INTRODUÇÃO
Ate muito recentemente, parece que muita pouca atenção foi prestada ao
fato notável que Lucas é o único dos quatro Evangelistas que escreveu uma
seqüela ao seu Evangelho. Por que fez assim? Os outros três escreveram livros
que se concentravam na vida, na morte e na ressurreição de Jesus. Evidentemente
sentiam que esta historia podia ficar em pé sozinha; não precisava de
suplemento. Mas Lucas escreveu Atos. Por que?
Seu segundo volume, como se sabe, nos leva adiante para a história da
igreja primitiva. Conta-nos daqueles primeiros dias em Jerusalém e da maneira
como os pregadores levaram o evangelho ao mundo, Pedro e João, Estevão o
mártir, Filipe e outros, mas especialmente Paulo e seus cooperadores.
O grande pensamento que Lucas esta expressando é, decerto, que Deus
está operando Seu propósito. Este propósito é visto claramente na vida e na
obra de Jesus, mas não terminou juntamente com o ministério terrestre de Jesus.
Continuou diretamente na vida e no testemunho da igreja. A igreja não
representa um novo ato de Deus, completamente sem relação com aquele. Lucas
esta dizendo, segundo parece, que a obra de Jesus levou à vida da igreja,
conforme o plano de Deus determinou que levasse.
Lucas entende que este propósito divino está intimamente vinculado com
o amor e a misericórdia de Deus. Um aspecto característico deste Evangelho é o
modo segundo o qual o amor de Deus é retratado como estando ativo de varias
maneiras, entre uma variedade de pessoas. Este não é um tema ocasional, mas,
sim, um que percorre a totalidade deste escrito. O escritor obviamente era um
homem de cultura, com uma apreciação do belo, e certamente sabia escrever bem.
Mas não é qualquer destes aspectos, nem a totalidade deles, que explica a
beleza deste escrito. Pelo contrário, é a maneira em que o amor de Deus aparece
brilhando nas parábolas, nos ditos, e na historia de Jesus.
O tema de Lucas e grandioso, e é tratado em toda a sua extensão. Seu
Evangelho é o mais longo dos quatro e, quando Atos é acrescentado, escreveu uma
parte do Novo Testamento maior do que qualquer outro autor individual. E claro
que um estudo dos seus escritos é
importante para o estudante do Novo Testamento.
I. AUTORIA
Usualmente concorda-se que o autor deste Evangelho deve ser
identificado com o escritor de Atos. O Prefacio de Lucas (1 :1-4) e endereçado
a Teófilo e Atos 1:1 parece ser um tipo de prefacio secundário. É endereçado à
mesma pessoa e visa, aparentemente, relembrar o primeiro. O estilo e o
vocabulário favorecem a unidade da autoria. A tradição concorda com o Prefácio, que nos mostra que o autor não era
testemunha ocular das coisas que registra, mas que pesquisara evidências da
parte de tais pessoas. Era claramente um escritor cuidadoso e um homem de
cultura, mas não um dos primeiros seguidores de Jesus.
II. A DATA
Três datas têm sido sugerido para este Evangelho com certa seriedade, a
saber: cerca de 63 d.C., cerca de 75-85 d.C., e no começo do século II. A data
está vinculada com a de Atos, pois Lucas deve forcosamente ser anterior a sua
seqüela.
III. LINGUAGEM
Linguisticamente, este Evangelho divide-se em três seções. O Prefácio (1:1-4)
e escrito num bom estilo clássico. Demonstra aquilo que Lucas sabia fazer, mas
a partir de então, abandona totalmente este estilo. O resto do capítulo 1 e o
capítulo 2 têm um sabor nitidamente hebraico. É tão marcante que certo número
de estudiosos chegou à conclusão de que aqui temos uma tradução de um original
em hebraico.
A partir de 3:1, o Evangelho está escrito num tipo de grego helenístico
que relembra fortemente a Septuaginta, versão grega do Antigo Testamento
hebraico. Conforme
E. Earle Ellis indica, “é difícil ver por que a historia da igreja
palestiniana (At 1-12) deveria ter mais “sabor” [semítico] do que a missão de
Jesus na Galiléia ou o discurso de Paulo em Jerusalém (At 22). Parece muito
mais provável que em tais trechos Lucas esta seguindo de perto suas fontes
semíticas.
IV. LUCAS O TEÓLOGO
Lucas agora é geralmente considerado um dos teólogos do Novo Testamento
e é visto como sendo mais interessado em transmitir verdades religiosas e
teológicas do que em escrever uma historia. De fato, o pêndulo avançou tanto
nesta direção que muitos sugerem que o interesse de Lucas na teologia era tão
grande que permitiu que afetasse seu juízo histórico. Noutras palavras, dizem
que Lucas estava disposto a alterar um pouco a sua historia se isto ressaltasse
suas lições teológicas.
O propósito religioso e teológico, podemos ver algo desse propósito nos
tópicos que se seguem.
1. A história da salvação. Coloca sua narrativa no contexto da historia
secular mais firmemente do que qualquer dos demais Evangelistas (2:1-2; 3:1), e
vê a ação de Deus em Cristo como sendo a grande intervenção central de Deus nos
assuntos dos homens, mediante a qual a salvação do homem e operada (Atos 2:36;
4:10-12;17:30-31).
2. A universalidade da
salvação. Vemos a largura
desse grande amor de Deus na universalidade da salvação acerca da qual Lucas
escreve. A própria palavra “salvação” esta ausente de Mateus e Marcos e ocorre
uma só vez em João. Lucas, no entanto, empregou soteria quatro vezes e soterion
duas vezes (outros sete exemplos das duas palavras ocorrem em Atos, num
total de treze). Além disto, emprega o termo “Salvador” duas vezes (e duas
vezes mais em Atos), e empregou o verbo “salvar” mais freqüentemente do que
qualquer outro Evangelista.
3. A escatologia. Lucas escreve acerca de uma grande salvação,
de uma salvação que e valida por toda a eternidade e não somente para o tempo.
Alguns estudiosos, é verdade, sustentam que ele negligencia o tema
escatológico. Os demais Evangelhos, sustentam eles, foram escritos com a
expectativa que Cristo voltaria dentro em breve e que estabeleceria o reino de
Deus, expectativa esta que foi compartilhada por Paulo e outros. Lucas, porem,
escreve quando a expectativa vivida tinha desvanecido. Para ele, a volta de
Cristo já não é iminente. “Ninguém escreve a historia da igreja se está
esperando diariamente o fim do mundo.”
4. O catolicismo primitivo. Alguns deixam de entender o impacto daquilo
que Lucas esta dizendo quando sustentam que ele institucionalizou o
cristianismo, ou, pelo menos, que escreve como representante da religião
institucional. O resultado é chamado “catolicismo primitivo” por muitos
estudiosos, e vêem Lucas como sendo um dos seus primeiros expositores.
5. O plano de Deus. Lucas viu que Deus estava desenvolvendo um
grande plano nos negócios dos homens. Já notamos seu uso freqüente de varias
palavras para denotar “propósito” a fim de ressaltar o conceito de uma
necessidade divina operante no ministério de Jesus. O propósito foi visto
supremamente na cruz (Atos 2:23; 3:13; 5:30-31, etc.). O Deus a quem Lucas
conhece está interessado na salvação dos homens, e está constantemente
operativo nos negócios dos homens a fim de levar a efeito Seu propósito
redentor.
6. Os indivíduos. Ao operar aquele grande propósito da
redenção, Deus, segundo o conceito de Lucas, preocupava-Se com os homens. Não
pensava que o propósito divino aparecia somente nos grandes movimentos das
nações e dos povos: operava nas vidas de homens e mulheres humildes, pois Deus
Se importa também com as pessoas de menos influencia.
7. A importância das mulheres. Uma parte importante da solicitude que Deus
tem para com as pessoas e que e manifestada para com grupos que não eram
altamente estimados na sociedade do século I: as mulheres, as crianças, os
pobres, os de ma fama.Por exemplo, da um lugar de relevância as mulheres. No
século I, as mulheres eram mantidas bem no seu lugar, Lucas, porem, vê-as como
objetos do amor de Deus, e escreve acerca de muitas delas. Nas historias da
Infância, conta de Maria, mãe de Jesus, e de Isabel e Ana. Mais tarde, escreve
também de Marta e da sua irmã Maria (10:38-42), de Maria Madalena e Joana e
Susana (8:2-3). Refere-se a mulheres que não menciona pelo nome, tais como a
viúva de Naim (7:11-12), a pecadora que ungiu os pés de Jesus (7:37ss.), a
pequena velha encurvada (13:11), a viúva que deu a Deus tudo quanto tinha
(21:14) e as “Filhas de Jerusalém” que lamentavam por Jesus enquanto Ele subia
a cruz (23:27ss.). Às vezes, as mulheres aparecem também nas parábolas, como
naquela da moeda perdida (15:8ss.) ou do juiz injusto (18:1 ss.).
8. As Crianças. O exemplo mais óbvio da solicitude de Lucas
para com as crianças é o das narrativas da infância. Naturalmente, o interesse
pelas crianças não é a única razão destas histórias. Lucas está preocupado em
enfatizar que o plano de Deus estava sendo cumprido no nascimento e na
juventude de João e de Jesus.
9. Os pobres. Jesus veio pregar o evangelho aos pobres
(4:18), e é digno de nota que Lucas relata uma bem-aventurança para os pobres
(6:20; há, por contraste, um ai para os ricos, 6:24), ao passo que Mateus fala
dos “pobres de espírito” (Mt 5:3). Pregar as boas-novas aos pobres é
característica do ministério de Jesus (7:22). Os pastores, aos quais vieram os
anjos (2:7ss.) pertenciam a uma classe pobre. Na realidade, parece que a
família do próprio Jesus era pobre, pois a oferta feita na ocasião do
nascimento da Criança era a dos pobres (2:24; cf. Lv 12:8). De modo geral,
Lucas preocupa-se com os interesses dos pobres (1:53; 6:30; 14:11-13, 21;
16:19ss.).
10. Os de má fama. Lucas nos conta que em certa ocasião “Aproximavam-se
de Jesus todos os publicanos e pecadores para o ouvir” (15:1). Este não e um
incidente, isolado no Terceiro Evangelho, pois Lucas tem a oportunidade de
mencionar muitas pessoas que não eram muito respeitáveis. O filho pródigo não
era exatamente um modelo da retidão, e os injustos têm um jeito de aparecerem
nas parábolas neste Evangelho (7:41-42; 12:13-21; 16:1-12, 19-31; 18:1-8,9-14).
11. A Paixão de Cristo. O propósito de Deus é supremamente
realizado na paixão de nosso Senhor. Lucas escreve com a convicção de que Deus
agiu em Cristo para trazer a salvação aos homens.
12. O Espírito Santo. O propósito de Deus não cessa na cruz.
Continua na obra do Espírito Santo, que significava tanta coisa na igreja dos dias
de Lucas. O interesse deste Evangelista pelo Espírito, no entanto, remonta aos
dias iniciais. O Espírito e destacado neste Evangelho desde o início. Há uma
profecia no sentido de que João seria cheio do Espírito Santo, já do ventre
materno (1:15), ao passo que se diz de Isabel bem como de Zacarias que ficaram
cheios do Espírito (1:41, 67). O mesmo Espírito estava “sobre” Simeão, revelou-lhe que haveria de ver o
Cristo, e o guiou para o Templo no momento apropriado (2:25-27).
O Espírito Santo estava ativo em conexão com o ministério de Jesus.
Este fato remonta até a concepção original, pois o anjo Gabriel informou Maria
que “Descerá sobre ti o Espírito Santo e o poder do Altíssimo te envolverá com
a sua sombra” (1:35). Quando Jesus estava para começar Seu ministério, há
várias referências ao Espírito Santo. João Batista profetizou que Jesus
batizaria com o Espírito Santo e com fogo (3:16). Quando nosso Senhor foi
batizado, o Espírito Santo veio sobre Ele “em forma corpórea como pomba”
(3:22), e o mesmo Espírito O encheu e O guiou para o deserto na ocasião da
tentação (4:1). Depois de terminada a tentação, e Ele estava para entrar no Seu
ministério, “Jesus, no poder do Espírito, regressou para a Galiléia” (4:14).
Depois, quando pregou na sinagoga de Nazaré, Jesus aplicou a Si mesmo as
palavras: “O Espírito do Senhor está sobre mim” (4:18), Não há muitas referências
ao Espírito durante o ministério, mas em certa ocasião Jesus “exultou no
Espírito Santo” (10:21) e provavelmente devamos entender que isto indica que o
Espírito estava continuamente com Ele. Além disto, disse aos Seus seguidores
que, nas emergências, o Espírito Santo lhes ensinaria as coisas que deveriam
dizer (12:12), e não e fácil pensar que eles teriam o Espírito Santo e Jesus,
não. A blasfêmia contra o Espírito e o mais grave dos pecados (12:10). Jesus disse
a Seus discípulos que o Pai daria o Espírito Santo aqueles que lho pedirem
(11:13). Depois da ressurreição, disse: “Eis que envio sobre vos a promessa de
meu Pai” e passou a assegurar os discípulos que seriam “revestidos de poder do
alto” (24:49). Esta e uma clara referencia a vinda do Espírito Santo, profecia
esta que foi cumprida no Pentecoste.
Mas, por mais importante que seja o ensino deste Evangelho acerca do
Espírito Santo, é em Atos que recebemos o impacto total da ênfase de Lucas.
Aquele livro esta cheio do Espírito, e tem sido chamado, com razão, “Os Atos do
Espírito Santo.” O Espírito esta constantemente operante desde o Dia do
Pentecoste.
Está abundantemente claro, pois, que uma das grandes ênfases de Lucas é
o Espírito Santo. Não pensa que Deus deixa os homens para servi-Lo da
melhor maneira que podem com seus próprios recursos. O amor de Deus é visto no
Espírito que entra nos seguidores de Jesus e lhes dá poder e os guia.
Alguns têm visto a ênfase dada por Lucas ao Espírito Santo como substituto
da escatologia que significa tanta coisa para os demais Evangelistas. Helmut
Flender nota o argumento de Conzelmann e Schweizer de que a historia da
redenção e a escatologia são mutuamente exclusivas. Contra isto, argumenta (com
razão, segundo meu juízo) que este não e um modo verdadeiro de entender a obra
do Espírito. Flender vê a exaltação de Cristo e o derramamento do Espírito como
eventos escatológicos genuínos, mas nega que isto torne a igreja “igualmente
escatológica.” Continua: “Entender a historia da redenção desta maneira seria
confundir a atividade divina com a humana, que seria intolerável. Quando
falamos do Espírito como sendo escatológico, queremos dizer que é escatologia
tornada presente.” O que garante o senso genuíno da iminência, da expectativa
continua, é que o dom do Espírito não é alguma coisa institucional, como se a
igreja tivesse o Espírito sob seu controle e pudesse produzir os dons do Espírito
em qualquer momento que escolhesse. O Espírito Santo foi dado no Pentecoste,
decerto, mas Ele podia encher as mesmas pessoas outra vez, um pouco mais tarde,
como resposta a oração (Atos 4:31). A presença do Espírito “ainda é um dom
sobrenatural, pelo qual os fieis devem esperar, e que devem ser prontos para
receber.” Não se pode tratar o Espírito com presunção. A igreja não pode dizer:
“Temos o Espírito em nossa salvaguarda. Não precisamos esperar a vinda de nosso
Senhor.”
O Senhorio do Espírito sobre o processo histórico é amplamente ressaltado
em Atos. E, conforme notamos numa seção anterior, Lucas tem mais para dizer
acerca do Espírito no seu Evangelho do que qualquer um dos demais Evangelistas.
Isto forma um vinculo de continuidade. Tanto no ministério de Jesus quanto na
vida da igreja primitiva, o Espírito de Deus esta operante.
13. A oração. No seu ensino acerca do Espírito, portanto,
Lucas nos mostra que Deus leva a efeito o Seu propósito. Esta operação exige uma
atitude certa da parte do povo de Deus, e é de acordo com isto que Lucas
ressalta a importância da oração. Ha duas maneiras principais de ressaltar este
interesse. A primeira é ao registrar as orações de Jesus (3:21;5:16; 6:12;
9:18, 28-29; 10:21-22; 11:1; 22:41ss.; 23:46; sete destas constam somente em
Lucas, e mostram Jesus orando antes de cada grande crise da Sua vida).
14. O louvor. O Evangelho segundo Lucas é um Evangelho
cantante. Registra alguns dos grandes hinos da fé crista': o cântico de gloria
dos anjos (2:14), o Magnificat, o Benedktus e o Nunc Dimittis (1:46ss.,
68ss.; 2:29ss.)
Fica claro, com tudo isto, que Lucas escreveu com um propósito profundamente
teológico. Vê Deus operando para trazer a salvação e tem prazer em ressaltar
uma variedade dos aspectos desta grande obra salvífica.
Lucas: Introdução e Comentário. Leon
Morris. São Paulo: Edições Vida Nova, 2007, p. 11-45.
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