quinta-feira, 5 de julho de 2018

ATÉ QUE TENHAMOS ROSTOS [Resenha e Introdução]


LEWIS. C. S. Até que tenhamos rostos: A releitura de um mito. Viçosa,MG: Ultimato, 2017. 354p.

O Jornal The New York Times publicou: “Até que Tenhamos Rostos consegue apresentar com clareza e criatividade o que seu autor descreve em outras de suas obras, como a realidade divina, mágica, aterrorizante e arrebatadora em que todos nós vivemos. C. S. Lewis aprofunda para os adultos o senso de admiração e verdade que delicia crianças em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, Príncipe Caspian e outras histórias das Crônicas de Nárnia.”

Este livro é Apontado por muitos como a obra definitiva e mais madura de C. S. Lewis, Até que Tenhamos Rostos apresenta de maneira brilhante e criativa o mito de Cupido e Psique. Um romance sobre a luta entre o amor sagrado e o amor profano, em uma análise fascinante da inveja, traição, perda, ciúme, conversão e outros dilemas do coração humano.

Ao mesmo tempo mais humano e também mais mítico do que a “Trilogia Cósmica”, Até que Tenhamos Rostos oferece ao leitor uma história rica, com personagens que “conhecemos” diante de escolhas e dificuldades que também “reconhecemos”. A última obra de ficção de C. S. Lewis lembra-nos também da nossa fragilidade e da presença de um poder superior sobre as nossas vidas.

Pois bem “Até Que Tenhamos Rostos”, a obra preferida de Lewis, examina o lugar da razão e da imaginação no seu pensamento e mostra uma mudança, não em termos de conceitos básicos, mas com ênfase no poder integrativo da imaginação, o qual se materializou a partir dos anos 50 com “As Crônicas de Nárnia”. Para aqueles que, amaram o teor infantil presente em As Crônicas de Nárnia, estão diante de uma obra que traz uma fantasia adulta escrita e revela a sensibilidade extraordinária de Lewis, pois reconta o mito da perspectiva de uma mulher, Orual.

O livro está dividido em duas partes e começa com Orual, nossa protagonista, descrita por todos, incluindo ela mesma, como a pessoa mais feia que já pisou na terra, o que contrasta com a irmã mais nova, Istra, também chamada de Psique, e temos a irmã do meio, Redival. Todas filha de Trom, Rei de Glome. Reino de Glome (inclusive, o nome do livro em Portugal é No Reino de Glome, prefiro nosso título, que é a tradução literal), um reino decadente com um rei cruel e um povo extremamente devoto a uma versão... estranha, pra não ofender o sagrado deles... da Afrodite grega. É um povo perdido em religião que acredita que a deusa, chamada Ungit, sobrevive e os abençoa se beber uma quantidade considerável de sangue, sangue esse que é oferecido no templo o que o deixa com um cheiro que, bem, vocês podem imaginar, nossa protagonista fala constantemente do "cheiro da santidade de Ungit" que revira o estômago.  Nesse reino temos um rei que vai despertar o desprezo de todos os leitores, tenho certeza disso, o rei fica viúvo com duas filhas e se casa novamente, com uma moça extremamente jovem e assustada pela situação na qual se encontra, essa moça também engravida e dá uma terceira filha ao rei, morrendo no parto, o rei despreza as filhas por serem "mulheres inúteis para a sucessão" e a bebê acaba sendo criada pela irmã mais velha, ainda adolescente.

Lewis espera que o leitor seja conhecedor do conto original: “Cupido e Psique”, escrito por Apuleius em torno de 124 A.D. Portanto, para um melhor aproveitamento do livro é extremamente recomendado, pelo menos, uma leitura do sumário do mito (usar Google). Na versão original, Psique é uma princesa tão linda a ponto de provocar inveja em Afrodite, que ordena que seu filho, Cupido, a castigue.

O livro começa e termina com paralelos ao livro de Jó. Começa protestando e tentando entender de Deus e termina com a resposta de Orual: “Senhor, sei por que não me respondes, pois tu és a resposta” – o que poderia bem ser a resposta de Jó, e a palavra final de Jó poderia ser as de Orual: “Por isso, falei do que não entendia; coisas que para mim eram maravilhosíssimas, e que eu não compreendia.” (Jó 42.3).

Quem já leu “As Crônicas de Nárnia” ou “Planeta Silencioso” não pode esperar o mesmo tipo de estória e estilo de literatura de Até Que Tenhamos Rostos. A obra é mais complexa e requer mais do leitor. A história trata de amor e obsessão, de quando nos achamos donos dos outros, como nem sempre é fácil aceitar as crenças que diferem das nossas, como temos ciúmes quando um ente querido passa a declarar amor por algo no que não acreditamos, ou pelo menos não da forma que a coisa realmente é. Quando taxamos Deus de carrasco só porque ele não fez o que nós queríamos da forma que queríamos, de como só entendemos alguma coisa, de verdade, a partir do momento que a conhecemos de fato. O título é uma grande sacada, tem a ver com autoconhecimento e sinceridade, mostra que muitas vezes nossa verdadeira face está escondida, talvez até de nós mesmo, vivemos uma fantasia, sem deixar que ninguém nos conheça de verdade, sem nos permitir confiar em nada nem em ninguém, sem olhos para ver os problemas dos outros, sem boca para dar uma palavra de apoio, sem ouvidos para ouvir lamentos...

Desde 1922 Lewis pretendia reescrever este mito, o que seria uma estória diferente, pois Lewis ainda era influenciado pela supremacia da razão e ainda não tinha descoberto completamente o poder do mito para transmitir a verdade. Quando o livro foi publicado, em 1956, Lewis fez várias alterações. “A principal mudança na minha versão consiste em fazer o palácio de Psique invisível aos olhos mortais”, escreve Lewis. A outra mudança é que a estória é contada da perspectiva de Orual (o caráter mais bem desenvolvido por Lewis), a irmã mais velha de Psique, e que parece retratar um pouco de sua esposa, Joy Davidman.

Lewis ficara frustrado, em parte, com algumas interpretações e simplificações da estória, porque achava que o autor original tinha falhado em elevar o livro ao nível de mito (senso do divino), que o mesmo merecia. Lewis também viu no conto original a incompletude e a insuficiência do paganismo.

Até Que Tenhamos Rostos é o trabalho mais difícil e também o melhor de Lewis. Ninguém pode compreender ou apreciar completamente o pensamento de Lewis sem um entendimento deste livro. Orual fala sobre autoconhecimento, arrependimento, e redenção, mas a palavra “cristianismo” nunca é mencionada. Até Que Tenhamos Rostos aponta para além do sacrifício pagão para sua completa realização no sacrifico de Cristo.

Este livro requer que o leitor esteja continuamente alerta e mais envolvido na narrativa. Desde que o livro atinge o nível de mito, não é sempre possível colocar todos os significados em sentenças explicitas. O próprio Lewis diz que até mesmo o autor não entende, necessariamente, o significado de sua própria estória melhor que outro leitor.

Tanto Até Que Tenhamos Rostos como o livro de Jó lidam com injustiças no universo e protestos, mas ambos concordam que o caso não pode ser refutado pela razão, apenas, mas pela natureza de Deus. A resposta é universal: “Eu te conhecia de ouvir falar, mas agora meus olhos te veem” (Jó 42.5).

Para C.S. Lewis – e Orual – a resposta para todas as questões é um encontro com o Divino. No fim de suas aventuras, Orual se conscientiza que diante de Deus todas as questões desaparecem; e até mesmo todas as palavras. Nós que podemos ler Até Que Tenhamos Rostos ainda não estamos no fim de nossas aventuras e questionamentos. Até lá podemos adquirir mais sabedoria com as profundas palavras de Lewis. Apreciem e desfrutem deste livro. Ele não os desapontará.


Introdução do livro

A HISTÓRIA DE CUPIDO E PSIQUE foi contada pela primeira vez em um dos poucos romances latinos que sobreviveram ao tempo, Metamorfoses (também às vezes chamado de O Asno de Ouro), de Lucius Apuleio, nascido por volta de 125 d.C. Os detalhes mais importantes do romance são os seguintes:

Um rei e uma rainha tiveram três filhas e a mais jovem era tão bonita que os homens a louvavam como a uma deusa, como se ela fosse a verdadeira Vénus. Por causa disso, Psique - como era chamada a irmã mais nova - não era cortejada por ninguém; os homens reverenciavam demais a sua suposta deidade, por isso não a desejavam para si. Quando o pai dela consultou o oráculo de Apoio querendo informações sobre o casamento da filha, foi-lhe dada a seguinte resposta: “Não tenha esperanças de ter um humano como genro. Você deve levá-la para que fique exposta em uma montanha, a fim de que se torne presa de um dragão”. E o pai obedeceu.

Entretanto, Vénus, com ciúme da beleza de Psique, já havia arti­culado uma punição diferente para ela. Tinha pedido ao seu filho, Cupido, para que a atormentasse com uma paixão irresistível até mesmo para o mais simples dos homens. Cupido fez isso, mas, ao ver Psique, apaixonou-se por ela. Tão logo ela foi deixada na montanha, o Vento Oeste (Zéfiro) decidiu ajudá-la, carregando-a até um lugar secreto, onde ele havia construído um majestoso palácio. A noite, ele a visitava e desfrutava do seu amor, mas a proibia de ver o seu rosto. Em pouco tempo, ela implorou-lhe para que pudesse receber a visita de suas duas irmãs. Com relutância, o deus acabou consentindo e fez com que elas flutuassem até o palácio. Lá, foram majestosamente recebidas e demonstraram enorme satisfação em relação a todo o esplendor que viram. Internamente, porém, estavam se corroendo de inveja, porque os seus maridos não eram deuses e as suas casas não eram elegantes como a da irmã.

Elas então começaram a conspirar para destruir a felicidade dela. Na visita seguinte que fizeram à irmã, elas a convenceram de que o marido dela deveria ser, na verdade, uma serpente monstruosa. “Esta noite, em sua cama”, elas disseram, “você precisa ter um lampião coberto com um manto e uma taca afiada. Quando ele dormir, acenda o lampião - veja o horror que está em sua cama - e mate-o com uma facada.” Psique, tola, prometeu fazer isso.

Quando ela acendeu o lampião, viu o deus dormindo e ficou olhando intensamente para ele, tomada por um amor insaciável, até que uma gota de óleo quente pingou do lampião e caiu no ombro dele, acordando-o. Levantando-se, ele estendeu as suas asas, repreendeu-a e desapareceu.

As duas irmãs não conseguiram se divertir por muito tempo com a maldade que fizeram, pois Cupido notou o que aconteceu e as levou à morte. Enquanto isso, Psique, desolada e infeliz, caminhou para bem longe e tentou se afogar no primeiro rio que encontrou em seu caminho, mas o deus Pã frustrou a tentativa dela e a advertiu de que nunca mais voltasse a repetir a tentativa. Depois de passar por muitos tormentos, ela caiu nas mãos de sua pior inimiga, Vénus, que a tomou como escrava, a maltratou e lhe atribuiu tarefas que pareciam impos­síveis de serem cumpridas. A primeira delas consistia em separar uma quantidade enorme de sementes de vários cereais, que estavam todas misturadas, porém ela cumpriu a tarefa com a ajuda de algumas formigas muito prestativas. Na sequência, ela teria de pegar amostras de lã dou­rada de alguns carneiros do sol, considerados animais terríveis. Então, um junco verde do leito do rio aconselhou-a a esperar a noite chegar e, quando os carneiros fossem dormir, apanhar os fios de lã dourada que haviam ficado enroscados nos galhos das amoreiras nas quais os carneiros haviam se encostado durante o dia. Depois dessa tarefa, ela tinha de encher uma jarra de água na fonte de Styx, que só podia ser alcançada escalando-se montanhas dificílimas, mas uma águia veio em seu auxílio, tomou a jarra das mãos dela e retornou com o recipiente cheio de água. Finalmente, teria de descer até o mundo subterrâneo para levar uma caixa de Vénus, para que Perséfone, a deusa da Morte, a enchesse com sua beleza. Então, uma voz misteriosa disse-lhe ao ouvido que ela seria procurada por várias pessoas que lhe pediriam ajuda, mas que deveria lhes negar todos os apelos. E, quando Perséfone lhe desse a caixa - cheia de beleza -, ela não deveria abri-la sob hipótese alguma. Psique obedeceu a todas as orientações e retornou ao mundo superior com a caixa, mas um último golpe de curiosidade a derrotou, fazendo-a olhar dentro da caixa. Ao fazer isso, Psique imediatamente perdeu a consciência.

Cupido então veio até ela, mas dessa vez para perdoá-la. Ele intercedeu junto a Júpiter, que consentiu seu casamento com Psique e que ela se tornasse uma deusa. Vénus reconciliou-se com ela e todos viveram felizes para sempre.

A principal alteração nessa minha versão pessoal do mito é fazer com que o palácio de Psique seja invisível aos olhos das pessoas normais e mortais - se é que “fazer” não seja a palavra errada para eu me referir a algo que se impôs a mim logo na primeira vez que li a história, como de fato aconteceu. Essa mudança de curso traz com ela uma razão ainda mais ambivalente e dá à minha heroína um perfil diferente, além de modificar toda a qualidade do conto. Senti-me bastante à vontade para seguir Apuleio, que creio ter sido quem transmitiu o conto a outras pessoas, mas não quem o escreveu. Nada foi mais forte que o meu objetivo de recapturar a qualidade peculiar de Metamorfoses - essa curiosa mistura de romance pitoresco, historieta de horror, tratado de magia e misticismo, pornografia e experimento estilístico. Apuleio foi, é claro, um gênio: mas em relação ao meu trabalho ele é tão somente uma “fonte”, e não uma “influência” ou um “modelo”.

A versão dele foi seguida muito de perto por William Morris no poema The Earthly Paradise [O paraíso terrestre] e por Robert Bridges em Eros and Psyche [Eros e Psique]. Nenhum dos poemas, na minha opinião, mostra o melhor de seus autores. Metamorfoses foi integralmente traduzido para a língua inglesa pela última vez por Robert Graves (Penguin Books, 1950).

C. S. Lewis

Em outra ocasião, C. S. Lewis escreveu o seguinte sobre Até que Tenhamos Rostos: Essa reinterpretação de uma antiga história viveu em minha mente desde os tempos de escola, crescendo e ganhando força com o passar dos anos. Por causa disso, eu poderia até dizer que passei a vida toda me dedicando a ela. Recentemente, veio à minha mente o que me pareceu ser aversão correta, e os temas de repente se entrelaçaram: um genuíno conto de barbarismo, a memória de uma mulher feia, idolatria sinistra e o pálido encantamento na guerra com cada um e com os seus fantasmas e a destruição que uma vocação, ou até mesmo a fé, faz na vida humana.

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