sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O CRISTO DOS PROFETAS - O. PALMER ROBERTSON [Introdução]




A Alguma coisa levou os profetas de Deus a escrever. Quando acabaram de fazê-lo, tinham produzido um acervo literário sem paralelo na história humana. Nada antes nem depois deles se iguala à obra literária produzida pelos profetas de Israel.[1] Mas o que levou os profetas a produzirem essa obra singular de escritos?

Por muitos anos, o criticismo bíblico afirmou que os profetas originalmente entregaram suas mensagens unicamente de forma oral como proclamações curtas, abruptas. Esse tipo de discurso mais irracional, em forma de êxtase, foi mais tarde escrito e depois repetidamente revisado por uma série de editores subsequentes.[2] Mais recentemente, tem-se concedido maior crédito ao ponto de vista de que os próprios profetas escreveram mais das suas mensagens do que anteriormente se reconhecia.[3] Obviamente, qualquer que seja a perspectiva, é preciso reconhecer que alguém em algum momento da história de Israel escreveu uma grande quantidade de material que se tornou conhecido como “profético”.

Sua origem, com certeza, pode ser legitimamente atribuída à inspiração do Espírito Santo de Deus. A visão arrebatadora de Isaías do “Senhor, num alto e sublime trono” com serafins cobrindo o rosto e os pés enquanto voavam; a profecia de Joel de que “nos últimos dias” Deus “derramaria seu Espírito sobre toda a carne” de tal forma que homens e mulheres, jovens e velhos, teriam visões e sonhos; a descrição que Ezequiel faz do vale dos ossos secos, com a pergunta desafiadora que apela à sua fé: “Filho do homem, podem reviver estes ossos?” — essas palavras, essas visões, e centenas de passagens como essas em toda parte nos profetas — não são produto normal de escritos humanos que facilmente podem ser imitados. Todo leitor imparcial recebe deles a sensação de que essas palavras são de fato sobrenaturais.

Mas é preciso perguntar outra vez: O que, no tempo e na história, estimulou essa efusão de literatura inspirada durante dezenas, até mesmo centenas de anos, manifestando uma forma e conteúdo que jamais havia ocorrido antes e depois disso jamais se repetiu?

Na estrutura das Escrituras, os grandes e primeiros eventos salvíficos na história de Israel que trouxeram a nação à existência foram registrados de forma que a posteridade conseguiria entender seu significado. De acordo com o Pentateuco, o êxodo do Egito não foi apenas a dramática libertação de mais um povo do cativeiro da escravidão. Não; esses grandes eventos foram uma ação redentora do próprio Deus, na qual Ele libertou seu povo escolhido da sua contaminação pecaminosa por meio do sangue do cordeiro pascal. Da mesma forma, as leis de Israel não eram simplesmente o refinamento e a espiral ascendente da moral humana em direção à perfeição. Em vez disso, as “dez palavras”, os Dez Mandamentos, surgiram no contexto de uma aliança divina iniciada no monte Sinai, um elo solene de um juramento de sangue por meio do qual o autor revelado Senhor da Aliança se comprometeu com o povo e o povo com Ele por toda a eternidade.

Esses atos de Deus, poderosos e formativos, em favor do seu escolhido povo da aliança foram cuidadosamente registrados e seu permanente significado foi preservado por escrito para as gerações vindouras. Consequentemente, todas as eras futuras têm condições de confirmar por si mesmas o intento de Deus ao formar esse povo no decorrer da história humana e juntar-se com Israel na aliança que intencionava fazer deles uma bênção a todas as nações do mundo.

Circunstância similar cercou o auge, a época máxima do trato de Deus com seu povo sob a proteção da sua aliança com Israel. A história da bênção divina na aliança chegou ao seu auge nos dias de Davi e Salomão, quase 500 anos depois da libertação de Israel da opressão de faraó. Nessa era gloriosa, o juramento de Deus a respeito da aliança do reino foi confirmado especificamente com Davi e com seus descendentes. Deus teria uma “casa”, um lugar de descanso, um templo para ser adorado, que estaria situado exatamente no meio da terra do seu povo. Ali Ele se encontraria com eles, os abençoaria, e faria deles uma bênção para todas as nações. Ao mesmo tempo, Davi teria uma “casa”, uma dinastia, uma linhagem de descendentes que reinaria no trono em Jerusalém para sempre (2 Sm 7.10-16; Sl 89.19-37; 132.1-18). A fusão dessas duas “casas” em um lugar no monte Sião estabeleceu a realidade do reino de Deus na terra. Como consequência, o reino messiânico de retidão, perdão, justiça e amor com o passar do tempo se expandiria até envolver todos os outros reinos do mundo. O messias ungido de Deus reinaria de mar a mar e desde o rio até aos confins da terra (Sl 72.1-17). Deus haveria de subjugar todos os inimigos da retidão e justiça sob os pés do messias (Sl 2). Esse estabelecimento simultâneo do trono de Davi e do trono de Deus em Jerusalém assinalava o ponto mais elevado da concretização dos propósitos de Deus na história de Israel. O Messias e seu reino estavam no centro de todas as outras nações, posicionados de tal forma que a obra de Deus da redenção do pecado e suas consequências poderia espalhar-se por todos os povos da terra.

É compreensível, então, que esse evento culminante no movimento da história da redenção fosse também registrado pelos escritos inspirados, desta vez pelos poetas de Israel. Se a nação precisava ser conduzida de forma apropriada em adoração, era preciso que um acervo de literatura inspirasse a adoração do povo. Assim, Davi, o “doce salmista de Israel”, falou a respeito dos céus que declaram a glória de Deus e do firmamento que proclama a obra das suas mãos; ele escreveu da exaltação do homem na criação e na redenção, homem que foi feito “um pouco menor do que os anjos”, mas “coroado de glória e honra”; ele descreveu como é bem-aventurado o homem cujas transgressões são perdoadas e cujos pecados são cobertos; ele louvou o Senhor que era a sua luz e sua salvação, a força da sua vida; e prestou homenagem ao Messias prometido como filho de Deus estabelecido no santo monte Sião, que haveria de herdar as nações e desfazer os abusos de poder cometidos pelos monarcas egoístas desta terra. Esses salmos da época de Davi celebravam as glórias do Messias e seu reino que já tinha vindo e ainda estava por vir.

Mas, qual era, então, no movimento da história da redenção, a função dos escritos dos profetas? O que, especificamente, na história, fez surgir esse grande e glorioso acervo de literatura profética? Se o auge da história israelita foi o estabelecimento da monarquia messiânica, o que mais restou?

Sem dúvida alguma, Vos está correto quando diz que “a nova organização do reino teocrático sob um governo humano” fez surgir o ministério profético na história de Israel.[4] Esse “monumental movimento progressivo” de estabelecer um rei ungido que reinava por Deus representava um passo expressivo na direção da manifestação dos propósitos salvíficos de Deus. Isso explica a presença de Samuel no estabelecimento de Saul e Davi como primeiros reis de Israel. Em toda a história restante dos reis de Israel, os profetas muitas vezes dirigiram suas mensagens de forma específica aos governantes tanto de Israel como de Judá.

Mas existe uma clara diferença entre o ministério dos primeiros profetas como Elias e Eliseu e os profetas posteriores como Isaías e Ezequiel. No primeiro caso, a história pessoal dos profetas serviu como foco do seu ministério, mas são poucas as palavras deles que foram colocadas por escrito. Elias confrontou de forma dramática o rei Acabe no monte Carmelo, mas são poucas as suas palavras; a história do seu pupilo Eliseu inclui dezoito ações miraculosas. Mas, embora a vida de Isaías, Jeremias e Ezequiel tenham alguma importância como representação da sua mensagem, é o registro das suas palavras, de forma escrita, que representa o âmago distintivo do ministério deles.[5]

Mas, uma vez mais, podemos perguntar: O que, nos processos da história de Israel, levou à criação de um tão significativo acervo de material escrito a tornar-se o centro do ministério profético?[6] Se o estabelecimento da monarquia representava o ápice da história da redenção em seu progresso sob a antiga aliança, o que foi deixado de lado?

O trágico é a coisa que foi deixada de lado. Esse povo da aliança de Deus, escolhido e favorecido, iria falhar nos seus compromissos. Em vez de servir como a luz de Deus para as nações, esse povo escolhido apresentaria mais depravação do que os povos ao seu redor. Como consequência, tiveram de ser rejeitados por Deus, exilados, retornaram ao seu lugar de origem além do rio. Essa nação que havia sido altamente favorecida por 400 anos desde que seu pai Abraão tinha saído de Ur dos caldeus precisava agora ser forçada a voltar à terra dos caldeus como justo juízo de Deus contra sua persistência na rebelião.

Mas o que significava nos propósitos de Deus esse trágico acontecimento? Como poderia o desterro da nação eleita de Deus contribuir para o desenvolvimento do plano de Deus para redimir um povo dentre a humanidade decaída? Qual seria o fim de tudo isso? Se o povo de Deus se tornou “não-meu-povo”, o que o futuro reservaria para uma obra divina que revitalizaria um universo que gemia angustiado à espera de redenção?

Foi o exílio e o futuro além do exílio que os profetas escritores de Israel foram convocados e comissionados a explicar. Eles eram profetas porque seu chamado era mais falar do que agir. Eles não guiariam a nação em ações de natureza redentiva comparáveis à libertação do Egito sob Moisés ou a consolidação do reino sob Davi. Como profetas, eles foram chamados primeiro e acima de tudo para falar, e, por meio da fala, exigir arrependimento da transgressão da lei de Deus e fé na palavra da graça de Deus.

Mas esse grupo de servos de Deus também foi comissionado a escrever. Esses servos foram chamados para escrever por causa da própria natureza do momento histórico em que viviam. A nação seria devastada, destruída, aniquilada. Primeiro o reino do norte seria invadido pelos assírios, levado ao cativeiro para bem longe das suas fronteiras. Mas depois aconteceria o absolutamente impensável. O reino de Judá, que abrigava o santo lugar da habitação de Deus, desapareceria da face da terra. Como, então, se conservaria um fio que fosse de esperança com respeito aos propósitos redentores de Deus? O que havia restado para Israel e consequentemente para todas as outras nações, serem abençoadas com as boas novas da redenção? Onde estava, agora, a grande obra de Deus de revitalizar a terra corrompida?

Nesse vácuo de aparente desesperança é que os profetas foram chamados para falar e escrever. Eles tinham de escrever e também falar para que fosse possível manter a continuidade da esperança através das gerações. Quando surgiram “as grandes monarquias universais asiáticas”, designadas por Deus para serem os instrumentos de castigo para sua nação escolhida, era preciso dar mostras da inabalável soberania do seu Deus.[7] Se nada havia restado das atividades institucionais da vida do templo em Jerusalém, que tinham sido tão perfeitamente projetadas para transmitir as expectativas da redenção às gerações vindouras, alguma outra coisa precisava aparecer para acender uma chama de esperança no coração dos futuros filhos e filhas. Essa outra coisa seriam os escritos inspirados, as profecias preservadas não apenas do exílio, mas também da restauração depois da devastação. Se o próprio exílio foi predito nos registros escritos dos profetas, então, quando chegou esse momento terrível, seu lugar nos propósitos de Deus pôde ser compreendido. Em vez de criar uma atmosfera de descrença, o exílio antecipado pelos profetas desafiaria o remanescente do povo de Deus à fé que veria a justa e intencional mão do Senhor da Aliança. Nesta circunstância crítica, tornou-se necessário estabelecer a onisciência e onipotência do único Deus vivo e verdadeiro sobre a “aparente superioridade dos deuses dos ímpios, à medida que isso se tornou notório pela vitória dos poderes mundanos sobre a teocracia”.[8]

Simultaneamente, as predições proféticas de uma restauração mesmo depois das devastações do exílio só poderiam produzir o efeito de mover o povo a uma fé que olhasse para o futuro. Pois, se Deus tinha sido fiel à sua palavra na mensagem sobre o exílio, podia-se esperar que seria fiel também à sua palavra na mensagem a respeito da restauração.

O que significava essa restauração? Será que era simplesmente um retorno ao antigo estado de coisas que imperava antes do exílio? Será que antevia um ciclo de deterioração no pecado seguido inevitavelmente por repetidos juízos de Deus? Será que os futuros reis de um Israel restaurado não seriam melhores que os reis do passado, os quais foram tão severamente condenados pelos profetas?

De acordo com os escritos desses mesmos profetas, a resposta é: Não! Foi preservada para a posteridade a esperança de uma restauração muito mais gloriosa do que os dias anteriores ao exílio. Uma nova aliança, uma nova Sião, um novo templo, um novo messias, uma nova relação com as nações do mundo — essas eram as expectativas destinadas a criar esperança futura para o povo que teria de suportar o trauma de ser deportado da sua terra. Mas esses escritos não foram divinamente projetados apenas para sua própria geração. Eles tinham em vista todas as futuras gerações, até o momento da triunfante vinda do Messias esperado, que faria surgir um novo céu e uma nova terra.

Dessa forma, os escritos inspirados dos profetas falam a todas as gerações ainda hoje. Sem um retorno para Deus em fé e arrependimento conforme eles exigem, suas palavras não serão entendidas de forma correta. Mas para todas as gerações e povos que lerem e ouvirem com o entendimento que somente a fé pode conceder, eles sempre trarão a mensagem de esperança e restauração.

Essa é a razão por que os escritos desses profetas de outrora precisam ser ouvidos outra vez. Eles falam hoje com tanta clareza como falaram na época em que foram inspirados. Com fé renovada, que a geração de hoje ouça esta mensagem profética, que se concentra mais uma vez no Messias vindouro e no seu reino glorioso.
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ROBERTSON, O. Palmer. O Cristo dos Profetas. Recife: CLIRE, 2016. 640p.


[1] “Completamente único” é a maneira como Clemente descreve o material profético. Ele prossegue: “Em nenhum outro lugar na antiguidade se preservou esse tipo de material literário”. O volume de literatura profética do Antigo Testamento “continua sendo uma produção única” do antigo Israel (Old Testament Prophecy, 203).
[2] Veja Mowinckel, Prophecy and Tradition; e Rowley, Servant of the Lord, 93. A antiga opinião dos eruditos se baseava muito na perspectiva corrente da época, que via o material profético como produto de um processo evolutivo. Com base nessa pressuposição filosófica, os antigos profetas de Israel eram vistos mais ou menos como brutos que pronunciavam suas profecias num estado de êxtase, e somente mais tarde a religião dos profetas evoluiu para um sistema de fé mais coerente. Von Rad (Old Testament Theology, 2.6), sobre a ideia de que Isaías e Jeremias pertenciam a um grupo de profetas extáticos de uma “contínua linha de desenvolvimento” diz que essa é uma “simplificação exagerada”.
[3] Veja von Rad, Old Testament Theology, 2.40-45. Lindblom, Prophecy in Ancient Israel, 221, afirma que é “fato incontestável” que os próprios profetas “às vezes” puseram por escrito os seus oráculos. De acordo com Fohrer, Introduction to the Old Testament, 359, “a maioria” dos ditos proféticos foi escrita “enquanto ainda estavam vivos os profetas”. Analisando a ordem que Deus deu a Ezequiel para que comesse o rolo que lhe foi apresentado, Zimmerli, From Prophetic Word to Prophetic Book, 430, conclui que “é evidente que o profeta estava acostumado com rolos desse tipo, que continham a palavra profética”. Numa peculiar guinada da erudição recente, há pessoas que propõem que contrariamente ao procedimento dos profetas anteriores ao exílio, somente os profetas posteriores escreveram suas mensagens sem jamais proclamá-las oralmente. É interessante ver que essas perspectivas recentes foram antecipadas por um erudito da geração anterior, que considerou o testemunho do material profético com mais seriedade do que se faz geralmente: “Em alguns casos, o profeta, sob a inspiração protetora do Espírito de Deus, pode ter colocado por escrito longas seções das suas mensagens logo depois de havê-las proferido de forma oral. Por outro lado, pode ser que algumas das profecias não tenham nunca sido entregues oralmente, mas foram unicamente produtos literários” (Young, Introduction to the Old Testament, 157, 158).
[4] Vos, Biblical Theology, 203.
[5] Para desenvolver esta distinção, veja von Rad, Old Testament Theology, 2.33.
[6] Fohrer, Introduction to the Old Testament, 360, argumenta que “a palavra falada [do profeta] precisava ser registrada logo para conservar sua capacidade de produzir efeito”. Somente se fosse escrita é que o poder da palavra profética poderia ser liberado outra vez. Embora haja alguma verdade nessa observação, ela parece atribuir poder mântico à palavra em si, em vez de atribuir poder à obra do soberano Senhor na confirmação e aplicação da verdade da sua palavra.
[7] Keil, Introduction to the Old Testament, 1.279.
[8] Ibid.

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