nas igrejas. Bem podemos temer que esta lição esteja sendo por demais negligenciada pelos ministros do evangelho, e que muitas pes­soas estejam sendo admitidas à plena comunhão na igreja, sem jamais serem advertidas a “calcular o custo”.

De fato, nada tem feito maior dano ao cristianismo do que a prática de encher as fileiras do exército de Cristo com qualquer voluntário que esteja disposto a fazer uma pe­quena profissão de fé, e que possa falar fluentemente de sua experiência religiosa.

Infelizmente se tem esquecido que os números apenas não significam poder. Pode haver uma grande quantidade de mera religio­sidade externa, enquanto há muito pouco da verdadeira graça.

Nunca nos esqueçamos disto. Cuidemos para nada esconder aos recém- -convertidos e às pessoas que agora estão começando a buscar a Deus. Não deixemos que se enganem com falsas expectativas. Podemos dizer­-lhe que receberão uma coroa de glória no fim, mas que nós também digamos, não menos claramente, que existe uma cruz para ser carre­gada dia após dia.


Na última parte destes versículos, aprendemos que a fé salva­dora com freqüência está permeada de muita fraqueza e Instabilidade. Esta é uma lição que nos deixa humilhados, mas que é deveras salutar.

O texto nos apresenta Jesus e os discípulos atravessando o mar da Galiléia em uma embarcação. Surge uma tempestade, e o barco está em perigo de se encher de água pela violência das ondas. Enquanto isso, nosso Senhor está dormindo. Os discípulos atemorizados acordam Jesus e clamam por socorro. Ele atende ao pedido e faz acalmar as águas com uma palavra, de modo que “fez-se grande bonança”.

Ao mesmo tempo, Ele gentilmente censura a ansiedade de seus discípulos: “Por que sois tímidos, homens de pequena fé?”

Temos aqui um retrato muito nítido do coração de milhares de crentes! Há tantos que, mesmo possuindo suficiente fé e amor para aban­donar tudo por causa de Cristo, e segui-Lo para onde quer que vá, ainda assim, estão cheios de temores na hora da provação!

Quantos têm graça suficiente para se voltarem a Jesus em cada dificuldade, clamando: “Se­nhor, salva-nos”, e ainda não têm graça suficiente para ficarem quietos na hora difícil e confiarem que tudo está bem? Verdadeiramente, o crente tem razão de estar sempre cingido de humildade (1 Pe 5.5).

Que a oração: “Senhor, aumenta-nos a fé”, sempre faça parte das nossas petições diárias. Talvez nunca conheceremos a fraqueza da nossa fé, enquanto não formos postos na fornalha da tribulação e da ansiedade. Felizes os que descobrem, por experiência, que a sua fé é capaz de resistir ao fogo, e que podem, como Jó, dizer: “Ainda que ele me mate, nele esperarei” (Jó 13.15).

Portanto, para concluir, devemos relembrar que:

1. O ensinamento é bem claro: as pessoas que mani­festam o desejo de vir a frente, e se professam verdadeiros discípulos de Cristo, deveriam ser claramente advertidas a “calcular o custo” antes de começarem. Nunca nos esqueçamos disto. Cuidemos para nada esconder aos recém- -convertidos e às pessoas que agora estão começando a buscar a Deus. Não deixemos que se enganem com falsas expectativas. Podemos dizer­-lhe que receberão uma coroa de glória no fim, mas que nós também digamos, não menos claramente, que existe uma cruz para ser carre­gada dia após dia.

2. Que a oração: “Senhor, aumenta-nos a fé”, sempre faça parte das nossas petições diárias. Talvez nunca conheceremos a fraqueza da nossa fé, enquanto não formos postos na fornalha da tribulação e da ansiedade. Felizes os que descobrem, por experiência, que a sua fé é capaz de resistir ao fogo, e que podem, como Jó, dizer: “Ainda que ele me mate, nele esperarei” (Jó 13.15).

Portanto, quero dizer que: Temos grandes razões para agradecer a Deus por Jesus, o nosso grande Sumo Sacerdote, pois Ele é muito compassivo e terno de co­ração. Ele conhece a nossa estrutura. Ele leva em conta as nossas enfermidades. Ele não lança fora o seu povo por causa de defeitos. Ele se compadece mesmo dos que repreende. A oração, mesmo de “pe­quena fé”, é ouvida e obtém resposta.

Que Deus nos abençoe!

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO [Comentários]


[1]Ainda elogiado como uma palavra particularmente oportuna para a nossa época, descobrir que o famoso romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, completa 85 anos de idade este ano[2] é algo que pode causar espanto. Como uma obra de ficção futurista, ele tem despertado muito diálogo sobre os valores e ideologias explorados dentro de seu mundo imaginado.

O aniversário deste ano nos oferece um bom pretexto para revisitar o clássico de Huxley e refletir sobre sua relevância no mundo contemporâneo.


NOVA ORDEM MUNDIAL

Admirável Mundo Novo encontra sua premissa narrativa e o objeto de sua crítica na ascendente ideologia fordista dos dias de Huxley, projetada em um futuro distópico perturbador. Dentro do Estado Mundial de Huxley, Henry Ford é reverenciado como uma figura messiânica quase mítica. Ele é a base de seu sistema de datação (os eventos do livro ocorrem no ano 632 d.F – depois de Ford), e seu nome – o do fundador do mundo novo – agora é empregado onde antigamente se usava o nome de Deus. Produção e consumo em massa de produtos descartáveis (“mais vale dar fim do que consertar” [3] ), bem como os valores da predicabilidade e uniformidade, são princípios fundamentais da ordem mundial.

Os próprios seres humanos tornaram-se os objetos do hiperfordismo do Estado Mundial. Dentro de um enorme projeto eugenista, as pessoas são massas produzidas através de tecnologias reprodutivas e condicionadas a serem dóceis e participantes úteis na sociedade, plenamente envolvidas na produção e consumo que constituem o seu núcleo. Há cinco castas ou modelos diferentes de humanidade, cada qual cuidadosamente planejada e condicionada para servir a determinado propósito social. A individualidade e a exclusividade do amor familiar ou monogâmico são repelidos como obstrução à homogeneidade e conformidade sociais – “cada um pertence a todos”. [4]

Enquanto as crianças são modeladas através de processos uniformes de produção em linha, a reprodução sexual, a monogamia e a noção de mães e pais, tudo isso passou a ser encarado com asco. Os cidadãos são encorajados a se envolver em sexo promíscuo estéril, para torná-los complacentes a sua submissão e como um meio de impedir que afetos particulares surjam. Como Huxley observa em sua introdução, “à medida que diminui a liberdade política e econômica, a liberdade sexual tende a aumentar como compensação”. [5] A individualidade e a privacidade são tratadas com desconfiança.

A infantilização da população é uma política governamental. O envelhecimento do corpo e o amadurecimento do caráter e mente são reprimidos e evitados, mantendo as aptidões e predileções dos cidadãos do Estado Mundial em uma permanente condição adolescente. Uma cultura de entretenimento de m assa homogênea promove coesão e quietude sociais. Doses intensas de sensação na forma de “sensíveis” (uma forma sensualmente intensificada de entretenimento cinemático) a esportes populares estimulam as pessoas a serem joguetes pueris de seus impulsos e desejos, incapazes de retardar a gratificação, desenvolver convicções, sentir intensamente ou dedicar-se inteiramente a qualquer causa. Mentes saturadas com sensação e prazer – principalmente através da maravilha de droga alucinógena “soma” – são imunizadas contra o raciocínio, a reflexão e a não-conformidade.

O título do livro é uma alusão irônica a um verso de A Tempestade, de Shakespeare. A despeito de sua amenidade aparente, a sociedade tecnocrata e estraga-prazeres do Estado Mundial sufoca todas as paixões, propósitos, ideais e valores do elevado caráter da escrita de Shakespeare. O sexo fácil sufoca o romantismo. O condicionamento e a “eficiência” farmaceuticamente garantidas substituem e autonegação e a formação do caráter. Conforto implacável, prazer e ausência de luta tornam a nobreza e o heroísmo desnecessários. Poesia, sacrifício, sentido e o próprio Deus não têm lugar nesse mundo.


REALIDADE INIMAGINÁVEL

Ler Admirável Mundo Novo pode ser uma experiência peculiar, uma vez que o leitor é ao mesmo tempo atingido por elementos divertidamente curiosos e assustadoramente oportunos. Embora a obra tenha sobrevivido supreendentemente bem ao tempo, considerando-se que se trata de uma ficção futurológica, ela é, contudo, um produto de sua época. A despeito da premonição e perceptividade de Huxley, sua visão foi, em grande medida, uma projeção e uma escalada a partir dinâmicas emergentes de sua época de produção, consumo e sociedade em massa.

Essas dinâmicas têm sido superadas, ou pelo menos consideravelmente dificultadas por muitos desenvolvimentos subsequentes. Em uma economia pós-fordista e numa era digital de dispositivos personalizados, a sociedade de massa não é mais tão cristalina como parecia outrora. Longe de ser encarada como uma ameaça, por exemplo, a individualidade está, agora, profundamente assimilada em nosso sistema econômico, uma vez que somos estimulados a nos diferenciar, identificar e alienar por meio das formas de consumo que escolhemos. O fato de que estamos todos envoltos no mesmo sistema é menos óbvio quando todos usamos as algemas sob medida que escolhemos para nós mesmos.

Na realidade, a partir de nossa posição contemporânea privilegiada, uma série de elementos da visão de Huxley parecem demasiadamente conservadores. Escrevendo antes do advento da genética moderna, Huxley dificilmente teria imaginado a engenharia genética diretamente aplicada nos seres humanos tal como hoje se apresenta em nosso horizonte, nem o grau de domínio sobre nossa natureza que a ciência oferece. Tampouco ele parece ter antecipado a forma de sexualidade de nossa época – todo o sexo promíscuo em Admirável Mundo Novo é heterossexual. Ademais, conquanto exista dentro de um Estado Mundial, a Inglaterra que fornece o cenário para a narrativa huxleyana parecer surpreendentemente provinciana em alguns pontos: a globalização radical aparentemente teve efeitos limitados.

Um detalhe impressionante na descrição de Huxley é que, embora o Estado Mundial seja baseado na produção em massa, o processo de automação é suprimido, com humanos executando trabalhos que facilmente poderiam ser confiados a máquinas ou algoritmos (Huxley não explora a possibilidade das máquinas quaseinteligentes). A partir de uma posição contemporânea privilegiada isso pode exigir uma suspensão significativa de descrença para imaginar que uma economia assim possa ser domada para servir a um fim social mais amplo, ainda que distópico. Pode ser que Huxley tenha temido uma ideologia fordista forjada e imposta pelos “Controladores do Mundo” dentro de uma economia de comando – não um temor irrealista na época da ascensão do comunismo e do fascismo; nós, hoje, parecemos ter muito mais motivos para temer nossa sujeição à lógica insaciável e autônoma de um sistema capitalista desenfreado além do escopo ou controle humanos. [6]

O Estado Mundial é uma sociedade intensivamente planejada, que pode ser diretamente apresentado em proposições e é integrado por uma visão humana unificada. Muito de Admirável Mundo Novo consiste de diálogo expositivo, no qual a ideologia humana subjacente ao Estado Mundial é explicitamente articulada. Contudo, os desenvolvimentos sociais que moldam nosso mundo de forma muito poderosa não parecem mais ser planejados e definitivamente não se apresentam a nós diretamente. Pelo contrário, eles são normalmente dinâmicas tecnológicas e societárias que desencadeamos, cujo objetivo de longo prazo é confuso e cujos efeitos progressivos em nós, conquanto vastos no global e em retrospecto, só são percebidos no momento e no particular – quando são percebidos de fato. Embora possamos ficar inconscientemente condicionados, o condicionador é mais provavelmente uma tecnologia tal como a internet do que uma inteligência humana.


DOMINADOS PELO DESEJO

Nos dias de hoje, temos mais a temer dos processos desumanos incontroláveis e inexoráveis que desencadeamos, que se desdobram na sociedade com uma inevitabilidade desmoralizante. Nosso mundo está à mercê das forças siamesas do capitalismo totalizante e da tecnologia avançada. Enquanto esta amplia o escopo do que é possível, aquela impulsiona níveis crescentes de consumo e nossa capacidade irrestrita e incita a fazê-lo, sobrepujando todos os obstáculos que possam restringi-los. Embora os seres humanos sejam os peões dessas forças, a lógica propulsora das próprias forças domina sobre eles.

Este é o ponto chave em que a visão de Admirável Mundo Novo repercute. Huxley percebeu, melhor do que muitos, a escravidão degradante na qual podemos ser conduzidos por nosso desejo por prazer. Neil Postman contrastou de forma memorável a obra de Huxley com 1984, de George Orwell, observando o reconhecimento de Huxley de que podemos ser destruídos e dominados mais facilmente através de nossos desejos do que de nossos temores. Anestesiados por prazeres, entretenimentos, trivialidades, distrações, luxúrias e sensualidade, podemos ficar habituados com a erosão constante de nossa humanidade.

No mundo de hoje, como Slavoj Žižek observou, estamos sujeitos ao totalitarismo suave que continuamente nos exorta a “desfrutar!”. O mercado tem nos rodeado de produtos e propagandas que têm sido usadas como armas para excitar e mobilizar nosso desejo de consumir e derrubar qualquer resistência que possamos oferecer contra ele. Em nosso mundo supersaturado e hiper-real, somos expostos a uma horda de estímulos criados artificialmente que excedem em muito tudo o que teríamos encontrado anteriormente naturalmente – desde alimentos quimicamente modificados até gráficos estonteantes de jogos, drogas que alteram o estado mental, imagens vibrantes em nossas telas, pornografia online, destinos turísticos cuidadosamente tratados, modelos maquiadas nas capas de revista e a sociabilidade de um site como o Facebook. Todas essas coisas são calculadas para excitar nosso apetite, vencer nossa resistência e levar-nos a entregar-se. A onda de
prazeres intoxicados do capitalismo desarma todos os obstáculos diante dele – censuras, restrições legais, tabus culturais, normais sociais, virtudes religiosas, autocontrole.

Edmund Burke argumentou que controles e restrições sobre os apetites humanos são essenciais à liberdade humana, e um dos nossos direitos fundamentais. Sem esses controles, somos reduzidos a prisioneiros infantis do prazer, incapazes de governar a nós mesmos. Um exemplo trágico é o imenso dano que está sendo causado pela pornografia, seu poder de dominar pessoas aumentado por novas tecnologias e a força do mercado, tornando-o mais atraente para consumir e mais difícil de se opor. E embora uma sociedade vidrada no entretenimento popular de massa e esportes estivesse em ascensão nos dias de Huxley, a escala da nossa própria obsessão societária com essas coisas – e nosso consumo relativamente tácito, como cristãos, da cultura pop – é comprovadamente sem precedentes e digno de verdadeiro alerta.


OBJETOS DESUMANIZADOS

Huxley, além disso, reconheceu o perigo de a natureza humana ser sujeitada à lógica da produção. A realidade mais central do Estado Mundial talvez seja a substituição da procriação sexual pela produção técnica: os seres humanos deixam de procriar e começam a ser fabricados. Huxley, de modo astuto, percebe exatamente quão crucial essa mudança é e chama a nossa atenção para seus vários aspectos em grande detalhe: uma cultura de sexo puramente contraceptivo e relativa neutralidade de gênero, a formação de crianças através de processos semelhantes a correias transportadoras, a eliminação da família e dos limites do amor nos quais os filhos são naturalmente recebidos e assim por diante.

Novamente, este aspecto da obra de Huxley encontra um eco preocupante em nosso mundo contemporâneo. Por meio de coisas como a ideologia do aborto, avanços na tecnologia reprodutiva e a normatização do casamento neutro entre os sexos, as crianças estão cada vez mais sujeitas à lógica da escolha e da construção. A própria dignidade humana repousa, em grande parte, no fato de que não somos fabricados, mas procriados – concebidos por meio de uma dádiva amorosa de corpos que precedem e superam os âmbitos políticos, legais, econômicos e tecnológicos da atividade humana. Uma cultura que resiste ou negligencia essa verdade, como a nossa está propensa a fazer, corre o risco de mudar o seu próprio entendimento e abordagem da humanidade em si mesma.


LUTANDO POR LIBERDADE

Como cristãos no século 21, estamos encarando uma luta crescente e profundamente hercúlea pela natureza e dignidade humanas. Devemos lutar contra a subjugação da humanidade à tirania do prazer, contra a sensualidade amniótica na qual nossa cultura nos encapsula, estupidificando-nos para qualquer realidade que possa elevar nossa natureza suscitando-nos em dever, amor ou adoração. Devemos resistir ao fascínio do domínio da técnica sobre a natureza – um domínio que nos expõe à desumanização. E para que façamos essas coisas, devemos reconhecer e vencer a infidelidade que existe em cada um dos nossos corações, que nos derrubaria de dentro. Diante desses desenvolvimentos acelerados, o Admirável Mundo Novo de Huxley nunca foi tão atual, nem o alerta soa tão urgente.

Contra essas coisas, devemos reafirmar a importância do autodomínio moral, da relação entre homem e mulher e da doação de vida que pode resultar de seu amor, de limites morais que restrinjam os alcances do mercado e o desenvolvimento da tecnologia, e do Senhor e Doador da vida a quem todos somos devedores. Se falharmos nisso, correremos o risco de nos submeter à servidão mais insidiosa jamais vista.
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Admirável Mundo Novo. Aldous Huxley. 22ª edição. São Paulo. Globo, 2014. 314p.



[1] Texto originalmente publicado no Voltemos ao Evangelho, in: https://goo.gl/pjvaVx
[2] O presente texto foi escrito no ano passado. [Nota do Tradutor.]
[3] Huxley, Aldous. Admirável Mundo Novo. Biblioteca Azul, 2014. Edição Kindle, posição 836. Tradução de Leonel Vallandro e Vidal Serrano.
[4] Idem, posição 711.
[5] Idem, posição 190.
[6] A opinião do articulista quanto a este quesito não representa a posição do VE. [Nota do Tradutor.]

terça-feira, 1 de agosto de 2017

BONHOEFFER: PASTOR, MÁRTIR, PROFETA, ESPIÃO [Comentários]


PARTE 1 - DICA DE LEITURA
Texto Original in: https://goo.gl/SU7Pkv

As boas biografias são maravilhosas porque reúnem em um só gênero, doutrina, história, psicologia e drama. Da mesma maneira que uma frase pode ter seu sentido distorcido fora do contexto também é difícil entender o que alguém escreve sem conhecer sua conjuntura pessoal. Para se ter uma ideia disso em um equívoco monumental, os contemporâneos de Bonhoeffer entenderam o cristianismo sem religião que ele defendia como cristianismo que não crê em Deus, que só se preocupa com a ética. A leitura Bonhoeffer: pastor, mártir, profeta, espião, que a editora Mundo Cristão lançou no ano passado desfaz todas as dúvidas.

Conheci Bonhoeffer nas aulas de seminário com o professor Heinrich Finger. Ele trouxe alguns textos do livro póstumo Ética que trata além de religião  questões como amor, pecado e coragem. Logo após fomos levados a ler Resistência de Submissão um livro de cartas escritas da prisão. Nelas Bonhoeffer falava contra a religiosidade oficial  deixando uma pulga atrás da nossa orelha sobre o que ele estaria tentando comunicar. Mais tarde já pastor de igreja li Discipulado, Tentação e aquele que seria dos seus livros o mais impactante na minha vida: Vida em comunhão.

Bonhoeffer foi um visionário. Ele antecipou debates que hoje fazem parte do nosso dia a dia. O relacionamento da fé com o mundo emancipado, como viver em comunidade de fé,  relação entre igreja e estado e diferença entre religião e cristianismo. Mas nenhuma história é mais cativante do que a que Bonhoeffer escreveu com sangue em um tempo de grande omissão da igreja oficial na Alemanha que aceitou tacitamente a doutrina nazista e seu messianismo monstruoso.

Bonhoeffer foi um profeta. É fácil dizer eu já sabia, quando antes não se ouviu nenhuma voz. Não foi assim com ele. Ele anteviu as ações do nacional socialismo e os perigos que ele representava para a nação alemã.  Quando toda a nação celebrava a chegada de Hitler ao poder como a salvação da Alemanha, ele dizia: “O perigo assustador do mundo atual é que, acima do clamor por autoridade… nós esquecemos que o homem se encontra sozinho perante a autoridade suprema, e que todo aquele que impõe mãos violenta sobre o homem está violando leis eternas e concedendo a si mesmo uma autoridade sobrenatural que acabará por destruí-lo.”

Bonhoeffer foi um grande pastor. Fundou um seminário que ensinava a orar e a ler as Escrituras e a confissão de pecados, coisas difíceis de serem vistas no mundo teológico daquela época e na de hoje mais ainda. Como pastor não se furtou ele mesmo ao hábito de ser discipulado pelo seu cunhado Eberhardt Bethge. Um homem que reuniu profundidade teológica, coragem pessoal e dedicação pastoral a uma comunidade de discípulos merece meu respeito. É esse tipo de homem que eu mesmo quero me tornar.

Creio que a leitura dessa biografia mexerá muito com sua vida além de emocionar com o desprendimento desse homem de Deus. Confesso que chorei ao ler os relatos da morte tão extemporânea de um homem que sob um ponto de vista carnal tinha tanto a dar ao mundo. Ao ser chamado para a execução por enforcamento ele diz ao companheiro de cela: “Esse é o fim, mas para mim o começo da vida”


PARTE 2 – APRESENTAÇÃO
Texto Original in: https://goo.gl/YUoBpq

Dietrich Bonhoeffer é, certamente, uma das personalidades mais interessantes do século XX. Filho de uma família alemã abastada, Bonhoeffer tinha tudo para viver uma vida longa e confortável. No entanto, inspirado pelo evangelho escolheu encarar os poderes de seu tempo sombrio.

Bonhoeffer enfrentou o status quo acadêmico teológico do final do século XIX e início do século XX, o liberalismo. Orientado por Adolf Harnack, a grande estrela do liberalismo teológico e do método histórico-crítico de interpretação das Escrituras, o teólogo da igreja confessante teve a coragem de rejeitar os dogmas liberais e reafirmar importantes aspectos da ortodoxia.

A sua paixão por fazer a vontade de Deus o levou, finalmente, a enfrentar o pior dos males que se abateu sobre sua terra natal, o nazismo, à custa de sua própria vida. Quando Hitler tentou cooptar a Igreja Alemã, Bonhoeffer foi um dos líderes da resistência, fundando a Igreja Confessante, que acabou por ser tornada clandestina pelo regime. Ele também ajudou ativamente na fuga de famílias de judeus para a Suiça e militou junto as demais igrejas europeias no sentido de conscientizá-las a respeito da situação da Igreja Alemã.

Porém,  o momento mais dramático dessa luta foi participação de Bonhoeffer num plano para assassinar Adolf Hitler. Várias questões interessantes surgem dessa situação. É moral participar de um regicídio? Existe alguma situação em que é permitido conspirar para assassinar o chefe de Estado? O tema da permissibilidade do regicídio é um tema antigo, foi discutido por Marsílio de Pádua, e volta à tona na situação concreta por que Bonhoeffer passou.

Eric Metaxas conta essas e outras histórias no livro Bonhoeffer: mártir, pastor, profeta, espião, publicado em português pela editora Mundo Cristão. Trata-se de um livro de leitura fácil, bem documentado, em que, sempre que possível, o autor deixa o biografado “falar por si mesmo” por meio de uma série de citações contextualizadas. Como foi direcionado primariamente para o público norte-americano, Metaxas se debruça longamente sobre o período em que Bonhoeffer viveu em Nova Iorque como pesquisador convidado do Union Theological Seminary e sobre as percepções do teólogo alemão do cristianismo praticado nos Estados Unidos à época.
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Bonhoeffer:  Pastor, Mártir, Profeta, Espião. Eric Metaxas. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2011. 615p.

domingo, 30 de julho de 2017

CRISTÃOS PODEM SE BENEFICIAR DE LIVROS SECULARES? - John Piper



Hoje nós temos um e-mail de Jonathan Edwards que vive em Kalamazoo, Michigan. Sim, esse é o seu verdadeiro nome. E sua pergunta é boa: “Pastor John, eu dirijo uma empilhadeira em um armazém para empresas familiares cristãs. Temos permissão para ouvir música e audiolivros em nossos caminhões e eu recentemente comecei a ouvir este podcast. Eu tenho sido um ávido ouvinte de audiolivros em meu trabalho, e eu gostaria de saber o que o senhor pensa sobre a interação com a literatura secular, incluindo ficção, filosofia, poesia e história”. [1]

Ok, Jonathan, aqui está o meu pensamento mais recente sobre por que um uso moderado de ampla leitura, incluindo autores não-cristãos, é uma coisa sábia. Eu chamo isto de o fator realidade. Quando eu estou lendo a Bíblia, há dezenas e dezenas de experiências, conceitos e palavras pelos quais eu posso passar diretamente sem parar para contemplar a realidade por trás das palavras, experiências e conceitos. E é isso que quero dizer com o fator realidade. Precisamos parar, trazer o fator de realidade, e ir mais para trás.

Agora, como você contempla uma realidade sem algum conhecimento da realidade — não conhecimento da palavra, mas da realidade? E eu diria: Quanto mais conhecimento da realidade, melhor, se o conhecimento é verdadeiro e na verdadeira proporção de seu valor. Por exemplo, você não precisa apreender muitos conhecimentos sobre o tamanho e as espécies das aves que Jesus diz para atentar em Mateus 6:26: “Observai [ou considerai] as aves do céu”. Isso não é o cerne do que ele está dizendo. Mas seu objetivo nesse texto é ajudá-lo a livrar-se da experiência da ansiedade. Mas e se você não tivesse experiência de ansiedade? Essa palavra seria vazia para você.

É realmente importante ter conhecimento profundo e amplo da realidade da ansiedade e como ela funciona e quais são suas raízes e quais são seus frutos e de que formas ela pode tomar na vida e como ela pode espalhar-se sobre você e que devastação ela pode causar na história da vida das pessoas, e assim por diante.
Em outras palavras, há muitas realidades na Bíblia que supõem que, a partir da experiência de vida, sabemos a que estão se referindo: paz, alegria, medo, raiva, guerra, decepção, beleza, poder, hipocrisia.

Naturalmente, a Bíblia dá uma visão crucial dessas coisas que não vêm de nenhum outro lugar, mas a matéria prima do conhecimento é obtida, em grande medida, da experiência de vida, e então a Bíblia toma esse fundo comum da experiência humana, da realidade que nos traz para a Bíblia, e mostra como Deus se relaciona com ela e a transforma. O Novo Testamento supõe que não esquecemos a lição do livro de Provérbios de que devemos ir ter com formiga — um pequeno inseto, a formiga — considerar os seus caminhos e sermos sábio (Provérbios 6:6). Em outras palavras, olhe para o mundo. Aprenda a realidade do mundo. Aprenda algo sobre o
trabalho duro do mundo, aprenda algo sobre a perseverança do mundo. Amplie o seu fundo de realidade experiencial de mil coisas que estão no mundo porque, quando o Novo Testamento menciona essas coisas, assume que temos algum conhecimento experiencial delas.

Entretanto aqui está o ponto. A maioria de nós vive vidas tão pequenas, estreitas, restritas e limitadas — sabemos tão pouco sobre tantas coisas — uma das maneiras, apenas uma, que Deus ordenou para que crescêssemos em nosso conhecimento de muitas coisas, muitas experiências de que não temos experiência imediata é através da leitura. Isto significa que, se tivermos um amplo e profundo conhecimento das coisas através da leitura, bem como através da experiência de vida, então, quando a Bíblia fala, por exemplo, da tristeza de perder dez filhos, podemos ter uma maior compreensão do que ela está se referindo — estou pensando em Jó — se nós passarmos por isso, o que não acontecerá com a maioria de nós. Quase ninguém perde dez filhos de uma só vez. Mas podemos ler sobre isso. Podemos ler os vários tipos de coisas horríveis que as pessoas passaram e aprofundar nossa compreensão do espírito humano e de experiência de como fazer isso.

Então, deixe-me lhe dar apenas um pequeno vislumbre de como isso funcionou para o Jonathan Edwards original. Ele fez um sermão sobre a escravidão do pecado e o que é ter Satanás como um senhor de escravos. Ora, ele sabe que Satanás é o senhor mais malvado, grosseiro e mais diabólico que já existiu. E, no entanto, a maioria das pessoas ainda está contente em lhe servir.

Agora, como Edwards poderia sentir isso como deveria? Como ele poderia saber a realidade do que significa ser governado por Satanás, como deveria? Como ele poderia dizer isso de uma maneira que ajudaria os outros a conhecerem essa realidade? Bem, Edwards tinha evidentemente feito alguma leitura sobre o sacrifício humano no país da Guiné. E aqui está no que isso o ajudou. Aqui está o que ele diz:

[Satanás e seus companheiros] fazem com vocês, como ouvi dizer, na Guiné, onde comem a carne dos homens nas suas grandes festas. Eles colocam uma pobre criança ignorante que nada sabe do assunto, para fazer um fogo e enquanto ela se inclina para soprar o fogo, alguém vem para trás e golpeia a sua cabeça, e então ela é assada pelo mesmo fogo que acendeu, e fazem uma festa disto, e o crânio é usado como um copo, a partir do qual se alegram com seu licor. Exatamente assim, Satanás tem em mente fazer para alegrar-se com você.

Isso é muito horrível, poderoso e inesquecível. Edwards obteve esse conhecimento do mal de fora da Bíblia, e informou ensinamentos bíblicos sobre o horrível, diabólico, devastador e assassino governo de Satanás sobre seu povo — ao mesmo tempo que os faz pensar que estão se divertindo.

Agora, no meu caso, acabei de ouvir os três volumes da biografia de Winston Churchill, de William Manchester, cerca de 1.000 páginas cada. Que educação na realidade, insights sobre os desafios naturais da liderança, sobre os horrores da guerra, sobre a natureza inconstante da aprovação do público, sobre a insanidade sexual dos namoricos da classe alta, sobre as complexidades do que a justiça parece na política pública, sobre o valor de nunca desistir, embora haja uma enorme oposição, e assim por diante. Que educação.

Eu estava aprendendo a realidade. Eu não estava aprendendo a minha moralidade. Os livros não ensinavam moralidade. Eu não estava aprendendo minha moralidade. Recebo isso da Bíblia. Eu estava ganhando a consciência das realidades que vêm da experiência da vida, de outro modo eu não teria nenhuma experiência de vida de estar na guerra. Coisas que existem e como elas são, foi isso que eu encontrei. Em outras palavras, eu estava ampliando a matéria-prima da realidade que a Bíblia assume e interpreta para mim quando trago isto para minha leitura.

Então, qual é o objetivo de toda essa leitura? Todas as nossas leituras, cristãs ou não-cristãs, todas as nossas leituras visam conhecer melhor a Deus, conhecer melhor o homem, conhecer melhor os caminhos de Deus e os caminhos do homem, compreender melhor as Escrituras, de modo que nós possamos obedecer mais plenamente ao que Deus diz e sermos mais úteis para cumprir seus propósitos e glorificar seu nome.

Amém!… Ok, representado os ouvintes do APJ [Ask Pastor John — Pergunte ao Pastor John], sei que eles querem que eu pergunte, quanto tempo demorou para você passar por todos os três áudio livros do Churchill?

Comecei na primavera. Então, talvez cinco ou seis meses. E quando terminou, eu me senti triste. Eu realmente me senti triste, porque foi tão gratificante ouvi-los por causa da realidade que eles estavam me expondo: tantas coisas as quais eu não sabia nada sobre. Era como ler a história da Segunda Guerra Mundial e, é claro, era uma biografia do homem. Foi uma guia em ciência política. Foi uma leitura notável.




[1] Texto Original publicado em Voltemos ao Evangelho. 
Disponível in: https://goo.gl/ExQQtj